Durante a febre de filmes de
Kung-fu, em meados dos aos 70 do século passado, os heróis eram submetidos a
sádicos e absurdos treinamentos até estarem aptos a perpetrarem as vinganças no
clímax final, onde um único lutador destruía duzentos adversários e levava o
público ao delírio em uma catarse de sangue cuspido, ossos partidos e mortes
grotescas onde parecia que o machucado estava vendo o próprio diabo ao
entregar-lhe a alma! Era comum, então, as crianças passarem a semana inteira
dando socos nos muros, joelhadas nos postes, correrem com pedras nas costas,
darem cabeçadas nas paredes e outras imitações no intuito de produzirem um
corpo shaolin, como se a arte marcial mirabolante automaticamente se encarnasse
naquele que passasse por rituais semelhantes de sadomasoquismo cinematográfico!
O Colégio Polivalente de Itambé-Ba parecia um hospital de feridos e estropiados
com tantos colegas cheios de calos e hematomas, luxações e entorses, band-Aids
e esparadrapos, mertiolates e emplastos Sabiá! No intervalo das aulas, os
corredores eram tomados por uma macabra e patética coreografia de tesouras
voadoras pelas costas, cotoveladas e outras manifestações de carinho oriental
que muitas vezes terminava em corpos engalfinhados rolando pelo piso, em brigas
verdadeiras, quando então toda a inspiração do cinema se desfazia e brigávamos
ao velho e clássico estilo de nossos pais: socos, garguelos, chutes,
cotoveladas e dedo no olho! Quem brigasse mordendo e puxando cabelo ficava com
fama de efeminado! Entre meus colegas, havia um dos mais entusiastas
praticantes das mortificações marciais, filho do prefeito da época e galã que
namorava a garota mais encantada da cidade, pela qual todos os meninos,
inclusive eu, éramos secretamente apaixonados! Há muito que eu buscava uma
maneira de lhe dar um corretivo pela dor que ele nos causava ao passar abraçado
na praça com a nossa linda colegial. Digo nós, mas não pensava em vingar
ninguém, pois no amor somos todos rivais, mas apenas em buscar um refrigério
para minhas dores de corno na aurora da vida! Durante três domingos seguidos,
fora exibido no Cine Fox uma série de aventuras na China medieval, protagonizada
por um herói chamado Wal-Mei, que, entre outas habilidades, era capaz de
ingrupir sua genitália quando ali era chutado, formar uma cavidade onde o pé do
agressor ficava preso e ele podia então desferir dúzias de socos no adversário,
cujo pé ficava imobilizado naquela pseudo-vagina inesperada! Seu treinamento
consistia em levar chutes no saco durante o dia todo, até este ser capaz de se
esconder lá dentro onde vivia antes da puberdade, de reativar-lhe algum
instinto secreto, afinal, nós homens somos unânimes em sentir que é mesmo o
saco a sede da alma (experimente não ter um e ter que carregar as gônadas nas
mãos... Imaginem o constrangimento ao cumprimentar alguém, lavar as mãos,
acenar para um táxi)...
Meu colega, cujo nome omito nessa
primeira versão, estava encantado com Wal-mei! Queria desesperadamente ter esse
poder de envaginamento e foi aí que eu entrei com a minha magnânima e falsa
amizade. Ofereci-me para lhe dar pequenos chutes no saco, com força suavemente
crescente, enquanto ele usaria várias cuecas, dele e de seu pai, por cima
tirando-as à medida que fosse desenvolvendo sua resistência e plasticidade
escrotal. Treinávamos todos os dias, no quintal de sua casa, onde fazíamos
tarefas escolares sob a supervisão de uma tia dele, professora de banca
escolar. Terminada as tarefas, íamos para o fundo de uma goiabeira e, como quem
faz embaixadinhas com uma bola de futebol, eu começava a dar-lhe chutes macios
no saco. Estava usando então um par de kichutes, um modelo de tênis escolar e
botas de tirar leite misturado. Foi quando ouvi a voz da sua namorada na frente
da casa, vinda, como quase todas as tardes, acompanhá-lo ao Cube Social para
tomar sorvetes, jogar pingue-pongue, e desfilar de mãos dadas! Olhei para o
galã, pensei nos beijos secretos que ele deveria depositar nas faces róseas da
minha amada e deixei que os manes do ciúme possuíssem minha alma. Tomei
distância como quem vai cobrar um pênalti, patinei no mesmo lugar para tomar
impulso e mandei ver o mais violento e sorrelfo chute no saco da história da
humanidade corneada! Feito monitor de máquina caça-níquel, seus olhos giraram
pra trás para as cavidades serem ocupadas por vermelhas e ensanguentadas bolas
que lhe subiram pela veia cartilogênica, que passa perto do cu e sobe pra
cabeça, ali ficando esbugalhadas a olharem para mim (alguém já foi enquadrado
por um par de testículos? É muito estanho, bicho! Dá vontade de vomitar!), para
então devolver o trono aos olhos destruídos pela dor profunda, e logo tudo,
bolas do olho, bolas do saco, bolas de espuma na boca desceram ao chão da
goiabeira, desmaiados como se mortas para sempre. Fui embora fingindo ter sido
um acidente, mas, ao passar por sua namorada na porta, sem entender ela o
motivo dos gritos de dor vindos lá do fundo da casa, dei uma significativa
olhada de macho territorial que ela depois deve ter entendido, pois acabou
terminando com o rendido e passou a ter faniquitos de amor na minha presença!
Meu amigo, filho do prefeito, penso que nunca me perdoou. Hoje é casado e mora
lá para as bandas do Pará. Não tem filhos e tenho muito remorsos quando penso
que aquele meu gesto exagerado de ciúmes e a maldição dos filmes de kung-fu a
ele associado possa ter sido a errante causa da sua esterilidade! Quando chegar
o dia da Redenção em Cristo, e meus grandes pecados começarem a ser perdoados,
terei espaço na consciência para chorar e me arrepender desse chute no saco. No
momento estou sofrendo por conta de outros e mais sinistros pecados! Orem pela
minha alma, ou eu lhes pego debaixo do pé de goiaba!
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