Em uma carta de autoria duvidosa, exibida com orgulho pelo colecionador
argentino Dario Iblanes, Van Gogh comenta ao irmão um velho adágio do
seu tempo: a vida imita a arte, confessa ser esta a sua obsessão e o
grande critério avaliador do gênio artístico, a saber: ver ao acaso uma
paisagem pitoresca e senti-la como uma imitação de uma tela
inadvertidamente conservada na memória.
Refletindo sobre os cristalinos
pintores flamengos, ele recorda das muitas vezes em que, encontrando-se a
vagar por certos ambientes domésticos da Holanda, fora assaltado pela
brusca sensação de estar dentro de um quadro de Vermer, de Van De Mer ou
Van Dick.
Semelhante a um dejá-vu, esta sensação suspendia os laços do
cenário com o mundo, a crença de haver em volta um universo contíguo e
ordenado que é justamente a nossa intuição ordinária da realidade. A
realidade mesma parecia emanar do quadro rememorado do qual a percepção
atual nada mais era do que uma caprichosa imitação. Nem por isso o
ambiente em volta perdia o seu encanto; ao contrário, destacada do mundo
ordinário, o cenário percebido brilhava em sua plenitude e
singularidade como num sonho ou numa obra de arte pois... "a
essência-fraterna da arte e do sonho não é outra coisa senão o poder que
a imagem tem de se destacar dos trilhos motores onde desliza nas
percepções ordinárias e ficar em pé, revelando suas infinitas
perspectivas e profundidade"...
Por esta ótica invertida, as grandes
telas da arte humana tornam-se modelos exemplares e hipostasiados,
ideias platônicas enfim encarnadas e caídas do céu. A natureza revela
então aos nossos olhos a sua secreta finalidade: imitar com perfeição a
arte das tintas e dos pincéis. Van Gogh narra nesta carta um episódio
maravilhoso quando, passeando pelos campos de Arles, via cada folha
caída como um croqui, cada árvore desfolhada como um esboço e o bosque
inteiro como um decalque de uma tela gigantesca e antevista sob as
róseas neblinas da aurora.
Paul Cézanne parece ter tido uma intuição
semelhante quando definia uma montanha como um pedaço de terra que fica
em pé para ser pintado. Após ler a carta fiquei a pensar nesta
obstinação de Van Gogh em pintar uma tela onde a paisagem usada como
inspiração fosse vista, em suas variações atmosféricas, seu cromatismo e
suas linhas, como um esforço da natureza enfeitiçada em mimar um quadro
por ele pintado. Pela data terminal desta carta, fui levado a imaginar
Van Gogh pintando o seu último quadro, Os Corvos No Trigal. Era preciso
um pouco de imprecisão e de muito movimento para que houvesse imitação
numa paisagem tão dinâmica como aquela. Ele busca algo mais gracioso e
flexível do que uma simples representação, quer o grau exato de
intensidade e pinta os corvos voando sobre o trigal como anjos negros no
paraíso iluminado. Seu espírito está conturbado pois os problemas
inferiores da condição humana, que Antonin Artaud chamava de forças
maléficas, também habitam a sua alma. Contra eles carregava no bolso uma
pistola, pois, na sua profunda lucidez, sabia não haver no mundo forças
maléficas que resistissem a uma bala bem colocada; não tinha tempo a
perder com suas dores espirituais e seu instinto lhe dizia que, se ele
sofria, alguma coisa viva lá fora era a verdadeira causa. O quadro
ficaria pronto em poucas horas. Era de uma beleza grandiosa e parecia
que a qualquer momento os corvos no trigal voariam assustados, a
natureza lhe proporcionando aquela esplêndida sensação já experimentada
de estar dentro de um quadro. Saber-se o autor do quadro e do suposto
arranjo nas forças da natureza intensificaria o seu contentamento...
Sentir-se-ia um magnífico feiticeiro! Era preciso fazer os corvos voar
sobre o trigal. Van Gogh sacou a sua pistola. No último instante sentiu
haver algo sobrando no cenário: Ele próprio! Era impossível pintar um
pintor pintando a si mesmo a pintar ao infinito....
Se ele cometeu um
suicídio estético saindo definitivamente da cena ou se o fez por outros
motivos, ninguém pode saber, mas certamente, nos instantes seguintes ao
tiro, na revoada dos corvos sobre o milharal, Van Gogh pode talvez
experimentar uma indescritível sensação de sonho e divindade que valesse
por uma vida inteira de dores e contrariedades.
1 comentários :
Curiosamente, a base das pinturas de Van Gogh, os desenhos e croquis, eram profundamente sóbrios, equilibrados e de contornos acadêmicos. Somente na fase final, quando ascendia à conquista das cores, é que suas pinceladas ganhavam um ritmo sísmico, um tremor inaudito assumia o controle dos pincéis. Não era outra coisa senão a EMOÇÃO e o pânico de errar a mão, a certeza de estar lidando com um dom quase sobrenatural, "presque magique" do reino inefável da Arte Verdadeira e Eterna. Van Gogh e Gauguin viveram esse deslumbramento da cor, cor que não se confunde com matizes. Matizes são como sons: se você produz sons aleatórios, não terás nem música, nem sequer notas musicais. Da mesma maneira, posso misturar centenas de gotas de tinta diferente que nem assim terei uma pintura, nem mesmo uma COR! A Cor verdadeira emerge da composição estudada, de uma lógica combinatória feita de sombras e cintilações, de tons e vizinhanças que faz com que este vermelho seja vermelho, este verde, verde, aquele azul, um inefável azul! Van Gogh tremia apenas por sentir e saber isso, chegava afalar sobre em suas cartas ao irmão, mas logo aparecerem críticos idiotas para falar de Expressionismo, impressionismo, tachismo e mil outras asneiras que fazem feder as escolas de Belas-Artes! EMOTIONS, VIBRATIONS, SENSATIONS de quem lidava com a lava quente da luz do mundo e congeladas na tinta estática, nos conceitos hipostasiados das academias, nos corredores cemiteriais de uma galeria de Arte!
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