domingo, 16 de outubro de 2022

OS CALUNDUS DO VIOLEIRO PALOMAR!


     
O tempo é um imbecil, pois só nos traz respostas para perguntas que não formulamos.
 Em momento nenhum da sua vida celebrada e agitada, o compositor Palomar Rocha de Melo pensou em como seria viver longe do sucesso com o qual muito cedo se acostumara, nos palcos e nas estampas dos jornais, em seus glamorosos cadernos culturais. Pois eis que, de um dia para o outro, seu nome desaparecera da boca dos redatores e críticos musicais, seus discos pararam de tocar nas rádios e na TV, seus shows começaram a reverberar no encosto das poltronas vazias outrora apinhadas de fãs entusiastas. Passado um breve período de resistência, de expectativas em ser esta apenas uma fase passageira no coração volúvel do seu público nacional, alguma opinião ruim que precisava percorrer todas as células do corpo de seus admiradores antes de ser fagocitada, Palomar se convenceu de que o encanto do público e a inspiração lhe havia abandonado, que algo havia se partido para sempre como uma porcelana no armário que, invisível e intocada, vai se rachando por dentro até o dia em que a tomamos em nossa mão e a vemos resolvida em cacos e fragmentos estiolados. Precavido e engenhoso, Palomar anunciou uma nova fase em sua vida artística: abandonaria as formas populares do cancioneiro e se dedicaria à música erudita, sua grande e secreta vocação. Doravante, se o público o esnobasse ou algum crítico mordaz o acusasse de ostracismo, a culpa seria imediatamente atribuída ao pobre nível cultural do povo brasileiro, a sua sensibilidade semibárbara e pasteurizada pela acachapante indústria cultural! E assim decidido, deitou-se a compor antífonas e sinfonias, árias e minuetos, rondós e valsas escalafobéticas! Com esse estratagema, conseguiu adiar por uma boa e gorda década o apagar do seu nome da ribalta como uma vela sobre a qual jogamos as lascas da parafina escorrida retroalimentando o calor da velha chama! Mas, seja por esta nova investida no veio extinto da sua lavra em nada resultar de valor, seja por ser o povo realmente insensível aos seus peãs e ditirambos pastorais, o certo é que a grande mídia, os músicos eruditos e seus críticos severos, resolveram também esquecer para sempre o outrora jubiloso menestrel do sertão baiano, Palomar Rocha de Melo. Foi como um pôr do sol em tarde nublada quando ninguém conseguia ver o fulgor das suas imagens musicais arder no oceano de mágoas em que se tornara seu coração. Ele agora podia caminhar pelas ruas da pachorrenta cidade de Vitória da Conquista-Ba sem mais ser importunado por fãs ou apontado por dedos de pais zelosos mostrando aos filhos um ídolo conterrâneo. Podemos saltar as vicissitudes mutantes com as quais o ostracismo fora destilando inquietudes, solidão, desânimo, tristezas e toda uma pletora de paixões tristes que, por mais que ele tentasse traduzir em novas composições, não possuindo a forma plasmada no fogo das grandes aventuras espirituais, não poderia dar vida ao seu drama patético, e ir direto às consequências: parou de vez de compor! Como é de se esperar de todo artista que se equilibra na arte como quem anda de bicicleta, bastou-lhe parar para cair! Sua queda se traduziu em uma depressão logo somatizada na forma de uma misteriosa doença, tão profunda quanto mesmo era perfunctório o seu drama pessoal e sua etiologia psicológica. Os médicos que o diagnosticaram lhe deram algo em torno de oito meses a um ano mais de vida. Fora este o segundo e álgico momento na vida do famoso compositor. Na linguagem rude do homem do campo, do sertanejo por ele tanto cantado, o esquecimento e a morte iminente fora-lhe a queda e o coice. Amargurado e acordado para o mundo ao redor do qual iria em breve se despedir, Palomar entrou em um estado de contemplação catatônica do mundo em sua cruel e indiferente azáfama e torvelinho. Nessa época, as pessoas da cidade estavam alvoroçadas com a iminente inauguração de um protelado aeroporto. A obra iria ser em breve batizada com o nome de um ilustre filho da terra e este nome iria flanar nas asas de todo avião que dali decolasse para os pícaros da fama e da glória! Com certeza o seu nome seria cogitado como o mais adequado para receber tal honraria, não fosse a vigência de uma lei que proibia batizar obras públicas com nome de personalidades ainda vivas! “Ora - pensou nosso astucioso trovador -, em breve eu estarei morto de fato, porque não antecipar esse evento, simulando minha morte, e ver as consequências que dela virão, meu nome no aeroporto, minhas canções redivivas a tocar em todas as rádios e programas Cult de TV, meus vídeos derrubando a net e as redes sociais, as homenagens, as manifestações sinceras de comoção dos verdadeiros amigos e a alegria finalmente extravasada dos falsos que me rodeiam? Não seria também essa atitude um aprendizado mortificador e exercício de renúncia ao mundo a lhe preparar um auspicioso ingresso no Reino dos Céus”? Desse jeito, com formulações onde se mesclavam o mais abjeto narcisismo com os mais sublimes propósitos espirituais, nosso voluptuoso artista, no mesmo crisol da doença que o consumia, temperou e forjou o seu plano audacioso e senil: IRIA SIMULAR SUA PRÓPRIA MORTE! Arrebatado pelo espírito operístico e bufo, começou compondo um réquiem profuso onde o cromatismo wagneriano das trompas e címbalos molhavam as asas sustenidas de suas notas na pieguice bemolizada de uma ária lamurienta e naufragavam como marrecos em um lago de emoções edulcoradas. Em seguida, construiu um refúgio secreto no sótão da sua casa, na Praça Vivaldino Menezes, centro da cidade, onde pretendia viver o resto dos seus dias, vivo no mundo real e secreto, mas gloriosamente morto e incensado no reino mágico da cultura! Fez um estoque de alimentos, remédios, computador e disfarces para a eventualidade de ter que ir às ruas sem ser reconhecido. Cuidou de judicializar os seus bens, deixando-os de herança para diversos parentes ao mesmo tempo e em testamentos diferentes, para o município e o Estado, fazendo com que a casa, o automóvel, as fazendas e tudo o mais, inclusive seu refúgio secreto, fossem embargados nos tribunais pelos herdeiros e permanecessem intocados, um território tumular feito de paredes memoriais, passagens estreitas e espaços tombados por onde ele poderia transitar feito um rei morto muito do vivo, como um dono de circo disfarçado no meio da plateia. Providenciou identidade e documentos falsos para o caso de, nos momentos finais, viajar para algum lugar muito distante onde seu passamento tivesse poucas testemunhas e nenhuma circunstância imprevisível. Quem pudesse ler antecipadamente a explicação por ele criada para tão rocambolesca farsa, jamais poderia supor que seu objetivo maior fosse mesmo o de observar como um expectador anônimo a glória póstera do seu nome. Convincente era sua insistência nos aspectos purgativos e mortificadores de uma experiência espiritual e compassiva onde toda a tônica da sua defesa recaía sobre seu desejo de poupar os parentes do sofrimento calendarizado que sua doença lhes traria, dando-lhes de uma só vez o golpe da morte súbita. E arrematava o texto com uma alusão ao conceito ético do Maquiavel que preconizava ser mais suave o mal quando este é administrado todo de uma única vez. O velório seria discreto, reservado aos membros da família e o corpo seria levado para a Capital do estado, Salvador, para ser cremado. A própria morte aconteceria longe, durante uma viagem para um show, de modo que ninguém visse nada, apenas recebendo o caixão fechado (os detalhes mais melindrosos dessa encenação revelaram aos peritos de uma posterior investigação onde estava realmente o verdadeiro gênio de Palomar, uma astúcia magistral lamentavelmente pouco utilizada na regência, nos arranjos e orquestração de suas peças, talvez, acredito, pela falta de uma motivação perversa, como esta, de tudo e a todos enganar). Na música, a articulação métrica e ponderada, a harmonia dos temas e instrumentos, a desenvoltura arabesca das linhas melódicas... Tudo serve para revelar, para expressar as potências sublimes de uma bela alma, e Palomar só conseguia arregimentar essas virtudes de composição se fosse para ludibriar, tal fora o laudo conclusivo de um psicólogo que avaliou toda a maestria com que fora encenado a morte, o velório e a encenação de Palomar Rocha de Melo. O certo é que tudo isso aconteceu mesmo em meados de agosto. A notícia da morte de Palomar durante um show em Jacobina caiu como uma bomba na pequena cidade de Vitoria da Conquista. Por acontecer em um período relativamente pachorrento de poucos acontecimentos relevantes, o fato findou por repercutir na imprensa nacional e logo o Brasil todo estava sabendo da morte do menestrel do Sertão baiano, muitos, inclusive, sabendo da existência dele pela primeira vez! O velório aconteceu em um salão solene do Paço Municipal, com multidões fazendo fila para reverenciar o caixão fechado, um capricho do morto que ninguém ousaria contestar. Maquiado, de óculos escuros, barriga grande e artificial feita com um travesseiro, coxeando de uma perna e apoiado em uma muleta, Palomar observava tudo extasiado no meio da multidão, como um espírito fora do corpo que observa os médicos tentando desesperadamente fazê-lo voltar para o plano da matéria e da carne. Não era insensível à dor da sua viúva e filhos amados, todos desmontados em prantos em torno do caixão. Aquilo era a antecipação de algo iminente e inevitável, mas testemunhar tal manifestação comovente e sincera de afeto, por mais difícil que fosse assumir tal egoísmo, era mesmo consolador e o animava a continuar a farsa. Viu amigos, parentes, conhecidos de longa data e profusão de curiosos de todas as partes. Em todos pode observar um leque indefinido de emoções, das mais nobres as mais vis, a maioria contrariando seus prognósticos e juízos consolidados: quem ele achava que lhe queria bem, parecia feliz com sua morte; quem o criticava e o difamava nas praças e jornais, parecia sofrer, quando não o fosse, pelo simples fato de não ter mais a quem atacar, curvado diante da sua triunfal entrada aos palácios da glória musical, se é possível falar em algum tipo de glória cultural nos cafundós do mundo! Em todo caso, se emocionou muito, tanto nos discursos frenéticos ao pé do caixão, quanto no cortejo até o crematório, nos momentos dilacerantes da descida do caixão às labaredas do fogo redentor, qual fênix que dali viesse a renascer para os pícaros da glória musical. Evitando qualquer exposição e lugares esvaziados onde seu rosto pudesse ser visto isolado da multidão, Palomar voltou para sua cidade antes do fim da cerimônia e, escondido em seus labirintos de adobo e madeira de lei, atrás de espessas cortinas e sótãos comunicantes, passou a observar os desdobramentos do seu bem sucedido e mórbido teatro. De um dia para outro, as estações de rádios danaram a tocar seus antigos sucessos, as TV’s exibiam documentários e retrospectivas, editoras prometiam biografias volumosas cobrindo todos os anos da sua gloriosa vida. Teve que se esconder no sótão de uma casa vizinha previamente alugada tão logo uma produtora de cinema chegou à cidade para rodar um documentário e aboletou-se na casa, toda a equipe e curiosos. O que nosso psicopompo não poderia imaginar era que a sua doença mortal fosse um efeito exclusivo do declínio da sua carreira, uma somatização de sua autoestima exacerbada que não aceitava mais voltar para os parâmetros normais, ou, o que exatamente viesse a ser o mecanismo dessa etiologia, certo era que, assim como o ostracismo lhe causara aquela doença autoimune que lhe devorava os ossos, o redivivo sucesso imediatamente reverteu o processo! Em poucas semanas, após exames feitos em nome de um laranja, Palomar descobriu que estava começando a ficar curado, coisa que sequer poderia imaginar! Neste mesmo jubiloso e secreto estado de alma, viu com êxtase e sofreguidão seus acervos serem fuçados por empolados maestros vindos dos quatro cantos do país, planejando e ensaiando robustas apresentações, e a vontade de se revelar vivo para todos começava a torturar, exigindo todas as forças da sua alma para ser contida e evitar o desastre da sua patuscada! Conseguiu se infiltrar no Conservatório musical onde suas obras inéditas voltaram a ser ensaiadas, se passando por um eletricista da prefeitura e ali, embriagado, ouvia suas antífonas pastorais gemer nas cordas e ganhar o espaço, futucando quase que de modo obsceno as partes etéreas de Terpsícore, a musa da Música, forçando-a a dançar seus lundus e minuetos. Ébrio de felicidade por estar curado e ver sua obra reconhecida pelo populacho, Palomar passou a sofrer um novo tipo, mais sutil, de “angst” existencial: precisava voltar ao convívio dos vivos para experimentar a glória que, aos vaidosos, só tem sentido e valor se convertida em aplausos e afagos, mas sabia, contudo, que se revelasse a sua farsa seria execrado e banido da sociedade como um embusteiro, a menos que possuísse um ardil que pudesse explicar a sua farsa, algo que nenhuma imaginação mirabolante, nenhum Barão de Munschausen poderia conceber! Começou a se sentir vítima de sua própria armadilha e castigado por forças superiores por ousar brincar deste jeito com coisas tão solenes como a Vida e a Morte. Porfiou noites inteiras uma solução que lhe permitisse voltar ao convívio dos seus com a honra imaculada e gozar da fama rediviva. Chegou mesmo a rabiscar alguns planos em sua caderneta, mas, secretamente adiava a execução e as providências relativas, sentindo que se aproximava o grande dia da inauguração do aeroporto Palomar Rocha de Melo! E o dia chegou! Antes de o sol raiar, pálido como um Nosferatus vegetariano, Palomar vestiu seu disfarce com impecável meticulosidade: boina italiana de motorista de táxi, bigodes postiços e ruivos, óculos de aviador que lhe cobria quase metade do rosto e um providencial frasco de desodorante contendo sulfato de amônia, clorofórmio e gema de ovos de galinha que, quando aspergidos no ambiente, causariam um insuportável fedor de gases intestinais, carniça e diarreia, promovendo o afastamento de pessoas curiosas que pudessem vir a lhe reconhecer. Uma longa capa e uma bengala rústica completavam o disfarce. Às dez horas daquela manhã gloriosa, ao lado de uma apinhada multidão e próximo à pista do aeroporto, Palomar ouvia em êxtases os políticos discursar em louvor à obra portentosa e ao homenageado mais portentoso ainda: ELE! Se o aeroporto iria permitir aos homens conquistar os ares e chegar a todos os cantos do planeta, ele, Palomar, o menestrel do biscoito avuador, como era conhecido, há muito já os precedera, profeta e áugure do progresso que, infelizmente, a morte tão cedo levara (nesse trecho do discurso, de um ensebado vereador proxeneta, Palomar se emocionou e tirou os óculos para limpar uma lágrima). Nesse exato momento em que abaixou a guarda do seu disfarce, revelando a parte superior do seu rosto, um menino - sempre um menino! – o reconheceu e, sem considerar muito esse detalhe de estar morto ou vivo (meninos vivem cagando e andando pra morte), apontou-lhe o dedo e gritou para todo o público ouvir:
_ SEU PALOMAR! SEU PALOMAR ROCHA VOLTOU DOS INFERNOS E VEIO VER OS AVIÕES! SEU PALOMAR TÁ VIVO!
Foi um estupor geral. Curiosos começaram a cercar o vulto esquisito que, inutilmente, pressionava no bolso sua arma secreta de gazes fedorentos. Palomar ergueu a bengala em um gesto agressivo de autodefesa e começou a se afastar do local, algo que só aumentou a curiosidade do público que o seguia e apupava sem saber exatamente do que se tratava. O menino continuava a gritar com convicção reforçada, à medida que o suspeito se afastava. Em poucos instantes, Palomar já saía do saguão e alcançava a pista, não sem antes tropeçar no gramado lateral, onde perdeu a bengala e os bigodes postiços se soltaram, ficando pendurados sobre o cavanhaque e o queixo. O pânico aumentou, na sua fantasiosa suposição de que seria desmascarado e, em consequência, linchado ali mesmo. A ausência de convicção de ser realmente um grande e respeitado artista contribuía para o seu gesto desesperado de fugir, e tal gesto aumentava ainda mais aquilo que no público era apenas curiosidade, sem nenhum juízo pré-fabricado. O povo corria atrás de Palomar que já alcançava o meio da pista de decolagem. O som dos discursos continuava ao longe, difuso, como se a sua própria fama e reputação fugisse, lhe abandonando ao destino ingrato que ele mesmo havia traçado. Nesse exato instante, um pequeno bimotor começava a decolar na pista, como parte da programação inaugural. Iria percorrer a região sudoeste com uma grande faixa com o nome do homenageado. Sentindo estar o povo já nos seus calcanhares, em um gesto suicida e inopinado, Palomar se agarrou nas barras do bimotor que já adejava. O avião pouco sentiu o peso de um corpo tão franzino e esquelético, ainda a se recuperar de uma doença quase mortal. Saracoteou as asas, debandou pra lá e pra cá e logo tomou os ares, deixando o povo boquiaberto e transportando pendurado no rabicho o corpo glorioso, de capa esvoaçante, do mito Palomar Rocha e Melo cuja aparição sobrenatural no dia da inauguração do aeroporto com o seu nome nunca pode ser comprovada, pois o corpo do estranho homem jamais fora encontrado, voando feito um pavão misterioso pelos céus da sua terra natal, até cair e se esbagaçar nas pedras perdidas do sertão da Ressaca, lá pras bandas do Rio Gavião que ele tanto gostava de cantar e comido por algum faminto cachorro-do-mato. As historias posteriores, os supostos cadernos de apontamentos encontrados no sótão da casa e outros indícios da sua robinsonada são todas conjecturais. O corpo havia sido cremado e a família havia proibido qualquer tipo de investigação mais acurada. Logo o assunto foi esquecido e incorporado a sua própria fama de emular imitadores e despertar alucinações coletivas, fábulas e lendas que vingaram muito mais tempo do que a sua música bizantina e agoniada.












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