terça-feira, 12 de abril de 2022

QUE LOUCURA, BICHO!



Havia um soldado que, para não ser enviado ao campo de batalha, resolveu se passar de louco. Sua loucura ensaiada era passar o tempo inteiro no quartel revirando gavetas, futucando tudo, revirando os colchões e exclamando para tudo que achava:
_ NÃO É ISSO! NÃO É ISSO! NÃO É ISSO!
Uma junta médica foi escalada para o avaliar. Ele entrou na sala e foi logo abrindo os arquivos, jogando tudo pro ar, vasculhando a mesa, xeretando as pranchetas dos psiquiatras, os bolsos, e sempre gritando seu bordão:
_não é isso! não é isso! não é isso!
OS médicos, unanimemente, resolveram dispensá-lo do serviço militar e assinaram um laudo conjunto atestando sua insanidade. O Cassiano, então (chamo de Cassiano todos os falsos loucos), apanhou o laudo das mãos do médico e exclamou, dando um tapinha no papel:
-É ISSO! É ISSO!

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Conversando ontem com um amigo, sobre os loucos que marcaram nossa infância, usei um argumento bastante conhecido. O de ser essa identificação entre loucura e doença mental um fato muito recente. Antes da ciência afirmar ser todo o espírito humano, toda a consciência, um epifenômeno de metabolismos e estruturas neuronais, antes dessa parafernália de neuro-transmissores e hormônios na origem dos delírios, os loucos eram diagnosticados e tratados de maneiras bem distintas de um simples doente. Eram feiticeiras, videntes, possessos, tarados, criminosos, palhaços e nômades errantes Eram tratados com reverência mas também com inaudita crueldade. Eram interpretados como arauto do além, mas também galhofeiros a divertir o povo na feira (Me recordo de uma cena inolvidável da minha infância quando uma louca da cidade chamada Dionê [agiota que teve um fim bárbaro, assassinada e que contarei depois os detalhes] interompeu o sermão do Padre na primeira fila da missa e começou a interferir na pregação. O PAdre Juracy a escutou solenemente e depois comentou para todos os fiéis: "vejam vocÊs! Deus Às vezes fala através dessas pessoas!"). Eles, os loucos, eram tudo, menos doentes. É certo que a medicina evoluiu e os reuniu a todos em um mesmo diagnóstico. Mas a questão, genealógica e mais sutil é: o que motivou a ciência a fazer isso? Quem pagou? Resposta simples: o capitalismo emergente. As fábricas surgiram no horizonte da Europa, de um dia para o outro, e todos os outsiders foram convocados a engrossar as fileiras das fábricas. Os tarados, as prostitutas, os ladrões, os atores de circo, os videntes e cartomantes, os rufiões e traficantes.. Todos entraram no esquema, menos.... O LOUCO! Esse não queria dar lucro de jeito maneira e não era mais permitido que indivíduos pudessem viver sem dar lucro aos novos senhores do Capital (mesmo os milionários tinham que depositar suas fortunas nos bancos e bolsas, caso quisessem se garantir de uma tragédia qualquer). A própria definição de louco como doente começou por esse critério econômico: a indolência, a energumidade, a "lezeira", o corpo-mole. a prega, a baianidade nagô, a presepada e por aí vai.... Tudo sintoma de loucura.
Meu amigo ouvia tudo calado e só caiu no riso quando eu dramatizei esse momento histórico com uma pantomima. Disse-lhe que o louco, ao ser convidado para rodar o torno de uma tecelagem, olhou de modo vesgo e aloprado para o capataz e gritou-lhe de modo histriônico:
_Euuuuuu? Trabalhar? Bater ponto? Levar esporro?...  SÓ SE EU FOSSE LOUCO!!!
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