domingo, 7 de maio de 2017

CINCO EM UM ou a “bildung” da minha piroca!

                           

 Ao ter sua primeira ereção, Adão gritou para Eva:
                 _ ARREDA! ARREDA! Que ninguém sabe até onde isso cresce!

                                            









01) Ativar retrofoguetes!



Corria o ano de mil novecentos e setenta e três. Era verão, o que acrescentava certos requintes na atmosfera mágica de Itambé-Ba, tais como, a tênue dilatação das tardes causada pelo equinócio (que eu imaginava como um grande búfalo a peitar a terra com os chifres), as revoadas de andorinhas se despedindo no poente sanguinário e os circos mambembes que insuflavam nossas noites de magia e fuzarcas. O verão trazia também seus perigos como o incêndio no único posto de gasolina no centro da cidade; da origem do fogo, nem a posterior perícia soube precisar. Quando o vigia acordou de um pesadelo – onde o seu corpo era assado em um espeto, nas labaredas do inferno -, as chamas já lambiam vorazes o papel de parede do escritório e os calendários onde modelos nuas se distorciam no calor em satânicos simulacros. Saiu ele gritando pela praça, pedindo socorro e acordando a todos. Sua voz estridulosa acordava os galos que, sob os reflexos de uma falsa alvorada criada pelas labaredas, anteciparam a cantoria nos telhados e quintais. Quando o último morador acordou, os primeiros já formavam filas com baldes d’água apanhados no chafariz da praça. Não funcionou. O fogo se alastrava quando alguém aventou que as chamas poderiam atingir os tanques e explodir o quarteirão feito a bomba de Nagasaki. O pânico se espalhou mais rápido do que as chamas. Os moradores na vizinhança do posto apanhavam suas crianças e idosos em camisas de dormir e buscavam abrigo em casa mais distantes. A casa dos meus pais ficava no alto da colina e ao lado da igreja. Para lá se dirigiu u’a multidão de sonâmbulos arrastando rubros travesseiros e lençóis, pois tudo era rubro à luz do sinistro. Muitos ocuparam a igreja, os mais íntimos vieram se abrigar em nossa casa. Com seis anos de idade, eu já dormia sozinho em um quarto todo meu, porém, com medo de que eu viesse a cair, minha mãe fazia-me dormir em uma cama de casal que meu avô havia construído com o lenho de um centenário jatobá. Ali eu me encontrava nessa noite dormindo como um gordo rei anão quando o povo chegou. Quatro a cinco crianças foram acomodadas em minha cama na esperança de que dormissem (o susto era tão grande que mesmo no subnigrum do quarto, brilhava o branco dos seus olhos na expectativa da grande e iminente explosão que iria destruir o mundo). Conspirava para isso o rumor das mulheres salmodiando pelos corredores, o murmúrio ansioso dos homens pendurados no muro do quintal, desesperados por suas casas, seus pertences, um papagaio esquecido, um gato, um cão......

Certo era que eu dormia e que - de um modo impreciso, através das sombras espectrais, de premonições inconscientes ou percepção subliminar – pressentia o que estava acontecendo. Havia mais de um ano que não urinava na cama, mas não deveria ser difícil reativar um hábito ainda fresco como este. Sabemos também que os animais usam a urina para marcar o território e, muito provavelmente, eu sentia-me invadido em minha cama transformada em berçário. Quando o primeiro tanque explodiu e a casa tremeu, eu mandei ver. Dormia nu devido ao intenso calor e o pinto de uma criança quando urina gira feito um regador de jardim. Penso que sonhei sendo um heroico bombeiro em mortal combate contra chamas traiçoeiras. Na manhã seguinte encontrei, na mesa do café, meus hóspedes noturnos. Estavam de banho tomado e me olhavam furtivos como se eu tivesse uma daquelas armas secretas da tv, um flip paralisante, um raio laser, um retrofoguete!



02: A Felicidade é Uma Arma Quente em Sua Mão!



Muitos anos se passaram até que esse regador de ureia voltasse a ser protagonista de outro burlesco episódio. Aos 13 anos de idade, concluindo o ensino fundamental no colégio Polivalente de Itambé, eu participei de uma gincana e fui escalado para ajudar minha equipe em uma barraca de uma quermesse, vendendo doces, brigadeiros, mingau de milho e outras “sacanagens gastronômicas”. Quem ficava no balcão era uma colega, Silvana, e eu me limitava a guardar o dinheiro em uma pochete que, para não ser roubado, eu trazia bem na frente, sobre o fecho éclair da minha calça US.TOP. A noite inteira, Silvana vendia de tudo e, sempre que precisava de um troco, metia a mão na minha pochete, apanhava o maço de notas, passava o troco, e tornava a enfiar o restante lá dentro, como se minha pochete fosse a serventia da sua casa. Aquilo findou por me causar um misto de excitação e irritação também – a moral agrária em que fui criado via com péssimos olhos mulheres com tamanha desenvoltura com dinheiro e pouco caso com homens reduzidos a caixas-registradoras ambulantes. Tramei um plano misto de vingança e safadeza gratuita. No último dia da quermesse, um domingo, eu apanhei minha pochete e fiz um longo corte na parte interna que fica colada na roupa. Em seguida, abri a braguilha da calça, coloquei meu pinto pra fora e enfiei o pinto com todos os periféricos dentro da pochete, fechei e fui para dentro da barraquinha esperando que a Silvana, em sua desenvoltura e pouco caso, metesse a mão ali procurando por um troco!!! Não sei qual anjo protege as meninas ingênuas do interior, mas o certo é que nessa noite, inexplicavelmente, não apareceu nenhum cliente com dinheiro graúdo que precisasse de troco algum. Todos, absolutamente todos, traziam sempre a nota exata: 2 Cruzeiros pra um pastel, 5 cruzeiros para um brigadeiro, 10 cruzeiros para um cachorro quente com refrigerante... Em momento nenhum a Silvana precisou meter a mão na cumbuca onde lhe esperava meu cacetinho. E eu ainda provocava exibindo e quase esfregando a pochete sempre que ela passava perto de mim. Lembro-me de um breve instante onde pensei que o encanto protetor fosse ser quebrado: uma senhora comprou alguma coisa, pagou com uma nota graúda e se afastou, puxando uma criança pelo braço. Tão logo percebi isso, notei também que a Silvana nada comentou. Queria ficar com o troco para ela. Não por cobiça e desonestidade propriamente dita, pois tudo que arrecadávamos era para a gincana. Se ela não fora tão desonesta como parecia ser, eu também não fui tão honesto assim quando dobrei-me sobre o balcão e gritei quase desesperado:

_ Ó O TROCO! Ó O TROCO! Ó O TROCO!

E foi a criança pequena quem, orientada pela mãe, voltou-se para a nossa barraca e respondeu com sua voz pueril sem ainda saber a pronúncia certa:

_ Pode “ficá" com o TOCO! 

E foi assim que a festa e a história terminaram. Eu fiquei com o TOCO murcho dentro da pochete e a Silvana deve ter ficado com o TOCO CRU PEGANDO FOGO!





03) A COSTELA DE ADÃO, um Esboço autobiográfico.



Alguns escritores são tímidos, não podemos esperar grandes coisas deles. A timidez habita também o pensamento e os livros que eles escrevem, conscienciosos e pudicos, perdem-se em evasivas. Infelizmente sou um destes. Uma timidez congênita manifestava-se bem antes do meu nascimento. Eu, lembro-me confusamente, não queria nascer; todas aquelas luzes, médicos acadêmicos em roupas brancas, enfermeiras curiosas e, principalmente, ter que sair nu! Não dava. Tiveram que fazer uma cesariana e eu chorei, chorei de vergonha! Custa-me acreditar que passei quatro anos sem falar com nenhuma garota da minha idade e tudo por um incidente tão ordinário! Costumava eu no décimo ano de minha vida acompanhar minha mãe nas visitas regulares que ela fazia ao Educandário Cristo Rei, misto de orfanato, colégio e convento somente por mulheres habitado. Um dia, convidada a conhecer as dependências do orfanato, ela deixou-me sentado no refeitório sozinho, isto é, com as vinte e sete internas entre nove e doze anos sentadas na grande mesa ao lado. O choque fora brutal. Todos interromperam a sopa que tomavam e fitaram-me por longos segundos que na ausência de minha mãe duravam uma eternidade. Súbito uma delas, a líder do grupo, soltou a colher sobre o prato de metal retumbando amplificado no silêncio da grande sala. Levantou-se indignada em direção à porta de saída e ao passar por mim fitou-me dos pés à cabeça. A insolência no seu rosto coroava-se com um nariz aquilino de ventas triunfais. Pôs um dedo longo e pálido no meu rosto soletrando:
- ME-NI-NO BÔ-BO!
Todas as vinte e seis internas, uma por uma, repetiram em fila indiana aquele gesto e produziram em meu espírito minha primeira ideia universal: todas as meninas são cruéis! Hoje devo-lhes algo mais. Quando relembro a intermitência daqueles diabinhos com seus dedos judiciosos concebo, do mal infinito, a mais justa das imagens. Meus primeiros esforços para superar-me foi esconder o rosto entre as páginas de um livro acreditando, como ainda acredito, ser o conhecimento capaz de corrigir a natureza humana. Que engano! Quanto mais eu distanciava-me do mundo mais configurava-se ele titânico como gigantes que somente à distância podemos vê-los inteiros. Li uma passagem na vida de Diógenes, o cínico, que bem ilustrava o meu drama. Costumava ele em praça pública condenar com veemência, execrar sem piedade os amantes do vinho. Um dia, após um belo discurso na Ágora, o retórico Demóstenes se dirige à taberna com amigos para um trago comemorativo. Na porta, contudo, avista Diógenes vindo na mesma direção. Para evitar a publicidade do seu hábito, Demóstenes se esconde no fundo da taberna. Diógenes porém já o tinha visto e por nada deste mundo perderia a oportunidade. Ao passar pela porta grita para o fundo da taberna:
- Demóstenes! Quanto mais recuas, mais penetras...!
Demóstenes ainda ensaia uma réplica: “o mal não está em entrar, e sim em não sair.” Mas sua resposta soava como clichês de um retórico. A minha situação era análoga. Quanto mais eu recuava mais inibido ficava. Um dia, sem causa específica ou aparente, eu acordei curado. Era domingo de carnaval e encontrava-me no bucólico bairro de Santa Tereza - Rio De Janeiro. Programado para o final da tarde estava o desfile do bloco “As Carmelitas”. O nome deve-se ao convento dessa ordem religiosa ali instalado e os foliões do bloco fantasiavam-se de monges e freiras. Um mau gosto pode ser criativo, por exemplo, os quadros do pintor Archimbold com seus tiranos em faces de repolho e tipos pantagruélicos com nariz de chuchu, porém ver lindas mulheres em vestes sacras e pudicas conspurcava o espírito pagão daquela festa. Era preciso fazer algo. Lembrei-me dos carnavais romanos onde o povo carregava falos gigantescos pelas ruas em homenagem à Príapo, um dos êmulos de Dionísio. Corri ao atelier de uma escultora amiga e com uma peça de espuma fiz u’a máscara em forma de glande pintando-a de vermelho. Em papelão fiz o tronco do falo que ia do pescoço ao joelho, com algodão modelei as veias entumecidas, o prepúcio e o nó pintando com amarelo Nápoli que lembra a cor da pele. Pendurado no joelho ia um saco plástico com duas bolas de basquetebol dentro e coladas sobre o saco, o cabelo de duas perucas. Ao ouvir os primeiros acordes da banda vesti a fantasia, tomei um trago e desci eufórico a ladeira fantasiado de “pica”. Emergi no seio da multidão. Os Gnósticos emasculando-se e lançando à deusa Cibele seus membros decapitados não os tinham tão festivos e vibrantes como eu. Esperava converter os foliões, aflorar os avatares pagãos. Não dera certo. As crianças que me seguiam em grande algazarra foram puxadas pelos pais. A banda hesitava. Os foliões interromperam a dança e fitavam-me indignadas. Eu pulava e sacudia o saco de bolas, enchia a boca de água e cuspia para o alto como se estivesse ejaculando quando um indivíduo vestido de rabino agrediu-me com um guarda-chuvas. As mulheres atiravam-me crucifixos com violência, pisavam no saco de bolas e as vaias sobrepujavam o som da banda. Algo então se passou. Blocos de memória desabaram sobre mim e encontrei-me no antigo refeitório do Educandário Cristo Rei. A multidão ensandecida era agora para mim aquelas meninas com pernas de harpias chamando-me de menino bobo. Os manes da vingança possuíram minhas forças. Como um touro solto pelas ruas da Espanha investi contra a multidão. A glande de espuma protegia minha cabeça dos golpes, o tronco de papelão travestia-me em um aríete. Apanhei senhoras idosas por baixo das pernas lançando-as para cima, com um único giro derrubava cinco nocauteando-os com a cabeça vermelha. Abraçaram-me apertando com força e feito um membro masturbado eu desmaiei gozando de volúpia e vingança.
    No outro dia os jornais sensacionalistas exploraram o ocorrido usando de títulos equívocos: FREIRAS CARMELITAS LEVAM SURRA DE PICA ou HAVIA PICA PARA TODOS e outros ainda mais pusilânimes. Não importava muito. Eu estava curado da timidez e posso agora discorrer sobre um tema que muito me persegue: o sexo. Considere, gentil leitora, que o autor possui, entre outros miseráveis atributos, um conhecimento bastante limitado sobre o tema, não ultrapassando os dedos de sua mão o número de mulheres que compartilharam os lençóis engomados do seu leito. Antes de abordar o universo feminino há mais um obstáculo a ser superado, a reflexão sobre algumas experiências que for preciso fazer. Poucas coisas revelam-se tão tenebrosas para mim quanto a reflexão qualquer que seja o tema. Quando menino li uma entrevista do escritor argentino Jorge L. Borges sobre o pavor que lhe inspirava a visão de um espelho. Aquilo inquietou-me profundamente aflorando-me a consciência de um pavor semelhante. Eu sentia confusamente a mesma angústia sem contudo experimentá-la diante dos espelhos. Olhava para eles, fazia garatujas e o máximo que conseguia era rir da minha estupidez; mas havia ali um medo envolvido que eu precisava descobrir. Anos depois, folheando um livro sobre arte européia, deparei-me com a foto de uma escultura de Auguste Rodin chamada “O Pensador”, era Dante Aligheri representado com a mão no queixo em expressivo estado de profunda reflexão. Ericei os pelos do crânio de tanto medo e descobri finalmente que o pavor sentido não era da reflexão de imagens e sim das ideias refletidas no pensamento. Ainda hoje quando vejo alguém imóvel com ares de estar refletindo alguma coisa fujo apavorado se possível for. Estarei assim escrevendo sem pensar muito no que digo.
        A primeira vez que fiz “contato” com o outro sexo, se há alguém que possa se interessar por isso, foi aos dezessete anos quando fui seduzido por uma professora de artes no ginásio. Ela combinava inteligência, sensualidade e beleza com muita sensibilidade e seduziu-me com tanta determinação que o marido dela, se soubesse do que houve entre nós, seria obrigado a inocentar-me. Norah, era este o seu nome, costumava excitar as suas alunas no curso de escultura com leituras do “Decameron” de Giovanni Bocaccio, depois mergulhava-as nuas em uma bacia com cera mole usada para tirar moldes. Quando a cera secava ela raspava as partes do molde em contato com o sexo das modelos. Com esta cera ela preparava um cosmético e quando usava-o os homens da cidade ficavam loucos seguindo-a como cães ao cio de uma cadela. A cidade era pequena e muita gente sabia do nosso caso. Um dia, estando o marido dela viajando à negócios, ocorreu uma cena curiosa. Estávamos no quarto, eu e Norah, quando ouvimos passos no telhado. Era um ladrão, alguém que sabia do nosso amor e supondo que não ousaríamos surpreendê-lo visto ser a nossa transgressão algo mais escandaloso - de fato era assim, tal a moral que imperava em nossa pequena comunidade. A princípio ele agia furtivamente mas logo fora tomando liberdades. Abria a geladeira, ligava a televisão e ainda olhava pela fechadura do quarto fazendo comentários maliciosos. Fiquei em silêncio, sofrendo ainda da famosa timidez, enquanto ele colocava a prataria dentro de um saco. Norah ficou furiosa e exigiu de mim nesta noite prazeres capazes de compensar todos os bens perdidos. Não fui contudo o garoto libertino que deixo transparecer. Dias depois caí de amores por uma colegial com onze anos de idade. Nunca experimentei um amor tão platônico como aquele. Era algo tão sublime e assexuado que surpreendeu-me um comentário feito por um amigo meu. Minha púbere amada já era u’a mocinha com seios crescendo a olhos vistos. Meu amigo perguntou-me: “ você já viu os peitinhos de Arlene?” , e eu, o verdadeiro amante, o menino das cartas e das lágrimas, fui surpreendido. “ Não, não tinha percebido.” Fora a minha resposta, mas deixarei esse meu lado angelical para outra hora. Basta-me narrar agora o acontecimento que destruiu todo o meu romantismo, todo o encanto que nos arrebata quando amamos. Fui estudar em outra cidade e me hospedei com uma família que tinha laços estreitos com a nossa. Três habitantes compartilhavam comigo a casa de dois andares: Gustavo, um comerciante obeso e paranoico, sua esposa Betina, um anjo sobre a terra e sua cunhada Jussara, a mais perfeita contrafação de Betina, um demônio nascido de incubações e sucubação. Gustavo tratava a esposa, jovem de vinte anos, como uma pajem medieval sempre trancada no quarto por cujas paredes ouvia-se muitas noites a voz do seu marido trêmula e agressiva por tanto álcool ingerido. Betina tinha em mim uma linha de fuga. Líamos muitos livros, cultivávamos um jardim e dávamos longos passeios de bicicleta quando Gustavo viajava à capital. Jussara odiava-me, escondia a minha farda colegial, trancava os livros no armário e criticava todos os ditos espirituosos que eu pronunciava. Uma noite durante o jantar senti um pezinho delicado acariciando o meu por baixo da mesa. Eu que já estava “caído” por Betina vi estrelas naquele momento. Ela correspondia ao meu afeto e a vida descortinou-me a estrada florida que conduz ao paraíso. Ao lado dela Jussara fitava-me de modo estranho. Dias depois encontrei uma carta anônima sobre a minha cama. Alguém dizia desejar-me com paixão, arder todas as noites pensando em mim e não suportando mais a minha indiferença. Betina amava-me, não havia mais dúvidas. Durante a noite a presença de Gustavo impediu-me tocar neste assunto. As duas irmãs conversavam a noite inteira em voz baixa e fitavam-me sorrindo. Eu correspondia sorrindo também para elas como um noivo no altar. Na hora de dormir encontrei Betina na cozinha com uma jarra de água entre os braços e os seios. Ela perguntou-me sussurrando: “ leu a carta?”... SIM! Foi o máximo que consegui responder. Minhas pernas tremiam. Tive ímpetos de beijá-la mas havia a jarra de cristal no meio... “existe alguém nesta casa que te ama muito” ela disse no meu ouvido. 
Ouvimos um grito: BETINAAA... - era a voz de Gustavo. Ela quase derruba a jarra ao ouvir o chamado. Próximo da escada ela voltou-se para mim dizendo: “ não tranque a porta do seu quarto, terás visita...!”Não sei como subi os degraus da escada. Ao deitar na cama o meu corpo tremia. O coração batia disparado. Deixei a porta entreaberta e as luzes apagadas pois a casa não tinha forro e entre as paredes e o telhado a luz denunciava-se. A presença de Betina antecipava-se em todos os ruídos de uma noite escura. Minha imaginação fervilhava e temi que um surto onanista me assaltasse. Seria um desastre se ela me encontrasse exaurido e impotente, assim pensava a mente imatura de um adolescente. Fiquei pensando em coisas repugnantes para conjurar o delírio erótico. A imagem de Jussara trajando biquíni na piscina era um jato d’água no fogo do desejo. Ela possuía nos quadris uma grande mancha cheia de cabelos e grossa como a casca de uma ferida. Dava-me náuseas só em pensar. Acabei por adormecer. Acordei tarde da noite com uma tépida mão me acariciando. Dizem que Adão conhecera Eva ao sair de um sonho. Eu não via nada na escuridão e pensei estar ainda sonhando. Havia um corpo quente e nu sentado ao meu lado na cama. Articulei o seu nome - Betina - mas ela silenciou-me com um longo beijo na boca. Nos abraçamos como dois famintos. Meu pijama sumiu em um passe de mágica. Eu só pensava em penetrá-la repetindo mil vezes: “te amo, te amo...”
Quando toquei em suas coxas senti algo áspero e cabeludo em minhas mãos. Era a mancha repugnante! Era Jussara quem estava deitada em minha cama. Corri ao interruptor e o rosto dela bruxuleou sobre os brancos lençóis. Era ela então a autora da carta! E Betina tivera a coragem de ser cúmplice em uma trama tão sórdida! Quando percebeu a minha decepção, Jussara desenhou um sorriso cínico dizendo-me:
- Quem você esperava? A minha irmãzinha?
Eu nada lhe respondi. Saí andando pelo corredor, desolado e nu. As paredes pareciam estreitar-se e lamentei que elas não esmagassem-me os ossos. A porta do quarto de Gustavo estava aberta. Olhei para a cama iluminada por um pálido luar e vi o corpo de Betina enlanguescido sobre o dele. Sua perna volumosa ondulava sobre o respirar entrecortado. Parecia estar tendo um sonho lindo e quase sorria como uma deusa saciada. Dentro da jarra d’água a dentadura de Gustavo enviava-me uma silenciosa gargalhada. No outro dia, com um pretexto qualquer, mudei-me para um pensionato e jurei não amar nunca mais. O tempo revelou-me ser esta jura mais um capricho de um menino mimado. Continuei por muitos anos procurando a minha “alma gêmea” e nunca a encontrando. Diógenes, o cínico, andava em plena luz do dia com uma vela na mão procurando por um homem. Compreensível era a sua ironia pois, enquanto um peixe é sempre um peixe, um pássaro, sempre um pássaro, o homem raramente é um homem. Felizmente para mim, “une femme c’est toujour une femme” e não perdi ainda a esperança. Carrego nesta busca uma chama no peito, tão ardente que explicá-la como instinto não basta, é quase uma predestinação mas sobre ela nada direi para evitar superstições. Diógenes fora abordado um dia por um sacerdote délfico - seita que adorava Apolo, o deus vidente. Com a arrogância própria dos sacerdotes ele perguntou-lhe:
- Diógenes, responda-me. De onde vem esta luz com a qual você espera encontrar um homem?
Sentindo a inspiração teológica desta questão, Diógenes apagou a chama com um sopro suave e respondeu:
- Se você me disser para onde ela foi, eu lhe direi de onde ela veio!



04) HISTÓRIA DA SEXUALIDADE ou A Mala Adormecida no Bosque!


      Quando Nicanor Ferraz nasceu, no seio de uma famigerada família patriarcal, todos os seus tios vieram ao batizado e quase sufocaram a criança com a fumaça encorpada dos generosos charutos que o pai encomendara na capital só para celebrar seu novo herdeiro. Iniludível foram os vaticínios e as falocráticas profecias. Um a um, aproximavam-se do berço e diziam seus perversos oráculos:
_ Isso vai ser um descabaçador triste! – Disse Tio Dodô.
_ Pais de Família, tremei! – Sussurrou Tio Vavá.
_ O maior lascador do Sudoeste! –Profetizou o velho Edgar.
Mal terminava o cortejo de bênçãos cenobitas quando apareceu o Tio Salústio, homem recatado e que destoava dos irmãos pela moral puritana e idealismo religioso. Vendo e ouvindo os perversos irmãos profetizarem um destino de Luxúria e perversão para o sobrinho recém-nascido - e pensando no profeta Jeremias que dizia estar o destino inscrito nos órgãos -, Salústio apanhou Nicanor nos braços e disse para toda a família ouvir :
_ Com vinte e cinco anos, todo o facho de seus quartos vai se apagar. Ele vai ser um capado. Vai ser padre, bispo, cardeal... E tamanha vai ser sua santidade, sua pureza, que só Deus sabe onde ele pode chegar!
As mulheres da família se comoveram com sentença tão espiritual e se animaram a enfrentar a matilha de velhos perversos – seus maridos -, apanhando das mãos de Salústio o galeguinho dos olhos azuis e enfeitando-o com panos e mimos em uma festiva e tatibitate algazarra.
Não esperavam, no entanto, a vinda do último tio, Djalma, que longe morava e apareceu quase no fim do batizado. Tomando ciência do ocorrido, da intervenção moralista do irmão xereta de padre, Djalma, dono de quatro lupanares na região do garimpo, comentou com os irmãos já bêbados no alpendre da sala:
_ A praga do Salústio é muito forte! Não posso anular. Mas lhe garanto uma coisa, caro José, seu filho não vai ser brocha a vida inteira, não! Isso lhe garanto. Aos quarenta anos, vai lhe aparecer uma rapariga das Europa de lascar o cabo da manivela e vai fazer seu filho ser macho de novo que isso de filho padre é coisa de homem corno. Onde já se viu? Criar filho que não lhe dê neto!
E para confirmar sua fama de bruxo e pai-da-mata, Djalma realizou seu velho truque de magia elementar que comoveu e curou a cachaça de todos que a presenciaram. Tirou uma sovela do alforje e fez um corte raso na coxa esquerda, com uma pena de ganso improvisada recolheu seu acrisolado e hermético sangue e com ele escreveu sobre a superfície de um espelho a promessa a pouco enunciada: « quando completar quarenta anos... ». Enquanto escrevia no vidro polido, todos olhavam boquiabertos para a lua gigante e gelatinosa subindo a Serra do Sincorá. Na superfície da lua, em letras manuscritas e vermelhas, as palavras escritas por Djalma surgiam gigantescas e espalhavam suas rubras e pestilentas sombras sobre as nuvens e o pasto. As galinhas piaram agourentas no poleiro, os cães uivaram furibundos e um mocho piou histérico sobre o telhado. Duas mulheres desmaiaram na cozinha enquanto Djalma, possesso, entoava em língua Romani suas cantilenas de satânico pai-da-mata.
Dito e feito! Que os cordéis e folhetins possam falar com mais propriedade da vida picaresca do Nicanor Ferraz. Seu aprendizado nos bordéis do tio Djalma, suas fugas espetaculares de alcovas adúlteras, suas virgens arrebatadas e suas idosas ressuscitadas pelo seu mastro arretado... Falta-me tal vigor com a caneta e as palavras; faltava a ele o elán literário de um Casanova... Salto assim para o profético dia do seu vigésimo quinto aniversário. Seu pai, temendo a profecia do filho ficar impotente, enviou-lhe para a capital, Salvador, quando a data fatídica coincidia com o carnaval e onde, acreditava ele, seria impossível alguém pensar em outra coisa além de bunda, peito, pau-no-cu, buceta e caralho.... Não adiantou. No segundo dia, debilitado pela esbórnia e por um resfriado, Nicanor Ferraz foi a uma farmácia tomar uma injeção de Benzetacil, uma sulfa poderosa que era, então, a panaceia para todos os males. O farmacêutico bêbado, aplicou-lhe nas nádegas um poderoso anestésico que veio a mortificar completamente suas protuberantes partes. Saindo da farmácia e assediado pelas piriguetes do largo conhecido como « Relógio de São Pedro », Nicanor Ferraz teve então, pela vez primeira, a experiência do fracasso. Ele era sócio fundador de um bloco de carnaval, o Jacu, e usava uma mortalha com o logo do bloco por ele inventado. Na sua terra havia um tipo de urubu, chamado urubu-rei que possuía a cabeça branca, era enorme e tinha por peculiaridade, quando começa a devorar uma carniça, começar pelo ânus e por ali ir puxando as vísceras, devorando-as e recusando a carne propriamente dita para outros animais de menor realeza. Estampava a sua mortalha uma grande imagem de um urubu-rei, similar à águia romana, e, contornando-a, a frase latina IN CULUS PRINCIPIT : ‘pelo cu começamos’. Sua tática costumava ser infalível: Ficava imóvel, fazendo « terra » nas meninas e esperando que elas o disputassem. De fato, no carnaval, todas queriam ser a mais atrevida. A primeira a se aproximar, requebrando na sua frente ao som do trio elétrico, ele abraçava-lhe pela cintura tirando-a para dançar; minutos depois, com sua voz embargada e dengosa, a mão já dentro do bustiê, formulava lhe no ouvido suas ensaiadas, hipnóticas e mágicas palavras:
_ Você trabalha na casa de quem?
E antes que a garota completasse algo do tipo « trabalho na casa de dona Guiomar », ele dava-lhe uma « panhada» com os quadris esfregando sua impudicícia volumosa entre as nádegas da pequena. Desta vez não funcionou. A garota até que tentou ajudá-lo saracoteando o bumbum semicoberto por um shortinho jeans na almofada dormente e macia que tinha se tornado sua genitália, Mas esta, liquefeita pelo anestésico, havia caído definitivamente em sono profundo. A vida de Nicanor Ferraz acabou nessa tarde de carnaval. A história dos votos em seu batizado, contada em segredo pelas babás e criados, e há muito considerada uma bizarra crendice de tios parvos, caiu sobre seu ânimo como uma sentença lapidar. Voltou cabisbaixo para a casa dos pais e se enfurnou de vez na fazenda, acampando nas matas, caçando e pescando, deixando a barba crescer para nela esconder suas mágoas e seus traumas.
Sua fama de ermitão e beato o incomodava. Queria mesmo era lascar a mulherada mas a madeira relutava em empinar. Esgotou a farmacopeia brasiliensis, comeu centenas de cantáridas cultivadas em vidros cheios de amendoim e até remédio estrangeiro mandou buscar sem outro resultado além de o deixar grogue e com as juntas petrificadas. Ficava a cada dia mais esotérico (coisa de broxa) e amaldiçoava o falecido tio Salústio que vaticinou sua efêmera virilidade. Cobria o corpo de patuás e tentava aprender os feitiços do seu tio Djalma, hoje um ancião que trocara sua mistagogia pela venda de cachaça com infusão, se arrastando de muletas em uma venda na beira da rodagem. Era ele quem o consolava, dizendo-lhe:
_ Tenha paciência. A mulher que vai lhe curar há de aparecer no dia dos seus quarenta anos. Ela vai lhe curar. Palavra de pai-da-mata! – Repetindo essas palavras até no leito de morte, enfático como se todo o valor da sua posteridade dependesse desse seu vate. Foi célere seu esquecimento. Antes de apodrecer, ninguém mais se lembrava do velho Djalma, exceto o esperançoso sobrinho que os meninos perversos de Itambé batizaram de «rôla preguiçosa». Com o fim da censura militar, pipocaram programas e reportagens sobre a sexualidade humana nas revistas e na televisão. Nicanor Ferraz começara aos poucos a dar ouvidos à história de que tudo poderia não passar de um trauma psicológico, que sua imaginação estudiosa, insuflada de fabulações e superstitio, bem que poderia estar sugando a energia do seu bilau, pois não conhecia ele muitos solteirões que enlouqueceram por causa de esperma subindo pra cabeça? Era o seu caso. Seu próprio cérebro inventara um dispositivo psíquico para desviar sua gala e esculpir com ela seus viscosos fantasmas, mirações e visagens.
Decidiu então contratar um psicólogo e me incumbiu de vasculhar as páginas amarelas em busca de algum profissional disposto a viajar da Capital até o interior para tratar do seu caso. Fiz muitas ligações até encontrar uma que se apresentou como drª Gilma Melasso, psicóloga formada na Itália e curiosa em conhecer o pitoresco interior do Estado. Acertamos os detalhes e fui apanhá-la na rodoviária no dia e hora combinada. Passei um bom tempo na estação, observando os passageiros apanharem as malas no bagageiro e desapareceram pelo burburinho da rodoviária. Esperando que estava por uma mulher de trajes modernos e gestos extrovertidos, demorei em acreditar que aquela senhora de cabelos pretos, óculos de grau e roupas semelhantes às de uma freira fosse a Drª Gilma Melasso. Cumprimentamo-nos cerimoniosamente e carreguei a sua mala até o carro. Esperava conhecê-la melhor no percurso até a Fazenda Santa Rosa onde ela ficaria hospedada e iria tratar do melindroso caso de impotência sexual, caso este que, por mais que eu tentasse, não encontrava espaço para abordar, mesmo insistindo no meu interesse literário por uma história tão comum mas de detalhes tão bizarros. Um único comentário profundamente moralista, que Drª Gilma fez durante todo o percurso, foi uma pá de cal nas minhas esperanças: estávamos na primavera de 1986. Uma grande explosão de um vulcão no oceano pacífico havia espalhado toneladas de cinzas na atmosfera do planeta e, por causa disso, os poentes e as auroras apresentavam uma coloração vermelha de inusitada intensidade e cuja extensão cobria quase um terço do céu. Chamei a atenção da Drª para esse espetáculo. Ela sequer olhou o horizonte, se limitando a comentar:
_ O Sol se levanta e se deita rubro de vergonha com o que vocês fazem de noite aqui no interior!
Depois desse ríspido comentário, não disse mais nada, apenas olhava-a de soslaio. Era mais fácil para ela fazer um tarado se envergonhar do que fazer meu amigo recuperar a virilidade ; mas eu nada entendia da psicologia de Melaine Klein que, na entrevista ao telefone, ela me disse ser a sua especialidade. Ao entrar na fazenda pude observar outro raro fenômeno, desta vez, muito provavelmente, causado pela minha mente excitada. As franjas da noite já encorpavam o crepúsculo agonizante sobre a estrada. As árvores, feito choupos em um pântano mal-assombrado, pareciam curvados, os galhos caídos e os troncos inclinados. A cerca de arame..., como se uma boiada houvesse passado por cima delas deixando-as flácidas e perpendiculares ao capim quebrantado. A porteira da sede, o frondoso gravatá, o telhado da casa, tudo parecia desmanchar sob o peso da gravidade conspirando uma enfeitiçante cumplicidade da natureza com o seu proprietário que sofria há anos de frouxidão nas pudendas partes. Esse detalhe sobrenatural avivou-me a crença de haver algo fantástico na origem daquele ‘causo’ que justificasse uma novela bem contada. Deixei a sisuda Gilda Melasso aos cuidados de seu anfitrião paciente e voltei para a cidade com uma lista de compras pedidas por meu melancólico amigo, preocupado com finas iguarias que pudessem agradar a sua hóspede oriunda da sofisticada capital do estado.
      No outro dia cedo fiz as compras e pedi que o dono do armazém se encarregasse de entregá-las. Eu iria adiar minha visita para deixá-los mais à vontade, mas um episódio inesperado precipitou meu estouvado retorno a fazenda de Nicanor Ferraz. Ao vasculhar meu carro em busca de não-sei-o-quê, deparei-me com uma frasqueira que Drª Gilda havia esquecido no carro. Levei comigo à sala e, pensando que ali pudesse haver algo de premente necessidade, resolvi abri-la, o que fiz sem muita dificuldade. Surpreendeu-me sobremaneira seu conteúdo. Um grande frasco de pimenta baiana em pasta, um estojo cilíndrico de trinta centímetros de comprimento aproximadamente e um exemplar de « Satiricon » de Petrônio, o clássico latino do erotismo romano no seu agonizante e lascivo declínio. Passeei os olhos no livro empolgante e quase de madrugada, embriagado pela leitura voraz, deparei-me com o sentido de tão insólito conteúdo da frasqueira: O personagem desse livro, Eumolpo, um sibarita e libertino comensal das orgias romanas, torna-se subitamente um impotente e busca desesperado por uma cura. Uma feiticeira africana aplica-lhe um aberrante e eficaz tratamento. Mergulha um falo de couro por vários dias em uma infusão de pimentas, em seguida, introduz o oleoso, enorme e ardente falo no ânus do coitado que dispara urrando de dor pelas ruas de Roma até descobrir, esbaforido, que uma medonha ereção o havia acompanhado por todo o seu calvário e que ele estava, por fim, curado. Não precisava ser nenhum paranoico para entender quais eram os métodos e intenções da Drª Gilda Melasso. ‘Que vigarista!’ Pensei comigo mesmo. Abri o cilindro que havia na frasqueira e confirmei minhas suspeitas. Um falo de couro enorme e envelhecido como prova de que já fora usado muitas vezes. Aquela pilantra vivia então aplicando esse escabroso golpe nos pobres impotentes da Bahia e, quem sabe, do Brasil inteiro! Amanhã mesmo ela seria desmascarada! Quase não dormi, furioso, e bem cedo, sem tomar café, parti para a fazenda a tempo, esperava, de libertar meu amigo da charlatania encomendada.
        Encontrei meu amigo com um radiante sorriso no rosto, sentado na varanda e com os dedos vasculhando os dentes como se arrancasse fiapos de uma fruta, uma suculenta manga consumida no café-da-manhã! Me esforcei para aparentar naturalidade e nem sequer perguntei pela hóspede à espera de que ele tocasse no assunto. Como ele não falava outra coisa além de me contar suas repetidas piadas, abordei o tema, direto, como era do meu estilo:
_ E então? Tá mais animado? – E usei o braço em riste em um gesto inequívoco e obsceno que não deixava dúvidas a que eu estava me referindo. Nicanor Ferraz gargalhou:
_ Aquele problema não existe mais! – e completou, quase inaudível pois não tirava os dedos dos dentes – Aproveite e faça companhia a Drª Gilda que ainda não tomou o seu desjejum!
Naquele exato instante, Drª Gilda Melasso apareceu na varanda, usando um robe de Chambre que reconheci como sendo da falecida mãe de Nicanor Ferraz, uma idosa que, sofrendo de Alzheimer, costumava vagar pela cidade sob o sol do meio dia usando joias e roupas íntimas entre as carroças dos feirantes. Gilda beijou Nicanor Ferraz e me cumprimentou sorridente. Fiquei pasmo com a transformação da sisuda moralista do último encontro. Tomamos café e eu não tive coragem de tocar no assunto da frasqueira. Parece que não haveria mais necessidade de artifícios tão horripilantes. Ela gargalhava com as histórias do seu novo amante e deu-me dois tapas no ombro que quase me fizeram cuspir o bolo de puba que eu, atônito, mastigava. Na despedida, Nicanor Ferraz me chamou em reservado, entregou-me um envelope me pedindo que o levasse ao fórum da cidade para registrar sua firma no documento ali contido. Voltei para a cidade. No caminho dei carona para um grupo de cinco crianças que iam para uma escola rural e que se apertaram todas no banco de trás. No banco da frente ia a frasqueira e o envelope. Curioso, minutos depois de sair da fazenda e rodar pela estrada empoeirada, decidi abrir o envelope e ver o seu conteúdo. Era um certificado, uma espécie de diploma em letras góticas e douradas onde se lia:
O COLÉGIO PANAMERICANO DOS CHUPARINOS DE BUCETA CONFERE AO ILUSTRÍSSIMO SENHOR NICANOR FERRAZ, MEDIANTE LUVA DE NCZ$ 800.000,00 CRUZADOS NOVOS, O TÍTULO DE SÓCIO EMÉRITO E PATRIMONIAL.
Assinava o diploma a tesoureira, Drª Gilda Melasso, e o novo sócio, Nicanor Ferraz. Não acreditei nos meus olhos. Minha mente foi tomada pela imagem do meu amigo embriagado pela sua nova e nada romântica modalidade sexual. Sentado na varanda, ele perquiria os enormes dentes tentando retirar algo ali encalacrado. Não era fiapos de manga como pensei:
_ ERA PENTELHO! CARALHO! ERA PENTELHO! –Gritei! As crianças no banco de trás se assustaram. Uma sorriu crispado, outra choramingou. Enrubesci e pedi desculpas. Elas pediram para saltar. Obedeci e as deixei na estrada já próximas da escola. Apanhei a frasqueira e lancei-a sobre uma moita de mato-cipó na esperança de que nunca mais fosse encontrada. Aquele não era decididamente o desfecho que eu esperava para a minha novela fantástica que havia começado como um arremedo de um conto de fadas. Para completar a esbórnia que o destino me pregava, um velho caminhão seguia na minha frente e, entre a nuvem de poeira que ele me lançava, podia-se ler uma frase no para-choque quase apagado: « Enquanto houver língua e dedo, mulher não me mete medo!»
Nem me recordo mais o que fiz com aquele diploma de merda. Me sentia um palhaço. Se algo de relevante me ficou disso tudo, é que eu, ali mesmo, decidi que nunca mais escreveria nada, de tanto que esse episódio me deixara enojado!





4.1 AROMAS DE UMA NOITE DE VERÃO



      Quando voltou de Salvador, acometido pela maldição ou acidente que lhe deixara sexualmente impotente, Nicanor nada contou do seu mal para ninguém, e manteve durante anos a sua fama de garanhão adquirida nos anos dourados da adolescência. Frequentava as festas e boates – na época, chamados de “inferninhos”, e assediava todas as mulheres mesmo sabendo da decepção inevitável que lhe esperava. Em uma dessas noites efervescentes, vestido como Tony Manero, personagem de John Travolta em “Embalos de Sábado à noite”, Nicanor fazia pose, encostado em seu chevette “Jeans” um carro customizado da General Motors, onde a pintura imitava uma calça jeans. Ouvia “Another Bring in the Wall” no toca-fitas Road-star do seu carro, enquanto dentro da boate Patrick Hernandez enfeitiçava os quadris com “Born To be Alive”. Lembro-me bem, pois eu era o porteiro da boate, apesar de menor de idade. Duas garotas de uma cidade vizinha, a insípida e pachorrenta Itapetinga, uma delas passando mal por abusar da bebida, saíram à procura de um táxi. Não havia táxis em Itambé. Nicanor ofereceu para levar as garotas até a casa de uma tia delas na periferia. Colocou os dois brotos no carro e partiu com ar de matador. A rapaziada, nas janelas do inferninho, comentava que as duas donzelas não iriam resistir ao charme do galã e resolveram esperar a volta de Nicanor para saber os detalhes. Eram rapagões interioranos, homens feitos exceto pelo fato de nunca terem feito sexo, fãs ardorosos das aventuras que Nicanor dizia ter protagonizado (muitos até empalideciam de tanto se masturbar imaginando-se personagens daquelas orgias imaginárias que o picareta brocha contava com riqueza de detalhes). De fato, Nicanor, tão logo chegou à casa da tia das meninas, deixou a mais nova, indisposta, entrar em casa e reteve mais um pouco a mais velha no banco do carro. Bastou-lhe duas frases ensaiadas no ouvido carente da piriguete para ela se entregar! Beijos e amassos robertocarleanos fizeram sacudir a lataria do chevette Jeans, mas na hora H.... O amendoim de Nicanor pareceu se encolher mais ainda, ficou quase do tamanho de um botão de rosa (Lembrei-me agora de Rosebud, botão de rosa, nome do trenó do milionário Hearst, em Cidadão Kane. Desculpem a mudança abrupta, mas tive que pensar em algo para não me excitar com a imagem da moça nua e arfante no banco traseiro do chevette esperando o fumo que não vinha. Voltemos à cena). Desiludido, revoltado, Nica se despediu da moça, não sem antes pôr a culpa nela por não saber excitá-lo, e voltou para o inferninho de Reginaldo onde os amigos esperavam para ouvir suas bravatas. Deu umas voltas extras pela cidade dormente para gastar o tempo e voltou para a boate. Dirigia com uma mão só, a outra, dentro da calça, por trás, toda enfiada entre as gordas nádegas. Ali ele esfregava, alternadamente, os dedos no ânus onde se acumulava o fétido furdunço do suor acumulado por toda a noite dançando no frenético estilo “disco”. Mal se aproximou da boate, foi cercado pelos rapazes ávidos por notícias ardentes. Um deles pôs logo a cabeça dentro do carro e perguntou bem alto:
_ E Aí, Nica pica! – Era esse o apelido do perverso – Comeu?
Com o olhar gélido de Sylvester Stallone, Nicanor afirmou categórico:
_ AS DUAS!
Um dos rapazes, mais cético, ousou desafiá-lo:
_ DUVIDO! DUVI-D-Ó-DÓ!
Hílare e incontinenti, Nicanor retirou a mão que dormia no suor da bunda, esfregou-a no rosto do rapaz e de todos ao redor, dizendo:
_ Cheira! Sinta! Cheiro de buceta!
Imagino que, para meninos inexperientes e virgens, a semelhança entre cu e buceta seja algo tão verossímil como, para um cego, a semelhança entre a cor púrpura e o lilás. A aurora raiava - rubra de vergonha com a putaria das noites itambeenses – quando fechei a porta da boate, ouvindo dois garotos comentarem, enquanto limpavam o rosto maculado:
_ Sujeito lascador esse Nica!
_ Quando eu ficar homem, quero ser igual a ele!




4.2 OS BADALOS DO SINO – UM CONTO DE NATAL



      Nicanor era um tipo bastante mal-humorado e vivia a praguejar contra tudo e todos. Ultimamente, dera para usar uma expressão bastante inconveniente, que lhe caíra no gosto, para manifestar seu desagrado e seu esgar: QUE SACO! Gritava ele diante de qualquer circunstância, um afazer doméstico, um entrevero no trabalho, ou mesmo um domingo em que o sol se recusasse a brilhar! Para tudo ele praguejava com os olhos chispando de fúria e rosto crispado, cor de azedume: QUE SACO! QUE SACO! QUE SACO! Certa manhã, passando por essas plagas, um anjo – desses anjos que não gostam muito dos seres humanos – ouviu seus vitupérios ao vento que o transportava e que castigava Nicanor, sem camisas, sentado à beira de um açude a pescar. O anjo não gostou do linguajar grosseiro do rapaz e decidiu castigá-lo. A um piscar de olhos, o anjo fez desaparecer do corpo de Nicanor o saco escrotal e imediatamente surgir duas úmidas fissuras na palma das suas mãos, onde agora, soltos, ficavam seus dois testículos desensacados. Queria eu ser um escritor para descrever a angústia e o desespero de Nicanor quando se viu em tal situação. Largou n’água seu anzol, o embornal onde ficava seus apetrechos – não sem antes olhar para o embornal como se este ganhasse um novo e sagrado sentido – e voltou para casa equilibrando nas mãos os dois azuis e úmidos bagos. Em casa, sentou e esperou que o pesadelo terminasse enquanto a noite caía. Aprendeu que podia fechar levemente os dedos sobre os testículos, mas se apertasse.... Huuuhuu! Gemeu quando tentou! Experimentou então, com muito desacerto, pois movia as coisas com as mãos fechadas, abrir o armário do banheiro, destacar dois grandes chumaços de algodão do pote, estendê-los sobre um prato, umedecer o algodão e por ali em cima – como um curiango a zelar pelos filhotes – os dois ovinhos sem casca. Mas não se passou um minuto para uma sensação nunca antes experenciada, um misto de depressão, angústia, dor e desespero, tomar conta de todo o seu ser. “Meus bagos! Não posso viver sem eles!” Filosoficamente concluiu! “Talvez eu possa, pelo menos, dormir com eles no algodão!” Pensou e tentou dormir com a esperança de estar vivendo um pesadelo que seria enxotado ao amanhecer. Sonhou que era um costureiro sendo perseguido no asfalto por dois caminhoneiros bêbados e – pior – querendo no fundo da sua alma ser capturado e usado para saciar a fome de mulher dos dois tarados estradeiros, sonho este atribuído à falta dos bagos. Acordou revoltado com a estupidez do sonho e olhou para as fístulas abertas e úmidas das mãos feito estigmas de uma crucificação. Correu ao prato, apanhou os bagos e dormiu com eles entre os dedos semicerrados, os braços estendidos no colchão! Desta vez sonhou seus sonhos normais e chegou mesmo a acordar com a sua habitual ereção, mas continuava sem o saco escrotal e um dos bagos havia perigosamente rolado da sua mão para uma quina da cama, quase caindo no tapete do chão! Não foi nada fácil para Nicanor se acostumar com aquela situação, mas o fato de morar sozinho atenuou sua humilhação. Nunca fora mesmo dado a apertos de mão, de acenos ou de efusivas gesticulações ao falar. Gostava muito de tirar meleca do nariz e sofria quando surgia uma daquelas lá no fundo do septo nasal, impossível de se capturar sem contorcionismos da mão, coisa agora lhe interditada... Outra relevante dificuldade fora a de amarrar os sapatos, o que ele fazia com os dentes e que lhe dava uma estranha sensação de ter um focinho no lugar da mandíbula (mandíbula, aliás, quebrada pelos socos de um marido cuja esposa ele seduzira, mas esta é outra história, mais escabrosa e menos surreal). Coçar o ouvido, então... Entretanto, nos dias de calor, Nicanor experimentou uma sensação tão prazerosa que quase justificou a maldição vivenciada: no pico da temperatura, quando os termômetros marcavam quarenta e dois graus Celsius à sombra, ele fechava as duas mãos, deixava ínfimas aberturas entre os dedos e as punha – com as bolas dentro - debaixo da torneira da pia, que ele a abria com o queixo. Huuu! Huuu! Gemia de prazer, dentro da cozinha imunda de restos de comida e latas abertas de sardinha (não me perguntem como ele as abria tendo que segurar duas bolas “ad tempore”!), ao sentir sua alma – sim, meninas, a alma está localizada nos bagos e não na glândula pineal, como pensava o preclaro Descartes! – mergulhar na fria água elementar onde, na primeira manhã do universo, o espírito boiava! Seu corpo todo gelava e arrepios subiam-lhe pelos braços, lombo, pá e espinhaço, o intestino todo lhe ficando refrescado. Era como mergulhar na Fontana Di Trevi se relando na Anita Ekberg ao seu lado! Um bom tempo se passou e o fim do ano se aproximava. Nicanor não saía mais de casa, sua barba cobria já metade do peito e muitas vezes ela pensava em se matar apertando os bagos na mão até cair desmaiado, as bolas caindo no sofá e indo parar perigosamente perto de Cordelius, seu gato; mas Cordelius cheirava aquilo e saía correndo, miando como se estivesse enfeitiçado. Ao acordar, Nica tinha vontade de jogar no lixo aquelas bolas da sua escravidão, viver como um emasculado eremita, um novo São Pacômio, o doce e paranoico confessor de Santo Antão, e essa ideia o animava a se levantar – sem, contudo se esquecer de memorizar onde elas caíram para não ter a desgraça medonha de nelas pisar! Gelava só em pensar! O problema era que, tão logo liberto delas, vinha-lhe o esmorecimento, a languidez e a pusilanimidade de um capado que beatificação nenhuma compensava! Voltava correndo para suas bolas amadas e as guardava como uma tilápia que recolhe seus alevinos na maternal bocarra! Ia dormir chorando feito um menino faminto que vai pra cama sem ter merendado.
    Foi na Véspera do Natal, sabia disso pelo distinto badalar dos sinos e pelas músicas natalinas que vinham das lojas distantes – pois há muito que renunciara a mudar as folhas do calendário -, que ele teve um sonho. Sonhou que andava por uma chuva fina em noite escura e trazia as mãos dentro do casaco, pois dessa fria água invernal ele não a queria sobre os bagos. Súbito, surgiu na sua frente um velho de barbas brancas e de semblante transcendental. Ele lhe pediu ajuda para visitar os lares e distribuir entre as crianças do local, uma profusão de brinquedos empilhados em um vistoso saco que trazia nas costas, e que parecia pesar uma enormidade, pois que, feito uma cornucópia, de incontáveis presentes transbordava. Para ajudá-lo, Nicanor teria que deixar as bolas dentro dos bolsos do casaco e usar as duas mãos. Hesitou. Aquele velho parecendo Papai Noel que se virasse! Mas algo falou mais forte dentro dele e esse algo lhe vinha do fundo do coração. Quando menino, recebeu um dia a visita de Papai Noel em cima de um caminhão e dele ganhou dois lindos brinquedos que nunca pode esquecer: uma gaita de teclas coloridas e um carro de bombeiros cuja sirene soava quando se movia no assoalho. Nicanor tomou sobre as costas, como Simão que levantou o lenho do Senhor no Calvário, o saco imponderável. Andou a noite inteirinha ao lado do sorridente ancião sem nada reclamar, embora a ausência de suas bolas – como se delas fluíssem todo o seu élan e todo o seu plasma vital – viesse transformar em pesadelo o seu sonho lindo. Tal ausência das bolas lhe fazia ver, a cada vez que se mirava em um vidro de carro estacionado ou em uma vitrine de natal iluminada, o seu reflexo efeminado, com andar lascivo e gestos afetados, como se estivesse se transformando em um gosmento e lúbrico estilista de celebridades. Mesmo assim perseverou e entregou todos os presentes que o ancião lhe pedia. Não acreditou que houvesse mesmo terminado e vasculhou o fundo escuro do saco. Ao voltar os olhos, viu então o óbvio: o ancião vestido de Papai Noel, gargalhando sobre um trenó alado e ameaçando levantar vôo com as renas encantadas. Nicanor gritou – e nossa voz nunca consegue sair quando gritamos nos sonhos: “Espere! Espere! O Saco! O saco!” Papai Noel então lhe respondeu: _ “Fique com ele! Você o merece de volta! Hou! Hou! Hou! Hou!” E subiu tinindo, cantando pneu no licor da noite vesperal.
Nicanor acordou suando frio. Sentou-se na cama e levou a mão entre as pernas. Lá estava de volta o seu saco escrotal! Novinho em folha, isto é, completamente enrugado, como um fóssil vivo provando que ele descendia de seres pré-históricos, a ontogenia confirmando a filogenia, como afirmavam Karl von Baer, Charles Darwin e Ernst Haeckel. Dentro do saco suas bolas secretavam os mais alucinados hormônios como filhos pródigos que voltam para casa. Nicanor pulou da cama eufórico e saiu correndo pelas ruas completamente nu, feito Arquimedes em Siracusa gritando: “HEUREKA! HEUREKA! HEUREKA!” Que em grego significa: “ MEUS BAGOS! MEUS BAGOS! MEUS BAGOS!
E é por isso que, em reverência a esse episódio mágico em sua vida, Nicanor torna-se um homem profundamente religioso, não blasfema, não vitupera nem come nada nem ninguém na semana do Natal!



05) O PRIÁPICO GERENTE DO CINE FOX


      Last, but don’t least, esses episódios falocráticos da minha falocrática cidade continuaram ganhando proporções cada vez mais trágicas e “volumosas”. A última, em relação às anteriores “aquecidas” que acabo de narrar, pretende ser um desfecho orgástico e fecundar a mente de vocês, gentis leitoras, ao narrar o escabroso caso do gerente do Cine Fox, Antônio Caidor. Antônio Caidor esteve ausente da cidade por três dias. Era um homem tão simplório que ninguém notaria a sua ausência não fosse ele o gerente do único cinema da cidade, o cine Fox, cujas grades cerradas neste período aumentou ainda mais a melancolia noturna da praça Pequeno Ferraz onde o cinema se localizava. Ele havia decidido consultar um médico na Capital pois temia que a notícia do seu mal chegasse até a seus conterrâneos causando-lhe um grande constrangimento. Para se justificar, trouxe da Capital dois grandes lançamentos de Hollywood e evitou comentar o diagnóstico da sua doença cujo único sintoma era o de andar com as mãos sempre no bolso da calça, calças, aliás, bastante folgadas quando a moda de então ditava roupas mais apertadas na cintura e na barra. Dois meses depois, com o recrudescer do seu mal, Antônio Caidor decidiu não mais sair de casa. Fechou o cinema causando grande comoção aos moradores que passaram então a questionar o que estaria acontecendo com o taciturno solteirão escondido numa casa de esquina e tomada por um matagal que de um terreno baldio prolongava-se até a sua porta lateral. No silêncio das frias madrugadas, seus gemidos entrecortados puderam ser ouvidos pelos vizinhos do quarteirão; alguém telefonou para um irmão de Antônio, um modesto comerciante de grãos em outra cidade, e dias depois toda a família do doente sentou praça na pequena casa, decidida a isolar a vítima da alheia curiosidade. Na Câmara de Vereadores, sob o adejar solene de mariposas em torno do lustre de cristal, o tenente Robson, presidente da casa, após sua habitual citação de um verso dos “Upanishades”, abordou o misterioso mal do seu fiel eleitor e insinuou a possibilidade de uma epidemia a pôr em risco toda a população da cidade e da zona rural. A cidade ainda se recuperava de um surto de meningite que havia inflacionado de cruzes o pequeno cemitério local. A audiência sonolenta reagiu com um murmúrio que se ampliou pelas ruas, praças e lupanares perversos iluminados por ligações clandestinas na rede elétrica municipal. Às três horas da manhã, no prostíbulo de Maria Goiaba, o delegado Osmar Farjala fora arrancado dos braços da cafetina para uma reunião urgente com o prefeito, o juiz e o padre. Os primeiros raios do Sol encontraram a rua de Antônio isolada por cavaletes e os vizinhos retirados até à vinda do médico que viajara, para vacinar seu rebanho de gado, a uma distante propriedade acessível, em boa parte do percurso, somente a pé ou a cavalo. O irmão, a tia e a cunhada de Antônio Caidor tratavam de acalmar o pânico suscitado afirmando não se tratar de nada infeccioso mas relutando em explicar o que se passava pois haviam jurado ao paciente não revelar a natureza do mal que tanto o envergonhava. Trancado em seu quarto, Antônio Caidor observava os curiosos por uma fresta na janela. Deste ângulo podia ver o alvoroço dos meninos ao descobrirem na sua lata de lixo a coleção de fotogramas que ele levara anos colecionando, sempre a recortar e colar os rolos de filme enquanto outros eram projetados. Os meninos apontavam os fotogramas para o sol, fechavam um olho e se deliciavam com o desfile de estrelas nuas: Jane Fonda em “Barbarela”, Charlotte Rampling no filme “Zardoz”, Úrsula Andrews, Rachel Welch, Cláudia Cardinali em “Sol Vermelho”... um cortejo de seios e nádegas que a cidade nunca houvera visto graças à tesoura do zeloso guardião dos bons costumes e da moralidade. U’a multidão na esquina olhava os fotogramas e teciam picantes comentários. Entre uma e outra fisgada de dor, Antônio tremia ao pensar que as fotos pudessem, com propriedade, serem associadas ao distúrbio de sua saúde, mas a presença da sua tia, uma evangélica fervorosa, acabou se tornando a mais crível e comentada causa para o despojo da sua apimentada coleção de imagens. No final da tarde o médico finalmente apareceu. Acompanhado pelo delegado e dois policiais, Dr. Carneiro fora logo se desculpando pelo atraso e pediu compreensão à família pelo transtorno que a ausência de sua opinião balizada era, no fim das contas, a única responsável. Fingiu não ouvir a cunhada dizer que o doente não queria ser examinado e fora logo em seguida entrando no quarto. Antônio Caidor estava deitado, embrulhado até o pescoço por um grosso cobertor apesar do sol estival fulgurando nas frestas do telhado. Esticou o braço até uma gaveta, apanhou um envelope com os exames feitos na capital e o entregou ao médico cuja estatura imponente à contraluz da janela daria-lhe a configuração de um anjo não fosse seu branco avental manchado de estrume e cheirando à urina de cavalo. Dr. Carneiro nunca havia visto um caso semelhante e não se lembrava a que doença específica se referia o lacônico diagnóstico do médico da Capital embora o nome não lhe soasse estranho. Tinha quase certeza dele constar no “Vade Mecum” que sempre carregava na pasta e lamentou tê-lo esquecido na fazenda. Andou pelo quarto com passos meticulosos e soletrava o nome com ares solenes de profunda reflexão: PRI-A-PIS-MO, PRI-A-PIS-MO...
_ Posso ver onde está doendo?- Perguntou-lhe incisivo.
Antônio Caidor implorou-lhe segredo e somente quando teve certeza de que o médico nada contaria, retirou o cobertor e exibiu a sua genitália insolente, um pênis entumecido e grotesco apontado para o teto feito um negro obelisco. Antônio respondeu à anamnese e comentou o seu temor de o mal se alastrar por todo o corpo pois a área adjacente a sua genitália estava excessivamente rígida. Para endossar o seu temor, Antônio dava petelecos em várias partes do púbis e as batidas ressoavam como se alguém em baixo da cama martelasse o estrado. Dr. Carneiro estava perplexo. Com a ponta do termômetro ele batia na genitália do paciente como se estivesse tamborilando sobre uma mesa de pau-d’arco. Recomendou repouso absoluto, pastilhas de cânforas e banhos frios. Iria pesquisar na literatura médica e prometeu voltar em breve. Ao sair, tranquilizou o delegado e a família. Não havia risco de epidemia. Os vizinhos poderiam retornar a suas casas. Para explicar a doença de Antônio Caidor, pensou em um neologismo que desse uma vaga ideia do problema sem, contudo, quebrar a promessa de sigilo que fizera ao seu paciente infeliz:
_ Jumentismo, Sr. Prefeito, jumentismo crônico e progressivo. Um caso raríssimo nos anais!- sussurrou ao telefone.
Isso fora o bastante para que a função fabuladora dos ociosos habitantes de Pedra Azul se ocupasse do caso. A cidade inteira comentava que Antônio Caidor estava se transformando em um Asno. Na missa dominical, o padre falava em exorcismo e Manezin Batata, que entregava leite de porta em porta no lombo de um jumento velho e sofrido, sonhava em comprar o gerente do cinema que, aliás, já lhe devia dois meses de leite, tendo a sua nova família aumentado o consumo diário em dois litros e meio.
_ Já imaginou?! – comentava ele com a velha vendedora de roletes na praça – Um jegue preto! Tiro a raça e fico rico!
As crianças tinham pesadelos com Antônio retirando o chapéu e exibindo, como o rei Midas, um par de longas e peludas orelhas de asno. As virgens sonhavam com outros atributos e tinham vertigens e calafrios. Nancy, professora de legendário sonambulismo, por duas vezes fora recolhida a rondar a casa do pobre coitado ardendo de febre e desejos. Um sábado á noite, retornando embriagados de uma festa, um grupo de rapazes se aproximou da janela onde Antônio dormia e começaram a imitar um asno em seu típico zurro de excitação. Ele estava a sonhar. Caminhava dentro da igreja vazada pelos raios violáceos do vitral. O Átrio estava vazio e os santos laterais pareciam de uma magnitude colossal. Antônio aproximava-se do altar e orava cabisbaixo em beatífica paz quando os rapazes começaram a zurrar sob o sereno enluarado. Antônio ergueu os olhos para a cruz do altar. No lugar do cristo ele viu um imenso asno empinado e suspenso no ar por um par de Níveas asas. Entre as pernas do jumento, a longa e inflectida haste do sexo balançava como uma angélica espada. O jumento parecia lhe sorrir com dentes de um branco sublime e, no alto da nave, podia-se ler uma inscrição em letras douradas: “ IN CULUS PRINCIPIT!” Antônio acordou em pânico e persignou-se. Parecia-lhe ressoar dentro do seu quarto um zurro endemoninhado. Quando se deu conta do que estava acontecendo, encolheu-se todo sob o cobertor e jurou não mais sair do quarto, não mais receber um médico incapaz de manter a palavra empenhada.
Apesar das pastilhas, dos xaropes que sua piedosa tia preparava e dos remédios prescritos pelo Dr. Carneiro, a sua enfermidade sequer estagnava-se; ao contrário, ganhava dia-a-dia proporções surreais. Boa parte de suas coxas magras e a popa da sua barriga pronunciada estava tesa como uma gamela e, quando percutida, soava como um galho de cedro sob a lâmina de um machado. Não mais saía da cama. Seu irmão o lavava com úmidas toalhas e a tia recolhia pelas manhãs o urinol de esmalte que dormia ao seu lado, cheio de uma fétida e gordurosa espuma esbranquiçada. Seu espírito também endurecia no mesmo ritmo. Imagens eróticas, cada dia mais intensas, pervertidas e luxuosas tiranizavam a sua mente. Bastava-lhe fechar os olhos para ver seres bizarros, metade homem, metade besta – sátiros e sereias, quimeras e esfinges- copulando em frenesi pelos cantos do quarto e sua cunhada, com uma longa e peluda calda, comandando o bacanal feito a babilônica prostituta escarlate. Primeiro o pastor, depois o padre, duas tentativas de exorcismo foram encenadas sem nenhum sucesso aparente. Seria preciso esparzir água benta ou óleos sagrados sobre o órgão escrofuloso e isso Antônio não permitia, prendendo o cobertor com os pés e as mãos e um mastro no meio que dava a sua cama uma aparência de barraca. Domingo, durante um jogo de dados no clube social, o irmão de Antônio pôs o delegado a par da situação atual. Com o cinema fechado, Osmar Farjala estava privado da sua gratuita diversão e das duas horas diárias de tranquilidade que o cinema proporcionava. Cofiou os longos bigodes, verteu um copo de cerveja e sentenciou:
_ Alguém precisa lhe bater uma punheta!
_ É só o que ele faz! Ouço todas as noites gemer as molas do seu caixão, mas parece que ele não consegue chegar ao final...!
_ Isso é trabalho para uma profissional. Deixe comigo!
Dois dias depois deste encontro, no final da tarde, o delegado apareceu na casa do enfermo acompanhado por uma distinta senhora em luvas brancas e um negro véu caído de um florido chapéu. Sentada na extremidade do estofado em estudada elegância, ela ouvia o delegado conversar enquanto na cozinha fumegava um aromático café.
_ Esta é Mlle. Fifi Charlacan, uma psicanalista francesa. Ela veio da Capital só para ver o pobre Antônio. Seria uma indelicadeza não recebe-la! – Osmar Farjala alisava a cartucheira enquanto falava.
_ Me gusta mucho hablar con ese muchacho! – A estrangeira falava em falsete. A cunhada de Antônio a levou até o quarto. Pediu-lhe que esperasse um pouco na porta até ser anunciada. O delegado passou o braço no ombro do irmão e tentou tranquilizá-lo:
_ Fique tranqüilo! Ela irá lhe fazer uma boa lacanagem!
Na penumbra do quarto, os olhos de Antônio dilatavam-se como se estivessem em uma sessão de cinema. A sua frente, uma “lolobrígida” em carne e osso descalçava as luvas e avançava sobre a cama, simulando os movimentos de um gato. Passava a língua sobre os lábios e sussurrava:
_ Meu Chocolate! Minha jabuticaba!
Duas horas depois, a francesa saiu do quarto. Todos estavam apreensivos. A tia entrou e encontrou o sobrinho no mesmo estado de antes. Uma expressão de lascívia nunca vista antes fremia no rosto de Antônio como uma máscara de Bacchus. Fifi Charlacan havia fracassado mas não iria dar-se por vencida. Tomou o braço do delegado, dirigiu-se à porta da frente e externou um bestial comentário aos familiares:
_ Quero ser uma cachorra se ele não for um veado! Ponha um macho lá dentro e verão como ele logo, logo, relaxa!
Sua voz natural, seu vocabulário torpe e o véu machucado a denunciaram. A idosa tia pôs as mãos no rosto e exclamou a desmaiar:
_ Essa aí é Maria Goiaba! A piranha do delegado!
O ilustre casal acelerou o passo, entrou no Galaxie prata e desapareceu sob uma nuvem de poeira e guinchos de pneu deixando a família do enfermo atabalhoada e boquiaberta. Olhos e ouvidos indiscretos pareciam povoar as humildes paredes daquela casa, pois, no dia seguinte, Paulo Bacana e Tony Nolasco, os dois tipos mais efeminados do sudoeste da Bahia, com suas maletas de joias e cosméticos importados, visitaram a residência praticando preços irresistíveis e dispostos a qualquer sacrifício em nome da bondade. Alguns dias se passaram e o caso de Antônio se agravou ainda mais; do maxilar para baixo ele estava mais rígido que um jatobá centenário. Não falava nem comia, mônadas e gônadas em letargia petrificada. Um novo gerente fora nomeado, o cinema voltou a funcionar e a aberração de Antônio ia, aparentemente, perdendo notoriedade; aparentemente apenas, pois algo escabroso estava acontecendo nas noites hereges e assombradas da minha pequena cidade. A cunhada de Antônio, depois de muito resistir, começou a aceitar propinas de piedosas senhoras ansiosas por uma furtiva espiada no estafermo miserável. Com Antônio dormindo, ela introduzia sorrateira uma visita no quarto; erguia vagarosamente o cobertor de flanela e, com uma lanterna, iluminava a epifania priápica, o totem da ancestralidade animal capaz de causar espécie e em reino transmutada como se uma estaca de jacarandá se erguesse naquele corpo franzino a marcar a fronteira da bestialidade e do irracional. Em uma destas furtivas noites, Helena, esposa do gerente do Banco do Brasil, tirou as volumosas joias que adornavam seu corpo roliço: braceletes, pingentes, colares, brincos e anéis. Pôs nas mãos da anfitriã quase meio quilo de ouro e pediu para ficar meia hora a sós com o ebúrneo minotauro. A partir desse dia, começaram as longas filas noturnas de mulheres veladas no matagal que ameaçava tragar os fundos da casa como se a natureza reivindicasse o sátiro ali reencarnado. Com um providencial estilingue, a cunhada de Antônio mantinha apagados certos postes de iluminação, esquematizava os horários e dispersava a fila em moitas e árvores estratégicas, evitando sempre o mútuo reconhecimento de suas visitas e o subsequente constrangimento. Em noites de lua cheia era possível vê-la conduzindo pelas mãos uma furtiva e mascarada dama pelas portas do fundo, em seu pescoço brilhando a chave de um cofre já repleto de ouro e prata, seus capciosos honorários. A orgia poderia se prolongar indefinidamente já que tais visitas ao catatônico enfermo, além de excita-lo a um paroxismo de ereção e bloqueio, o mantinha também passivo e mudo sob a sanha das feiticeiras; entretanto, uma das eleitas fraquejou e quebrou a lei do silêncio que regia o torpe comércio. Em uma madrugada de abril, a cidade inteira acordou com os gritos histéricos de Dona Simone, uma portuguesa viúva e milionária, dona de um incontável rebanho de reses holandesas:
_ AI, QUE ME ACABO! VALEI-ME SANTO IGNÁCIO! ESTÃO A RASGAR-ME AS COSTURAS D’ALMA!
O irmão de Antônio invadiu o quarto e encontrou a viúva nua saracoteando e refastelando-se sobre o que sobrou do seu irmão, a flácida carne branca ainda a vibrar com um bilionésimo e incontrolável orgasmo.
      O escândalo tomou conta da cidade gerando histórias incontáveis para deleite dos fabuladores, dos moralistas e das velhas fofoqueiras. A envergonhada tia de Antônio morreu fulminada por um enfarto; sua cunhada e seu irmão fugiram com as jóias e o dinheiro amealhados e me contrataram, como idôneo advogado que sou, para cuidar do pobre inválido. Toda quinzena uma modesta quantia era depositada na minha conta bancária, telefonavam ansiosos por notícias e, alegando muitas dificuldades, adiavam sempre a prometida ambulância que levaria Antônio a uma clínica na capital do estado onde, suponho, eles viviam assustados. Durante o dia uma enfermeira aposentada cuidava do enfermo cuja vida somente os olhos asininos a denunciava; à noite, temendo visitas com novos propósitos – muitos maridos traídos temiam pela recuperação de Antônio e suas revelações comprometedoras – eu dormia no corredor da casa com um velho rifle winchester ao meu lado. Confesso aqui a minha espúria ambição. Queria ser o compilador de suas histórias, já simulava ter a lista das pervertidas adúlteras e esperava com isso pressionar as partes processuais de muitos casos arquivados. Nesse período, tornei-me íntimo de Bethânia, uma professora do estado que tentava legalizar os dois filhos que tivera com um ilustre deputado. Perguntou-me sobre Antônio. Respondi que nenhuma mudança fora observada. Ela lamentou de um modo tão sincero que pensei, malicioso, ser ela uma das noturnas seviciadoras fatalmente apaixonada. Parecendo ler meus pensamentos ela se explicou:
_ Esse pobre senhor fora meu colega no colégio. Dizia ser apaixonado por mim e era muito divertido. Tínhamos apenas onze anos de idade. Ele escrevia em todas as folhas do meu caderno. Chegou a tatuar com um canivete as iniciais do meu nome no seu braço. Comecei a achar o seu comportamento esquisito e me afastei dele. Eu não sabia o que era o amor, senão por ouvi dizer...dois anos depois, na 3° série, é que fui me apaixonar... _ Você ainda tem o caderno onde ele lhe escrevia? – Perguntei sem mesmo saber para que o queria. Ela se ausentou um pouco e voltou com um caderno escolar de folhas esmaecidas. Pediu-me cuidado pois havia velhas fotografias coladas na contracapa onde hoje os adolescentes colam adesivos coloridos. Quase o recusei mas a curiosidade sobre a vida do meu protegido e a esperança de sua recuperação findaram por justificar um anseio aparentemente tão frívolo. No final da tarde, protocolando no fórum uma ação de paternidade contra o deputado Agenor Geraldo, folheei o caderno com desenhos infantis, contas de somar e exercícios elementares de caligrafia. No verso das folhas, em garatujas quase ilegíveis, o menino Antônio escrevera inúmeras mensagens de amor, frases inconclusas copiadas de revistas e novelas de rádio, versos do cancioneiro e propostas tão inocentes que a mais íntima era do tipo: “quando crescer quero me casar contigo! ... Tudo salpicado por erros crassos de ortografia e clichês do mais piegas romantismo. À noite, deitado no colchonete e com o dedo no gatilho – agora eu temia também os capangas de Agenor Geraldo – eu recordava-me de ter tido também um grande amor na aurora da minha vida e como deve ser universal esse capítulo em todas as biografias. Jamais amei alguém como amei Maísa e o ardor que esse amor causava-me era uma sensação que jamais irá se repetir. Sentar ao seu lado no banco da escola e roçar a penugem do seu braço deixava-me enlevado e febril pelo resto do dia. Dançava com ela as quadrilhas e minhas pernas tremiam. Bastava-lhe uma palavra ou um sorriso para que o vago e abstrato sentido da vida retalhasse minhas vísceras como um destino na ponta de um estilo. Era um amor dolorosamente físico embora não houvesse sequer um traço de erotismo. Acostumado à malícia de babás e primas pervertidas, eu ardia de desejo por Maísa em um fogo espiritual de cumplicidade e comunhão mística sem imagens de coito, luxúria e sevícias embora já soubesse bem o que era isso – as empregadas domésticas que o digam. Sem conseguir conciliar o sono, liguei o interruptor e apanhei o caderno em minha pasta. Acendi um cigarro e contemplei as fotografias estioladas, em tamanho 3x4, de crianças em uniforme escolar. Fora-me fácil identificar Antônio. Era o único negro da turma, uma criança triste com olhos expressando a típica e sublime melancolia da sua raça. A foto de Bethânia pareceu-me profundamente familiar. O cigarro queimou-se sem que eu identificasse a origem da inquietante familiaridade. Abri a pasta com o processo de paternidade e conferi as fotos dos filhos de Bethânia. Por um momento recusei-me a crer que fossem duas pessoas distintas na foto colegial de Bethânia e na foto atual de sua filha Camila tão profunda a semelhança entre as duas. Uma súbita ideia resplandeceu no cotejar das duas imagens. Temi a insônia e o delírio das idéias paridas de madrugada. Esforcei-me em recalca-la e dormi sobressaltado. Como a anos não me acontecia, sonhei com Maísa, a amada da minha infância quase mítica, tão longos os anos que nos separam. O cenário nada possuía de relevante, exceto a promessa de sempiterna felicidade que dela emanava para todo e qualquer lugar que estivesse, e isso tudo relevava – ainda hoje, se passar pelas ruínas do nosso velho colégio sei que irei chorar. Girando comigo com os pés unidos, o corpo inclinado e as mãos dadas, ela sorria dizendo-me algo que me custou recortar no fluxo de uma indistinta e onírica algazarra. Parecia-me dizer: Cuidado, Carlos, cuidado! Pela manhã, como uma ameba incapaz de distinguir o dentro e o fora, eu preparava o café com o pensamento a borbulhar no sonho e na insólita ideia que o prenunciara. À revelia do meu entendimento dormente, minha razão e minha sensibilidade se acordaram: a ideia emprestando ao sonho um sentido possível e recebendo deste a vivacidade. Almocei com Bethânia e prestei-lhe contas do seu processo. Estendi a minha visita até ver Camila, sua filha de emblemáticos onze anos, sair do quarto queixando estar atrasada para a primeira aula. Ofereci carona em minha simpática Variant verde-malva. Guiei devagar fascinado em observa-la. Não me interessava tanto a criança ao meu lado e sim o efeito que sua visão causaria no enfermo sob minha custódia. Teria ele vivido seu primeiro amor da forma como eu vivi o meu? Seria possível que a visão de Camila provocasse em Antônio uma paramnésia capaz de transporta-lo ao passado, de fazê-lo reviver um modo de desejar ingênito e assexuado? Seria esta sensação suficiente para vazar o erotismo em que seu corpo e sua alma estavam subjugados? Obviamente que promover o encontro de uma criança com um tarado seria, expresso nesses termos, um requinte de perversidade mas eu estava seguro dele não ser um maníaco de fato, mesmo tendo o espírito assaltado por lascivos fantasmas. Quanto á obviedade, cuidaria em ser extremamente prudente e dissimulado. Sem nunca ter sido diretor de teatro, tive o pressentimento de que o mais importante em uma peça é o cenário e cuidei de o reconstituir como o faria ao defender um criminoso no tribunal. A sorte parecia estar ao meu lado. O vizinho de Antônio estava alugando a casa e convenci Bethânia a ser a sua nova vizinha alegando, com propriedade, que a minha presença no local inibiria, talvez, uma possível represália do deputado e glosei, com o argumento soberano, de ser o aluguel quase a metade do que ela então pagava. O quarto dos fundos onde o irmão de Antônio se hospedara possuía uma janela para o quintal do vizinho e ali eu esperava que Camila pudesse ser observada em toda a sua graciosa naturalidade. Com ajuda da velha enfermeira, transportamos Antônio para o seu novo quarto, sempre envolto no seu indefectível cobertor de flanela quadriculada. Ele se mostrou indiferente às novas paredes e era visível a irreversibilidade da sua patologia deplorável. A minha trama possuía um segundo fio. Mesmo que uma lembrança esteja profundamente soterrada por décadas de esquecimento acumulado, acredito que as canções que a embalaram, que a trilha sonora destas cenas perdidas podem faze-la brotar com o mesmo viço e frescor, ainda que por breves segundos como, ao rocio do orvalho, se abre uma flor. Quantas vezes uma velha balada nos faz reviver as feéricas sensações de um passado que julgávamos sem mais nenhuma cor! Para evocar o passado de Antônio desloquei-me até a cidade vizinha, à sede da Rádio Clube Guarani, onde passei uma longa tarde pesquisando as canções mais tocadas no longínquo ano em que Antônio estudara no mesmo banco de escola com Bethânia, sua colegial amada e minha cliente atual. Gravei várias fitas-cassete com músicas de Trini Lopez, Lupicínio Rodrigues, Pat Boone, Chico Alves, gravei Ansiedad na voz de Nat King Cole, Nada Além de Mário Lago, Al di la e Dinah Washington cantando Manhattan. Pedi a Bethânia que mantivesse seus filhos em casa o máximo que pudesse e Camila, um pouco entediada, passava as longas manhãs de sol no quintal, lendo fotonovelas, cuidando do jardim e escrevendo o que parecia ser um secreto diário. Seu tagarelar incessante funcionou como uma isca notável e logo Antônio Caidor começou a sentar na cama e vasculhar durante longos minutos o quintal da sua nova vizinha como um menino a observar passarinhos. Em menos de uma semana, já passava quase a manhã inteira sentado em uma cadeira de balanço ao lado da janela. Fingia ler um jornal e a todo instante olhava por entre as talas da persiana o interior da casa de Bethânia; Pela outra janela, do meu novo quarto, um fluxo de músicas antigas invadia o espaço criando uma ilha de nostalgia e invocando um passado denso de melancólicos fantasmas. Quisera muito saber o efeito desta dupla aparição no espírito de Antônio: A amada verdadeira, quiçá não corrompida pelo tempo ou sua repetição ainda mais original...Para qual delas o seu coração se orientaria? Para a esperança de um amor possível e finalmente carnal com o seu primeiro amor ou para o reino ideal da saudade, para o amor imaculado e espiritual que habita necessariamente o intangível passado do qual Camila era a sagrada imagem? Quanto de verdade haveria na lenda de serem os negros uma raça melancólica cuja melomania os inclina à saudade e ao fascínio pelo passado? As cartas estavam dadas mas o desenrolar do jogo me era velado. O tipo de emoção que eu esperava engendrar no coração de Antônio ao contemplar o clone do seu primeiro amor não era, decididamente, um sentimento infantil. Durante séculos, na Europa Medieval, homens viveram intensamente uma forma de amar batizada como “amor dos trovadores”. Impedidos de possuírem o corpo de suas amadas, geralmente senhoras casadas e virtuosas ou nobres prometidas a outras casas, tais amantes empunhavam seus alaúdes, suas bivas e cantavam a felicidade celestial que um simples sorriso, um furtivo olhar de suas amadas lhes causava. Um amor imanente, sem nenhuma falta, sem nenhuma necessidade além de cantar a beatitude desta modalidade de amar. Eu estava certo de que ao amor imanente corresponderia uma distinta disposição do corpo onde a excitação dos órgãos sexuais cedesse lugar a uma vibração, a uma febre, a uma volúpia consumada e dispersa por todas as partes do corpo e da alma mas o desfecho trágico deste caso abortou o meu aprendizado. No final de uma ensolarada manhã, ao voltar à casa para um rápido almoço, parei em frente ao quarto de Antônio e troquei com ele algumas palavras. Ele estava bem animado e, ao mesmo tempo, profundamente sentimental. O velho cobertor em volta do corpo indicava volumosamente a renitência do seu mal mas seu rosto parecia desanuviado como se um raio de esperança nele brilhasse. Fui ao meu quarto e liguei o gravador com as velhas baladas no volume máximo. Acenei para Camila que, já vestida com a farda do colégio, estendia no varal uma úmida toalha. Elogiei suas roseiras e pedi que avisasse a sua mãe sobre as boas notícias prometidas. O juiz iria julgar em breve o caso da paternidade. Tudo indicava que o deputado Agenor Geraldo seria obrigado a assumir uma série de novas responsabilidades. Quando voltei ao corredor vi Antônio com a mão na janela recebendo uma rosa que a doce Camila havia colhido e lhe ofertado. Foi quando ouvi a velha enfermeira gritar na cozinha e passos velozes na sala. Voltei-me a tempo de ver, as minhas costas, Luís Borjala, o capanga do deputado com uma escopeta descomunal para mim apontada. Mal tive tempo de me jogar ao chão. Ouvi um estampido seco e senti a nuvem de chumbo passar sobre minha cabeça como um vento quente e sibilante. Antônio gritou e levou a mão ao peito. Corri ao meu quarto em busca do meu winchester mas já se ouvia os pneus de um carro em fuga disparada. Corri de volta ao quarto de Antônio e o encontrei morto com uma rosa ensanguentada no peito. Não sei se o tiro me era destinado como prêmio no processo de paternidade ou se o deputado quisera silenciar o homem que tanto prazer proporcionara a sua esposa, pois, meses antes desse triste episódio, a cunhada de Antônio enviara-me a cópia de um vultoso cheque emitido por Raquel, a esposa de Agenor Geraldo. Pedia-me que efetuasse uma cobrança judicial e era bastante suspeito o objeto dessa operação comercial. O cobertor ao lado de Antônio Caidor não cobria mais nada. Seu pênis estava pequeno e encolhido como um amendoim. Teria sido o tiro no peito que pusera fim a sua monstruosa ereção contínua que já durava um ano? Pelo que aprendi no breve curso de medicina legal, a morte produz um enrijecimento súbito e o cadáver preserva até à decomposição a postura que teve ao morrer, mãos crispadas, olhos abertos... Quem faz autópsia ou prepara um funeral sabe a dificuldade que há em manusear um cadáver, quebrar os dedos, costurar as pálpebras...Estou quase certo que minutos antes de morrer, ao receber uma rosa das mãos de Camila, Antônio se lembrou do primeiro amor e senti-lo outra vez, em sua sensação original, devolveu-lhe a saúde se é verdade que o erotismo é a doença específica do homem moderno. Se a sua cura fora definitiva ou se duraria apenas o tempo de um sentimento redivivo nunca saberemos. Quanto a mim, não iria ficar ali para saber se o tiro me era destinado ou se fora um serviço de um exímio e impecável profissional. Providenciei o enterro, passei o caso já quase resolvido de Bethânia para outro advogado e me mudei para a capital do estado onde hoje trabalho e procuro nunca me envolver com a vida de meus clientes, fato que me proporciona a fama que trago de ser um rábula desalmado.
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