Aquela noite fora um dos raros momentos de privacidade entre nós.
Estávamos sozinhos na varanda da sua casa e eu ouvia extasiado ela discorrer
sobre temas complicados com a graça típica das mulheres espirituosas e
superficiais. Eu estava apaixonado e talvez por isso inclinado a ouvir a sua
voz como um feitiço e suas palavras como um oráculo pleno de sentidos
misteriosos. Ela sabia da minha paixão declarada em poemas plagiados e cartas
afetadas, mas, afirmando tudo não passar de uma efêmera fascinação, tratava-me
como um admirador inofensivo e como um critério para a sua vaidade.
Sua serenidade emocional, sua habilidade em lidar com os sentimentos e a minha
tímida passividade conferiam a suas opiniões uma sagacidade psicológica quando
o assunto em questão era o meu revelado amor. Ela quase me convencia estar eu
equivocado sobre o que verdadeiramente sentia; em outros assuntos ela não era
tão dominante assim. Nessa noite o tema era mais prosaico, o riso, e eu lhe
falava dos meus comediantes preferidos. Disse-lhe não gostar muito de Charles
Chaplin, de haver algo de maldoso em seu olhar e muita previsibilidade na
desenvoltura do personagem “Carlitos”. Ela contestou-me dizendo:
_ Mas você gostava dele quando criança!
_ Sim. Gostava muito.
_ Algo então lhe ocorreu bloqueando a espontaneidade do seu riso.
Ainda hoje as crianças gostam muito dele.
_ Sim, Lílian – respondi quase revoltado por ela tentar
psicologizar o meu senso de humor – algo me ocorreu, mas não foi nenhum
bloqueio, Eu mudei. As pessoas mudam.
_ Mudam parcialmente. A criança que sorria com Carlitos ainda
convive contigo e é hoje uma criança triste.
_Não! A mudança pode ser total.
_Uma metamorfose? – Perguntou ela com ironia.
_ Talvez. O corpo substitui todas as suas células em um
determinado intervalo de tempo, a nossa fisionomia pode se tornar
irreconhecível; até mesmo o cérebro, antes considerado imutável, apresenta uma
grande plasticidade se for estimulado...
_E a memória? Ela é o castelo inexpugnável da nossa identidade e
perdê-la significa enlouquecer. A metamorfose total que você defende pode ser o
cominho sem volta da loucura.
_Devagar em suas conclusões! Eu posso ter uma memória curta, não
me lembrar de como eu era antes de uma longa mudança e nem por isso me tornar
um “desmiolado”. Essa identidade que você supõe ser o estofo da nossa razão não
passa de uma grande ilusão, pois as ilusões são intrínsecas à própria razão, já
diziam os velhos kantianos. Quem pode me garantir que eu fora mesmo a criança
que hoje penso ter sido? Assim como apagamos os traumas da nossa memória,
podemos fantasiar um pouco sem, contudo, cruzar as fronteiras do patológico. A
nossa tendência em imaginar a infância como uma fase paradisíaca, - quando um
exame mais atento revela ser a infância uma idade plena de problemas, dores e
sofrimentos – expõe um pouco essa plasticidade criativa onde se misturam
lembranças e fantasias...
_É possível. – Lílian parecia subitamente mergulhada em tristes
recordações – Sempre imaginei a minha infância como feita de dias e noites
encantadas, mas também me recordo de uma constante fantasia. Antes de dormir,
quando bem menina, ficava na cama sonhando com uma máquina fantástica onde
houvesse um único botão: você o apertava e PLIM!... Morria. Sem dor, sem
médicos, sem nada. Como posso ter sido feliz se dormia com um pensamento
destes?
Nesse momento, insidioso como um ladrão noturno, eu
mudei o tom do meu discurso e passei a ser mais incisivo e pessoal:
_As pessoas mudam, sim. Você irá mudar muito, Lílian, e, quem
sabe, mudar a ponto de amar-me um dia...
Ela voltou-se e me olhou como uma criança triste.
Pela primeira vez senti suas convicções abaladas. Talvez ela já estivesse
mudando as inclinações do seu coração, talvez esperasse um gesto meu, efusivo,
arrebatado e capaz de lhe provar a intensidade do meu confesso amor, mas era eu
quem não acreditava em mudanças assim tão rápidas e me despedi com esperanças
de ver a sua metamorfose consumada em poucos dias e, então, tê-la de corpo e
alma. De fato, ao encontrá-la semanas depois, ela estava muito mudada e digo
“muito” com um grande pesar, pois ela não só se tornou a Lílian que me amava
naquela noite, mas continuou a se modificar e já não sentia então por mim nem
amor, nem vaidade, nem mesmo a curiosidade habitual... Nada! Nada além da
profunda indiferença que nutria agora por todos os pretendentes que não fosse
Frederico, o seu atual namorado. Assim foi que perdi um grande amor por agir
pouco e falar demais. Hoje, muitos anos passados, gostaria de lhe dizer que eu
não mudei nada e continuo apaixonado. Gosto de imaginar que ela me amou sob o
tênue véu de uma noite. Isso me ajuda a compor meus poemas afetados.
0 comentários :
Postar um comentário