_ QUANTAS HORAS, LOINHA?
_ 11
HORAS E 43 MINUTOS!
_OBRIGADO,
MEU FILHO! QUASE ME ESQUEÇO DE IR BUSCAR OS MENINOS NA ESCOLA!
Diálogos
assim era muito comum na pequena cidade de Itambé-Ba, nos longínquos anos 60 do
século passado. Loinha era uma espécie de serviçal polivalente, vindo não se
sabe de onde, e gozava das boas graças da pequena comunidade de moradores
instalados à margem de dois rios confluentes por onde uma impertinente estrada
de terra rompia as florestas frondosas do sudoeste. A elite da cidade ainda
vivia nas fazendas, ou nas chácaras próximas e via com maus olhos a chegada de
novos moradores sem eira nem beira em busca da prosperidade encarnada em cinco
serrarias que empregavam quase duas centenas de lenhadores e marceneiros.
Loinha, como se percebe no diálogo acima, ficou famoso por ser capaz de dizer a
hora exata a qualquer instante que fosse solicitado, mesmo sem possuir nenhum
relógio ou sequer saber consultar um, objeto, inclusive, relativamente raro
naquelas bandas. Não apenas possuía esse dom, como sabia muito bem fazer uso
dele, visitando os moradores e antecipando a estes suas obrigações em troca de
prestígio, alimentação, roupas e outros agrados. Apesar do ranço rural, a
cidade ganhava ares urbanos e uma branda rotina de afazeres sincronizados
começava a se desenhar na vida coletiva. Loinha cuidava das horas canônicas da
Igreja matriz recém-inaugurada e orgulho de todos os moradores (já no terceiro
ano de seu voluntariado, Loinha já havia ganhado a permissão do noviço Pe
Juracy para subir na torre da Igreja e tocar o sino de bronze, cujo repique
argentino delimitava, até onde pudesse ser ouvido, o conceito de cidade {além
desse limite, era mato}), o início da jornada de trabalho dos madeireiros, cuja
entrada e saída das serrarias eram sempre compassadas pelo assovio do garoto
descalço que passava correndo pela porta das cinco unidades a pouca distância uma
das outras, onde os operários, amontoados a fumar e conversar encostados em
grandes troncos de madeira cortada, esperavam o momento exato de pegar no
batente (também para a pausa do almoço, o retorno e a saída derradeira, no
final da tarde, era imperioso esperar a passagem do garoto-relógio em quem eles
confiavam plenamente, e a luz do dia e o movimento dos astros davam testemunho
da sua pontualidade). Além desse compromisso, que lhe permitia morar em um
barraco às margens do rio Verruga, cedido pela Madeireira Porvir, Loinha corria
as praças da cidade, para alertar os comerciantes, as marinetes que faziam
linha entre a cidade e outras duas vizinhas, Vitória da Conquista e Itapetinga,
acordar os alunos mais retardatários além de lembrar datas solenes que ele
memorizava como um requinte da sua estudada para-normalidade. O aniversário de
um cônjuge, o prazo para determinados serviços, como recadastramentos, vacinas
ou últimas apresentações de um circo fuleiro nos confins da cidade... Nada
escapava de sua sanha cronométrica. Não que alguns os moradores mais abastados
não tivessem um relógio de parede, ou mesmo um sofisticado relógio de pulso,
mas estes apenas serviam para confirmar a precisão dos avisos do arauto Loinha,
e, com o tempo, foram preteridos pela aversão que o homem rural sentia pelas
tecnologias e pela sensação de auto-estima por viver em um ritmo absolutamente determinado
por um ser humano igual a eles mesmo, palpável, e não por quem quer que fosse
que estivesse por trás daqueles mecanismos, feito emissários disfarçados de um
distante poder central a comandar suas vidas! As crianças se divertiam
perguntando as horas ao bizarro andarilho que jamais se furtava em informar ou
errava um minuto sequer. Nos domingos, além de acordar a todos para a missa
solene, ele avisava aos beberrões que o almoço estava pronto na casa da sogra,
alertava aos distraídos ciclistas de aluguel quantos minutos faltava para completar
o tempo de devolver a bike na oficina de Seu Joaquim e, no final da tarde,
cronometrava as partidas de Futebol no estádio Pequeno Ferraz, com o requinte
de subtrair os minutos de bola parada e dar o exato tempo de jogo jogado! Na
praça da Cidade, onde a juventude costumava se reunir à noite para namoros e
flertes, se alguma moçoila se empolgasse com os beijos roubados de um atrevido
rapaz nos bancos de mármore enluarado e perdesse a noção do tempo, a hora
combinada com os pais para voltar pra casa, não hesitava ela em gritar bem
alto:
_ LOIIIINHA! QUANTAS HORAS, MEU FILHO?
E ele, feito um chapeleiro maluco de Alice no
País das Maravilhas, sem relógio nenhum e sem casaca, surgia por detrás de um arbusto,
com um rolete de sumarenta cana caiana entre os dedos, e aliviava o casal
dizendo:
_ Relaxa! Tá cedo! Vocês ainda tem meia hora
de chupão (chupão era o nome dos beijos ardentes e demorados trocados pelos
pombinhos inocentes)!
E assim transcorria sua rotina, rotina essa
que, duplicada pela pontualidade absoluta dos seus episódios, parecia
reverberar intensificada, como soldados que derrubam uma ponte com sua marcha
cadenciada, quando então o ritmo das oscilações vai se amplificando, tal qual a
água que conseguimos jogar fora da banheira se balançarmos de modo ritmado a
palma da mão sobre a lâmina d’água, também os soldados marchando conseguem
reverberar e derrubar uma ponte e assim era a rotina de Loinha e da cidade, tão
cadenciada e cumulativa que parecia alimentar o próprio tempo, organizar e
reger o próprio ritmo do sol e das estrelas, das semanas e das estações,
mimando a procissão cósmica e deixando em nossas memórias essa impressão
indelével de coisa eterna, os dias vividos na cidade amada de Loinha Pimentel.
Parece também ter existido outro Loinha, no século XVIII, na cidade prussiana
de Konisberg, um tal de Emmanuel Kant, filósofo da Lei, da Razão e da Moral,
cujos habitantes da sua cidade costumavam acertar seus relógios pela passagem
desse sublime pensador a passear impreterivelmente no final da tarde, pelo
mesmíssimo trajeto e mesmíssimos segundos. Mas não era nenhum filósofo o nosso
Loinha. Masturbava-se no cinema quando as glamorosas pinups hollywoodianas esticavam
suas coxas de brancura prateada e suspiros delirantes; roubava ingá nas
fazendas margeadas pelo Rio Pardo, comungava na missa sem ser batizado, cínico
aos olhares desconfiados do Padre Juracy, e algumas vezes até informava as
horas erradas para, com isso, obter certas vantagens ou prazeres de contrabando,
até que, um dia, por conta de uma pequena mentira destas, cometeu o erro que
marcou profundamente a sua vida e de cujo remorso veio a padecer do mal secreto
que consumia sua alma. Ele havia se apaixonado por Marlene, uma encantadora
colegial de olhos amendoados e uma pinta no canto dos lábios de parar o
trânsito, se trânsito houvesse nas ruas pachorrentas por onde só passavam
caminhões abarrotados de madeira processada rumo à Salvador-Ba, espalhando o pó
e o cheiro de madeira serrada pelos telhados sonolentos. Não era culpado de se
apaixonar por Marlene, pois metade dos rapazes, de todas as classes sociais,
raça ou cor por ela caíam de amores, mas ela escolheu apenas um, Eduardo
Bonifácio, filho de um promotor de justiça e de uma beleza apolínea a formar
com sua namorada um casal que calava todos os pretendentes dela e dele, meninas
casamenteiras que logo desistiam de invejar o casal, tamanha a harmonia e
esplendor que exibiam quando andavam juntos, de mãos dadas, pelas ruas da
cidade. O problema deles era profunda inimizade de suas famílias, o pai de
Eduardo sendo justamente o promotor que conseguira condenar o pai de Marlene em
um acidente de caça, que resultou na morte acidental de um ajudante de armas. A
mãe de Marlene e o pai, preso na cadeia municipal, juraram tudo fazer para
separar o casal e já planejavam mandar a filha para uma cidade bem distante,
Rio de Janeiro talvez, nunca revelando exatamente qual lugar. Eduardo planejou
fugir com sua namorada e combinaram que iriam se encontrar às cinco horas da
manhã, nos fundos da Madeireira Porvir, para fugirem na boleia do primeiro
caminhão que partisse com destino à Salvador, escondido em sacos de dormir,
entre a carga de tábuas e pisos de assoalho. Tudo estava planejado. Na véspera
da fuga, ansiosa e com medo de não conseguir acordar, Marlene pediu à Loinha
que batesse na janela do seu quarto às 04 horas da madrugada. Pediu também que
ele, caso encontrasse por lá o Eduardo Bonifácio, lhe entregasse um xale com o
nome dela bordado, pois o frio das madrugadas itambeenses era sinistro e lendário.
Loinha, mergulhado nas paranoias do amor secreto, logo percebeu que havia um
mistério no ar, sentindo inclusive os signos explícitos de uma fuga planejada,
mas nada comentou, sem coragem de contrariar um pedido da mulher por quem seu
coração batia feito um relógio de cordas alucinadas. Tomou o xale de suas
perfumadas mãos e dormiu com ele abraçado a sonhar sendo o romântico
aventureiro a fugir com sua amada! Antes do nascer do sol, apreensivo e
sonolento, Loinha passou várias vezes pela janela de Marlene sem coragem de
acordar o pássaro, de abrir a gaiola e ver fugir a pomba com o coração dele no
bico, enquanto o resto do seu corpo morreria de amor sobre algum lajedo frio na
beira do Rio Pardo! Voltou para a Serraria em cujos fundos morava em busca do
seu rival e do primeiro caminhão a sair para Salvador carregado. Eduardo,
conforme combinado, havia chegado ao local e esperado por ela durante quarenta
minutos, até se certificar que ela não o amava tanto assim, que havia
facilmente desistido de fugir e que o amor que ela jurava sentir por ele não
passava de um fricote de adolescente entediada. Desolado, mas também sentindo
um amargo contentamento por haver descoberto a tempo o verdadeiro valor de
Marlene e dos riscos evitados se houvesse mesmo embarcado, ele voltou para
casa, dobrando uma esquina no mesmíssimo momento em que o sol raiava no alto do
Monte de Dona Mira e, como se carregado pelos ponteiros do sol no chão de terra
molhada, Loinha dobrava a esquina oposta em direção ao caminhão já pronto para
a longa jornada. O caminhoneiro lhe informou não ter visto ninguém até o
momento. Com remorsos por ter traído a confiança da sua amada, angustiado com o
dilema instalado como um verme em seu coração, Loinha entregou o xale ao
caminhoneiro, sugerindo que usasse contra o frio da estrada, ou desse ele a
algum carona eventual que apanhasse ao longo da jornada. O xale parecia arder
em suas mãos como um troféu de amor roubado, amor que bem sabia sagrado por
sentir o mesmo, pouco importando quem fosse então o verdadeiro amante, o
verdadeiro amado. O motorista aceitou a oferta sem entender direito suas
palavras e Loinha procurou seguir sua rotina, não de todo descontente por seu
egoísmo ter impedido a fuga da sua doce e imaginária namorada. Duas horas se
transcorreram desde então. O caminhoneiro acabou mesmo dando uma carona a um
pedreiro que voltava para a zona rural e o abordara no posto de gasolina onde
abastecera o caminhão. Emprestou o xale ao jovem de mãos calejadas e
friorentas. Conversaram um pouco e compartilharam um rude cigarro de palha.
Marlene dormia um sono pesado, tenso e povoado de sonhos premonitórios (imagino).
Às sete horas fora acordada por um emissário do Hospital. Um caminhão carregado
de madeira havia tombado na Serra do Marçal, rolado desfiladeiro abaixo e
matado o motorista e um rapaz que viajava na boleia. Ambos foram socorridos e
morreram no hospital. O rapaz segurava um xale ensanguentado e com o nome dela,
Marlene Bittencourt, bordado em uma extremidade. A razão deveria ter lhe
aconselhado a correr ao hospital e ver a face da vítima esmagada pela carga,
mas o coração tinha pressa em rever o amado morto, morto e desolado que fugira
para lhe esperar lá aonde viesse a se estabelecer. Lugar este agora transmutado
no etéreo e misterioso mundo além da morte e para o qual ela tinha a passagem
fácil e assegurada. Correu até o quarto do seu pai, trancou a porta, apanhou no
alto do guarda-roupas a arma deste e, com um tiro certeiro no peito, pôs fim a
sua vida, partindo sua alma para um encontro em que o parceiro combinado ainda
iria demorar décadas para chegar, como se o destino perverso cobrasse juros
extorsivos pelo seu atraso em não acordar, ou não ser, por Loinha, acordada!
Era assim que ele passou a interpretar o fato, se sentindo culpado até o osso
pela morte da jovem que tanto e idealmente amava. Desde esse macabro episódio,
que comovera toda a sociedade itambeense, Loinha se tornou um rapaz amargo e
taciturno. Não deixou por nenhum momento de realizar suas funções de arauto
e despertador, pelo contrário, transformou isso em uma obrigação e não um
prazer, mortificou o seu dom e dele retirou todo o prazer e alegria. Apenas um
contentamento mórbido o acompanhava quando anunciava a um morador o aniversário
de alguém próximo, geralmente idoso, a hora de um conhecido tomar algum
medicamento para males crônicos ou badalar com furor excessivo o sino da igreja
quando se tratava de missas de corpo presente, sétimo dia ou de mês para alguém
falecido, tudo que vagamente lhe lembrasse da morte de sua amada, cujo remorso
roía sua alma feita de tempo e dor! Cogitou muitas vezes, enquanto os anos
passavam velozes e seu corpo amadurecia, em mudar de cidade e abandonar aquele
povo que o acolhera e cujos rostos, talvez por uma consanguinidade exacerbada e
comum à cidades pequenas no meio do mato, lembravam todos o rosto da sua amada
morta por conta do seu egoísmo (ainda haveria de muito tempo transcorrer até
ele entender que romantismo e egoísmo são as duas faces da moeda que a vida nos empresta na juventude, para o comércio do coração na praça do amor, onde alguns aufere lucros e a maioria termina com um prejuízo medonho!). Sempre que pensava com seriedade nessa
possibilidade de também fugir, seu inconsciente o torturava com sonhos terríveis
de caos e confusão decorrentes da sua nova covardia: crianças atrasadas no
caminho da escola, doentes sem a medicação, leite perdido por falta de ordenha,
missas vazias, encadeamentos de desacertos do tipo: Lindaura não entrega a
roupa a tempo, o Gerente Torres, sem camisa, não abre o banco, Ronildo não paga
a conta de água, a companhia corta seu abastecimento, mais roupas são enviadas
à lavadeira Lindaura que se embanana mais ainda e tem um colapso... Em todos
estes mirabolantes pesadelos, sempre lhe aparecia de soslaio a imaculada
colegial em uma janela, uma esquina ou em uma foto de família na parede para
lhe olhar com estupefaciente repreensão, fazendo-o acordar ofegante, com os
ponteiros da alma – o que quer que venha a ser isso – girando loucamente até
acertar o momento exato e ele pular da cama rumo a sua filantrópica função de
máquina social lubrificada no sofrimento e tensionada na dor. Assim ia vivendo,
sacerdote dos hábitos e mestre das rotinas e sua popularidade aumentava a cada
dia, ao ponto do único relojoeiro da cidade desistir do seu ofício por falta de
clientes, vender sua barraca no mercado onde a procura era cada dia menor e se
mudar para onde ninguém sabe. Dessa culpa, Loinha nem sequer tomava
conhecimento tamanha era o remorso soberano e ciumento que lhe roía o cabelo do relógio que batia em seu peito.
Somente na igreja ele encontrava um alívio momentâneo e, com o passar do tempo,
ia se tornando mais e mais carola. Assistia todas as missas e se confessava ao
Pe. Juracy que o absolvia do seu erro, mas em vão tamanho tinha sido a força do
amor que outrora devotara à Marlene. Seria preciso esquecê-la primeiro para
aceitar do padre o perdão, e esquecer era algo quase impossível para quem tinha
o dom de se lembrar do próprio tempo e não apenas das coisas e eventos que flutuavam em
seu leito. Na igreja, sua adoração era para a Virgem Maria, cuja imagem no
altar, abstraído a pinta sobre os lábios, era a imagem perfeita da sua amada
morta. Orava com fervor para a Virgem e pedia salvação para a suicida, mesmo
sendo admoestado pelo padre que Deus não perdoa quem atenta contra a vida. Que
ele pedisse perdão apenas para si mesmo, aconselhava-o. Uma noite, após muito
orar, Loinha sonhou com Marlene em tudo parecida com a imagem da Santa na
Igreja Matriz de São Sebastião. As vestes, a cinta e o manto azul celeste, a
paz profunda e a doçura eterna no rosto e no olhar... Apenas a pinta sobre os
lábios denunciava uma encarnação degradada e um estigma de pecado. Marlene
ajoelhou-se ao lado da sua cama, alisava seu rosto e lhe dizia que ele não era,
nunca havia sido o culpado da sua morte, pois, se ele a tivesse acordado, ela
teria embarcado com seu namorado no caminhão e seriam os dois a morrer
esmagados sob a carga de madeira. Na verdade, ele havia salvo a vida de
Eduardo Bonifácio, hoje vivo e contente ao lado dos seus pais. Se não era
motivo para se alegrar, sua morte e gesto estúpido, no mínimo, deveriam ser
esquecidos pela lembrança da vida que ele havia salvo. E disse ainda palavras
tão belas e reconfortantes que ele sorriu enquanto dormia, coisa que não fazia,
dormindo ou acordado, desde que ela havia se matado. Loinha acordou no meio da
noite e, sem saber que aquele sonho tão longo e arrebatador houvesse sido um
lampejo da eternidade, uma visão do Paraíso onde ele havia enfiado a cabeça por
um buraco no muro feito Pedro Malasartes, seu inconsciente o creditou ao fluxo
do tempo ordinário aqui na terra, e julgou que já eram cinco horas da manhã
quando era apenas a quarta hora. A princípio, o velho galo que dormia no fundo
da serraria e que, secretamente, sempre se pautava na lâmpada que Loinha acendia
quando ia ao banheiro, ao acordar ainda no escuro, para começar seu preâmbulo e
sinopse na natureza do que Loinha faria mais tarde na sociedade, isso é, marcar
o tempo, danou-se a esgoelar um canto desafinado e fiapento que logo se
estendeu a outros galos na vizinhança, futucou os passarinhos em seus ninhos
orvalhados e, aos poucos, uma entreliça de sons e lamparinas foi se desenhando
como uma teia de aranha cujo acúmulo de gotas de orvalho culminava em vibrar até
o outro lado da montanha de Dona Mira e acordar a aranha-sol, arrastando uma
manhã temporã e iniciando o dia uma hora mais cedo. Os operários das serrarias
mal chegaram e nem tempo tiveram para o cigarro e o café ordinário e habitual
antes da lida, pois Loinha já estava na esquina assoviando e gritando seus
palavrões impronunciáveis. A multidão de
alunos sonolentos e bocejantes pelas ruas parecia disputar lugar com o cortejo
de sombras que dormitavam nos batentes, garagens e quinas de muros, onde
ainda era noite; o sino vibrou com uma nota de fundo patética e escandalosa.
Durante o dia, aos poucos, a rotina da pequena cidade de Itambé fora lentamente
se enquadrando ao erro inicial do maestro Loinha Pimentel cuja alegria rediviva
dava-lhe ânimo e ímpeto em adestrar as horas serelepes e fleumáticas do pai Dia
que parecia se divertir como se cócegas alguém lhe fizesse. No meio da tarde,
quem gostava de dormir após o almoço, já havia dormido, quem tinha fiado a
receber já havia recebido e todas as arapongas às margens do Rio Verruga já
haviam ajustado seus cantos de ferreiro no embalo e na batuta do sino da igreja
soberano lá no alto da colina. Chegou o fim do dia e ainda estava claro o céu.
O pastor evangélico Waldiney, desacreditado por todos, insistia que Deus havia parado o
sol, a pedido dele, como fizera outrora com Josué, para lhe dar tempo em cobrar
o dízimo atrasado daquele povo infiel e ingrato. Conseguiu convencer a muitos e
amealhou uma boa quantia naquele crepúsculo congelado onde as andorinhas hesitavam
em começar seu show vesperal nas palmeiras da Praça Municipal! O eletricista
Raimundo, encarregado de transferir a energia elétrica dos geradores diesel,
que alimentavam as serrarias e a fábrica de manteiga Garota, para as ruas e
casas da cidade, nas poucas horas do dia em que havia eletricidade para todos –
geralmente de seis da tarde até às dez da noite – percebeu que não seria
preciso fazer isso de imediato, que poderia economizar uma hora inteira nos
motores até que escuridão viesse cobrir a cidade com seu manto furado de
estrelas. Em um longo relatório posterior deste eletricista à dona da fábrica
de manteiga Garota, a Sr.ª Maria Amélia Santos, esposa do futuro governador da Bahia
Roberto Santos, ele teceu sensatas considerações de como a antecipação das
horas durante o verão poderia encerrar o dia útil mais cedo, gerando uma
considerável economia de eletricidade que a fábrica era obrigada a fornecer aos
cidadãos como forma de tributação municipal. Dizem que ela repassou esta carta
para Dona Eloá, esposa do presidente Jânio Quadros na época, que então, junto com outras
decisões folclóricas e polêmicas, como a proibição do lança-perfume, do biquíni
e das brigas de galo, decidiu instalar no Brasil inteiro o famigerado horário
de verão cujos opróbrios e confusões devem ser atribuídas às peripécias do fleumático
e apaixonado, hoje falecido, inspetor das horas Loinha Travassos Pimentel e sua
musa suicida Marlene Alves Bittencourt, para sempre separados pelo tempo que tudo dissolve!
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