Aristóteles dizia ser a curiosidade a primeira paixão da alma,
Descartes afirmava ser a admiração quem primeiro arrebata o nosso pensamento;
para mim, criado em um universo rural do sudoeste baiano, a primeira paixão a
possuir minha alma fora a violência. Fosse nos bares da cidade onde era
frequente uma multidão ser expelida pelas estreitas portas de uma birosca,
contendo em seu interior um par de matutos encarapinhados trocando soco e
facadas, fosse nas rudes e pobres casas de meus amigos de infância onde os lenhadores
bêbados batiam sistematicamente em suas esposas e filhos ou nas brigas no pátio
da escola, a violência era uma sombra negra no écran luminoso de uma infância
ensolarada a nos hipnotizar. Quando vi pela primeira vez, em um filme de caubói,
Era Uma Vez no Oeste, do Sérgio Leone, tiros sendo disparados contra
pistoleiros que caíam de seus cavalos em câmara lenta (fora outro genial
cineasta americano, o Sam Pickpard que inventara esse recurso utilizado por
toda uma geração de cineastas), aos oito anos de idade, no antigo Cine Fox de
minha cidade, tive uma espécie de êxtase estético e saí embriagado do cinema!
Doravante, todos os assassinatos perpetrados em minha imaginação - confesso ter
sido uma criança psicopata e acredito que todas o sejam em maior ou menor grau
- eram cometidos com o requinte de perversidade que era matar em câmera lenta
meus tios e primos mais velhos, os namorados de minhas professoras e outras
paixões secretas, o dono do bar que cobrava de meus pais as dívidas que eu
contraía, o diretor do colégio... Em minha febril imaginação, todos morriam com
uma facada nas costas, em "slow motion", bailando e rolando
pelo chão como um gelo que se derrete lentamente sobre a chapa fria de uma
churrasqueira no jardim! Sobre essa pulsão primária na minha psiquê, a
violência, transcrevo no rodapé um apontamento que prolonga o tema em outros
habitantes da minha cidade, com a esperança trôpega e sôfrega de mimar a
universalidade e convencer você, caro leitor, de que também fostes um psicopata
em potencial*. Passarei então para outro afeto que o cinema suscitou-me. Fui
uma criança pobre que não podia ir às sessões mais de uma vez por semana e
quase todas as noites costumava ficar na grade do Cine Fox, devorando com os
olhos as fotos das estrelas e cartazes expostos no hall da entrada. Havia tanta
vontade em meus olhos que o gerente do Cine Fox, sentado em um banco lateral e
atento a qualquer problema na projeção, não conseguia evitar a compaixão e
findava por deixar-me entrar para ver o resto do espetáculo (ele nunca fazia
isto antes que dois ou três rolos do filme, quase a metade da maioria deles, já
houvesse sido exibidos, feito esses vendedores de laranja que oferecem apenas o tampo da fruta descascada aos meninos pidões mesmo sabendo que não mais venderá o que sobrou da laranja!). Neste hábito, acredito, esteja a origem da minha
paixão pela escrita como obsessão por narrativas: eu via o filme pela metade e,
ao voltar para casa, não conseguia dormir enquanto não criasse para mim mesmo
uma hipótese plausível para as partes medianeiras e finais do filme que eu
havia visto momentos antes. Era impossível dormir sem um nexo racional que
explicasse porque aquele ator na lancha atirava contra um marinheiro na praia,
a moça rasgava uma fotografia ou de onde saíra aquela freira voando com um
chapéu de abas largas pelos telhados das casas em Picadilly Street. Era preciso
por a imaginação para fervilhar e findei por tornar-me um cineasta retroativo,
uma espécie de detetive cinematográfico e ainda hoje, décadas passadas, sigo
tendo como foco e tema de tudo que escrevo, o meu passado, não por saudosismo
ou pelo conforto de uma memória relativamente prodigiosa que me fornece tudo que
preciso para rabiscar minhas histórias, mas sim para ver se um dia consigo
encontrar um nexo entre minhas experiências e ter, finalmente, ainda que
inventado, um sentido para a minha vida cuja razão tão tardiamente entrou em
cena, como um filme visto do meio em diante!
* Nos fins de semana, eu trabalhava como porteiro do único
cinema de minha cidade. Isso me rendia, além de alguns trocados, um passe para
ver todos os filmes da semana. Minhas recordações deste breve período, dos
filmes incluídos, se reduz a cenas de marcante violência. Havia na cidade um
mecânico de nome Aristides (ali, para compensar a infâmia de uma vida inglória,
os homens simples possuíam nomes de heróis gregos e romanos: Leônidas, Horácio,
Heitor, Leandro...) que passava a semana inteira trabalhando em sua humilde
oficina. Aos domingos, após limpar a graxa do corpo com sabão e solvente,
vestia sua melhor roupa e, com a esposa e cinco filhos unidos no mesmo perfume,
desfilava garboso em direção ao cinema. Hemingway dizia que poucos homens tem
estilo, já vira cães com mais estilo que muitos homens, e poucos cães tem
estilo; pois ali estava um cachorrão estiloso! Aristides comprava os ingressos
e com um palito nos dentes, ao lado da borboleta, ia introduzindo os filhos em
fila indiana; sua esposa, muito gorda para entrar de frente, fingia olhar os
cartazes laterais e entrava de lado. Finalmente entrava Aristides. Entregava-me
peremptório os sete bilhetes, fitava-me nos olhos e dizia:
_ Se dentro de cinco minutos não tiver cacete, vou embora e
quero meu dinheiro de volta! - Cacete era cenas de violência, de socos e
pancadaria. Com o fim do cinema spaghetti e antes do gênero kung-fu dominar a
sede por filmes de ação, passávamos naquela época por uma crise de violência e
o cinema foi invadido por filmes românticos: Al Di Lá, O Candelabro Italiano,
Love Story.... e outros melodramas. Cinco minutos depois, conforme previsto e
prometido, saíam os filhos contrariados, a esposa desapontada e Aristides com
tanta fúria nos olhos que eu tremia de medo. A ameaça de violência que ele
representava é uma das poucas lembranças indeléveis que guardo desse período.
De certo modo, a violência fora-me relevante e posso entender a importância que
ela tinha no imaginário e na vida pachorrenta de Aristides!
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