quarta-feira, 8 de junho de 2022

Nas Pegadas do Lobo da Estepe!



Comecem por uma ideia simples qualquer, se for uma ideia adequada, ela vai se desdobrar em outras, e outras mais, como se vc fosse um autômato espiritual. Começarei assim por um problema assombroso que varre o mundo moderno: a depressão! Diferente da tristeza, que é uma paixão que diminui a nossa potência de agir e pensar, causada por alguma coisa externa que, na sua relação conosco, funciona como um veneno, decompondo nossas partes vitais, separando nosso ser de outras coisas que nos fortalece, a depressão parece ser uma inadequação entre nosso corpo e a nossa mente, alguma coisa interna desfocando essa relação de paralelismo entre mente e corpo. É como se o corpo do depressivo dissesse para a mente, na sua linguagem da apatia e da inércia:
_ Não quero mais ser essa personagem que você criou! Não quero mais ser esse Avatar que venho representando há décadas! 
Essa incompatibilidade entre a mente e o corpo do depressivo, caso esse diagnóstico seja adequado, nos leva à ideia de uma provável terapia nas vivências do teatro, onde podemos, por algum momento, representar outras personagens, outros Avatares. Se não me falha a memória, existe um arremedo desta terapia no fabuloso livro do Hermann Hesse, Der Stepenwolff, O Lobo da Estepe, quando a personagem da narrativa, em profunda crise existencial, conhece um subversivo Teatro Mágico, ou Teatro dos Loucos, em um beco da cidade alemã em que vive, e ali encontra um refrigério para suas angústias. Com que avidez li esta obra no fervor dos meus 14 anos! Morava então na casa de uma tia, estudando em outra cidade, e recordo sobremaneira de uma passagem onde a personagem descreve o intenso cheiro de pinho que um bosque vicinal transpirava e de como esse cheiro, penetrando pela janela do quarto dele, emprestava sua tonalidade aos seus pensamentos depressivos. Ficou-me a indelével e sinestésica sensação de ser a tristeza um sentimento de cor verde e aroma de detergente, devido ao fato de que, por uma singular coincidência, lia estas páginas enquanto a secretária da nossa tia limpava os corredores e as escadas da casa usando um detergente de forte e adocicado cheiro de pinho! Dali pra frente, sempre que me lembrava deste livro, invadia-me a consciência um forte cheiro de pinho, ou melhor, sempre que sentia o cheiro de detergente é que lembrava-me do livro, visto que não é possível termos memória olfativas, gustativas ou tácteis. Acredito que isso se deva por um artifício da evolução: se um animal qualquer, um preguiçoso lêmure do olho gigantesco, por exemplo, nosso antepassado distante (oh! como os baianos de Salvador se parecem com uma preguiça deslizando pelos galhos e becos do Taboão!) fosse capaz de evocar lembranças de um alimento saboroso, ainda que bem mais fraca que uma sensação, como toda memória o é em relação à experiência original, certamente esse animal iria renunciar à caça do alimento, ou, na pior das hipóteses, subsidiar suas esperanças de alimentação com esta sensação vicária e de contrabando. O mesmo para aromas e tépidos confortos que um abrigo possa oferecer ao sentido do tato. Talvez por isso, nunca pude ter a lembrança do cheiro de pinho na aurora da minha vida de estudante associada à visão do livro de Hermann Hesse, mas o contrário, sim! Esse episódio pueril me leva a pensar sobre um tema muito refinado e arrebatador da nossa vida psicológica, um fenômeno chamado "dejá-vu" que, para explicá-lo, todas as teorias psicológicas convergem para a neurologia do nosso cérebro (nada a estranhar, considerando que a neurologia é hoje uma espécie de "rainha das ciências" e que de tudo ama se apropriar). Todas as explicações deste sutil fenômeno que é experimentar algo como se já tivéssemos vivido aquilo antes, o dejá-vu, apontam para uma pane neural, quando a memória, que normalmente é formada após a sensação experimentada, por um curto-circuito, se forma ao mesmo tempo que a percepção: percebemos e vivemos uma situação ao mesmíssimo tempo em que memorizamos a experiência nos escrínios da memória. Teses derivadas defendem que este inefável momento ocorre quando, no reconhecimento da circunstância vivida, apelamos para memórias falsas, para coisas que sonhamos, imaginamos nas leituras ou vimos nos filmes, e seria a falsidade destas lembranças, semelhantes ao que percebemos no presente, a causa da ilusão peculiar e esquisita de duplicidade temporal, passado e presente: a semelhança profunda entre uma casa que vi no cinema com esta que visito agora seria a razão desse dejá-vu! Em todos os casos, trata-se de um fenômeno neurológico, um descompasso na ordem genésica da percepção e da memória! Aqui volto ao tema da depressão. Considerando a beatitude tremenda, o êxtase vertiginoso, "qua subtilissimo", que os dejá-vus nos proporcionam - lembrem-se do Marcel Proust arrebatado pelos dejá-vus da madeleine mergulhada na chávena de chá e da obra sublime que nesta experiência encontra início, impulso e motivação - e considerando também que memórias falsas podem estar na origem desta sensação, talvez fosse o caso de se estudar métodos e formas de induzir memórias falsas e dejá-vus nos depressivos (agora que se fala tanto em uso de alucinógenos lisérgicos na clínica psiquiátrica), preferencialmente por vias práticas de imersão artística, mas talvez por vias químicas também, de maneira que tamanho enlevo e upgrade espiritual viesse a retirar o paciente do fosso escuro onde caíra, oferecendo ao seu corpo uma outra e mais enriquecedora personalidade, feita de livros, filmes e sonhos incorporados ao estofo do seu ser, afinal, como dizia o cisne de Avon: We Are Made of The same Stuff That Dreams Are Made!  

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