segunda-feira, 4 de abril de 2022

QUANDO BEIJO AS ESTRELAS - Parte 02

 


Aquela noite fora um dos raros momentos de privacidade entre nós. Estávamos sozinhos na varanda da sua casa e eu ouvia extasiado ela discorrer sobre temas complicados com a graça típica das mulheres espirituosas e superficiais. Eu estava apaixonado e talvez por isso inclinado a ouvir a sua voz como um feitiço e suas palavras como um oráculo pleno de sentidos misteriosos. Ela sabia da minha paixão declarada em poemas plagiados e cartas afetadas, mas, afirmando tudo não passar de uma efêmera fascinação, tratava-me como um admirador inofensivo e como um critério para a sua vaidade. Sua serenidade emocional, sua habilidade em lidar com os sentimentos e a minha tímida passividade conferiam a suas opiniões uma sagacidade psicológica quando o assunto em questão era o meu revelado amor. Ela quase me convencia estar eu equivocado sobre o que verdadeiramente sentia; em outros assuntos ela não era tão dominante assim. Nessa noite o tema era mais prosaico, o riso, e eu lhe falava dos meus comediantes preferidos. Disse-lhe não gostar muito de Charles Chaplin, de haver algo de maldoso em seu olhar e muita previsibilidade na desenvoltura do personagem “Carlitos”. Ela contestou-me dizendo:

_ Mas você gostava dele quando criança!

_ Sim. Gostava muito.

_ Algo então lhe ocorreu bloqueando a espontaneidade do seu riso. Ainda hoje as crianças gostam muito dele.

_ Sim, Lílian – respondi quase revoltado por ela tentar psicologizar o meu senso de humor – algo me ocorreu, mas não foi nenhum bloqueio, Eu mudei. As pessoas mudam.

_ Mudam parcialmente. A criança que sorria com Carlitos ainda convive contigo e é hoje uma criança triste.

_Não! A mudança pode ser total.

_Uma metamorfose? – Perguntou ela com ironia.

_ Talvez. O corpo substitui todas as suas células em um determinado intervalo de tempo, a nossa fisionomia pode se tornar irreconhecível; até mesmo o cérebro, antes considerado imutável, apresenta uma grande plasticidade se for estimulado...

_E a memória? Ela é o castelo inexpugnável da nossa identidade e perdê-la significa enlouquecer. A metamorfose total que você defende pode ser o cominho sem volta da loucura.

_Devagar em suas conclusões! Eu posso ter uma memória curta, não me lembrar de como eu era antes de uma longa mudança e nem por isso me tornar um “desmiolado”. Essa identidade que você supõe ser o estofo da nossa razão não passa de uma grande ilusão, pois as ilusões são intrínsecas à própria razão, já diziam os velhos kantianos. Quem pode me garantir que eu fora mesmo a criança que hoje penso ter sido? Assim como apagamos os traumas da nossa memória, podemos fantasiar um pouco sem, contudo, cruzar as fronteiras do patológico. A nossa tendência em imaginar a infância como uma fase paradisíaca, - quando um exame mais atento revela ser a infância uma idade plena de problemas, dores e sofrimentos – expõe um pouco essa plasticidade criativa onde se misturam lembranças e fantasias...

_É possível. – Lílian parecia subitamente mergulhada em tristes recordações – Sempre imaginei a minha infância como feita de dias e noites encantadas, mas também me recordo de uma constante fantasia. Antes de dormir, quando bem menina, ficava na cama sonhando com uma máquina fantástica onde houvesse um único botão: você o apertava e PLIM!... Morria. Sem dor, sem médicos, sem nada. Como posso ter sido feliz se dormia com um pensamento destes?

   Nesse momento, insidioso como um ladrão noturno, eu mudei o tom do meu discurso e passei a ser mais incisivo e pessoal:

_As pessoas mudam, sim. Você irá mudar muito, Lílian, e, quem sabe, mudar a ponto de amar-me um dia...

   Ela voltou-se e me olhou como uma criança triste. Pela primeira vez senti suas convicções abaladas. Talvez ela já estivesse mudando as inclinações do seu coração, talvez esperasse um gesto meu, efusivo, arrebatado e capaz de lhe provar a intensidade do meu confesso amor, mas era eu quem não acreditava em mudanças assim tão rápidas e me despedi com esperanças de ver a sua metamorfose consumada em poucos dias e, então, tê-la de corpo e alma. De fato, ao encontrá-la semanas depois, ela estava muito mudada e digo “muito” com um grande pesar, pois ela não só se tornou a Lílian que me amava naquela noite, mas continuou a se modificar e já não sentia então por mim nem amor, nem vaidade, nem mesmo a curiosidade habitual... Nada! Nada além da profunda indiferença que nutria agora por todos os pretendentes que não fosse Frederico, o seu atual namorado. Assim foi que perdi um grande amor por agir pouco e falar demais. Hoje, muitos anos passados, gostaria de lhe dizer que eu não mudei nada e continuo apaixonado. Gosto de imaginar que ela me amou sob o tênue véu de uma noite. Isso me ajuda a compor meus poemas afetados.

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