quarta-feira, 19 de outubro de 2022

O AR DE PARIS ou SUVACOS DE NEGRO!





Para Duchamp, que teve a ideia de engarrafar o ar de Paris; Para Fitzgerald, autor de Um Diamante Tamanho do Ritz; Para P. Sussekind, autor de O Perfume e para Nicolau Gogol, autor de O NARIZ!
Ronildo era um mulato de olhos verdes, cabelo crespo e tronco largo, espadaúdo, natural de Alagoinhas que muito cedo fora morar em Salvador, capital do estado, para trabalhar e estudar, sina da maioria dos jovens pobres do interior. Lá, após conseguir um emprego de garçom na lanchonete da Aliança Francesa, na Ladeira da Barra, se apaixonou perdidamente pela língua charmosa e espiritualizada dos Gauleses! Muito cedo conseguiu uma bolsa com 12% de desconto nas mensalidades e passou a ser aluno regular, nas aulas noturnas, da instituição que lhe arrancava o couro durante o dia. Levava livros da biblioteca para ler em casa - livros que ele roubava sem maldade ou ambição nenhuma a não ser dormir ao lado dos exemplares que ele jurava um dia devolver - e passava seus miseráveis fins de semana em um quarto de pensão no Garcia, lendo e sonhando com La Rive Gauche, Le pigalle, Faubourg Saint Germain, Monmartre e la champagne.. Via filmes, lia jornais, se vestia como um padeiro de Marselha e começou a falar com sotaque, o que lhe rendeu uma fama discreta de veado a sobrepor à fama já estabelecida de esquisito e boçal. 

Juntava tudo que conseguia milagrosamente economizar e jurou que um dia iria conhecer Paris, nem que fosse de navio descascando batatas! Como ele conseguiu tal proeza, o relatório não informa, simplesmente sabemos que, dois anos após chegar a Salvador, ele já estava morando em Paris em uma água-furtada na Rue Morgue, bem lá onde o macaco de Edgar Alan Poe enfiava suas vítimas nas chaminés, quem sabe até em um daqueles pitorescos quartos. Idealista por natureza, tão logo veio a conhecer Paris, trabalhando em tudo que era serviço braçal que surgisse e dando longos passeios noturnos e solitários, Ronildo não se satisfez. Agora não era mais uma questão de conhecer a França, coisa que ele já começava a fazer, se aventurando em viagens de trem durante os feriados, à Arles, à Riviera, à Acquitânia e Normandia... Agora o seu sonho, melhor dizendo, sua obsessão, era se tornar um autêntico francês! Mudava de passeio quando via um brasileiro ou grupo de brasileiros em algum ponto turístico, para não ter que ouvir a língua natal; para tal fim rasgando tudo que trouxera consigo que lhe evocasse reminiscências do interior da Bahia. 

Nos dias em que sonhava conversando em português com alguém, acordava deprimido, com asco de si mesmo e vociferando no metrô contra essas republiquetas sórdidas da América Latina. De tanto evitar o sol e usar cosméticos do primeiro mundo, sua pele estava assombrosamente clara, em nada se parecendo mais com aquele gordo moleque que vivia seminu nas ruas descalças de Alagoinhas vendendo mingau e amendoim torrado de porta em porta das casas; digo isso, pela comparação entre as fotos anexadas, pois, as cartas que ele escrevia para sua pobre mãe, onde talvez fossem descritas muitas curiosidades sobre sua vida nessa época, estavam escritas, porém, em francês...Nem eu, nem sua mãe, nem quase ninguém naquela provinciana cidade podendo saber de que se tratava; mas como vinha sempre com uma notinha de cem Francos dentro do envelope, era de se supor que tudo lhe estava correndo em ondas de muita felicidade. Não apenas a pele, mas o cabelo estava extremamente liso. Os olhos, de agateados, agora eram azuis (como o azul da Baviera, cor dos pratos que o rei Louco Ludwig adorava mandar preparar para ninguém comer), provavelmente graças ao uso de lentes de contato. O certo era que Ronildo abafava, como se diz na Bahia. 

Superficialmente, e esse é mesmo o aspecto mais importante de nossas identidades, ele já era um autêntico e genuíno francês, elegante, polido, rabugento e reservado, mas, como estamos a cartografar sua alma e os côvados amplificados do foro íntimo em que ela habitava, temos que confessar que Ronildo viva sob a égide de um fragoroso fracasso! Bastava ver como, a todo instante em que ele se debruçava sobre si mesmo em cavilosas introspecções, voltava a si desolado e murmurando pela casa, em robe de chambre e entre seus gatos angorás: JE SUIS UNE BAIANÉ! JE SUIS UNE BAIANÉ! JE SUIS, MALHEREUXEMENT, UNE BAIANÉÉÉ! 

Sabemos que Ronildo fez análise com um russo, discípulo de Sandor Ferenski, que insistiu ser o seu problema um caso de metempsicose, enquanto, com um Junguiano, de quem se esperaria um diagnóstico destes, ouviu que o seu problema era excesso oceânico de esperma na sua “thassala” e que ele deveria voltar para a sua terra e se casar com uma mulata de ancas vantajosas e uma buceta de chupeta que pudesse drenar todo o excesso de porra branca a espumar no seu cérebro vaporoso. Mas Ronildo recalcitrava e preferia morrer a renunciar ao seu sonho de ser um gaulês, e para isso, passou a inventar os mais estapafúrdios artifícios, como comer só produtos genuinamente franceses, militar nos partidos de extrema-direita, idolatrar o vinho e cantar de coeur todo o repertório de Jacques Brest, Francis Cabrel e Johnny Holliday. É verdade que, raramente, em certas datas do ano, tinha suas recaídas e se permitia, por alguns dias, relaxar de seus tiques e personalidades adquiridas para ser de novo, em uma volúpia exacerbada e caricata, um autêntico baiano. Comia feijoada e maniçoba, ouvia discos de Maria Betânia a todo volume, fumava, cuspia no chão e falava “porra” quinhentas vezes por dia! Mas eram justamente essas recaídas que lho fazia abominar mais ainda sua origem e voltar com obstinação redobrada à histeria contida do seu teatro imaginário. Os anos se passaram, com eles vieram a desilusão e a certeza de que nunca iria conseguir realizar absolutamente o seu sonho, fosse em sessões de hipnotismo, lobotomia ou em campos de batalha onde ele pudesse se alistar e morrer pela França, dormindo eternamente na glória de um honroso túmulo nos Champs Elysees. 

 Um dia, conversando com um amigo na praça d’Anjours, sentado em frente à majestosa catedral de Chartres, confessou-lhe que estava desesperado e que não queria mais viver. O amigo sabia qual a origem secreta de seu gosto de morte (a vontade de morte só existe quando se pratica o suicídio; de quem vive pensando nisso, podemos dizer que tem apenas um gosto, uma paixão de abolição que empresta aos medíocres uma pseudo-aura de sublimidade, mas que logo o penaliza com o estigma de um derrotado, caso não o consuma seu gosto em vontade), e, não querendo vê-lo justificar sua vida com um ato tão profundo e verdadeiro de amor à França (inveja crassa), o amigo resolver lhe aconselhar:

_ Escute, baiano! Você quer mesmo saber qual é a alma da França? Aquilo que melhor traduz nossa essência de povo e de vida? Não é a cultura, nem a gastronomia, nem a Fé, nem a história... Nossa alma é O CICLISMO! Somos seres de duas rodas, vivemos para pedalar e sobre uma bicicleta a nossa alma encontra o verdadeiro diapasão, o ritmo e o estilo adequado para encarnar sua tessitura musical! Toda a nossa consciência e nossa sensatez nascem desse maravilhoso hábito, como se a disciplina de impor a mesma velocidade às duas rodas da bicicleta traduzissem o desejado estado de harmonia entre as duas engrenagens da nossa alma: o pensamento e a linguagem. Somos um povo que adora pensar e que adora conversar. Mas temos uma dificuldade imensa em fazer com que uma faculdade acompanhe a outra! Ás vezes, falamos demais e somos criticados pela tagarelice, outras vezes, ruminamos em excesso e nos perdemos em tesouros inefáveis de pensamentos inauditos! Mas sobre uma bicicleta... Ah! Rian de chambret, rian de poesie, rian de rian c’est capable de reveiller notre ame si juste, si parfaitment comme Le cyclos! Mon Dieu!...

Tão expressiva fora sua preleção sobre a essência da alma francófila, que tocou profundamente o coração de Ronildo e lhe fez renascer as esperanças de outrora. Na mesma semana, já foi visto todo equipado como um ciclista profissional a pedalar pelas avenidas urgentes e ruas habituais da cidade-luz. Esgotou-se nesse refinado e subestimado prazer! As platitudes parisienses foram feitas para o ciclismo e ele se empolgou tanto que findou por se inscrever no Famoso Tour de France, a prova nacional e empolgante do Ciclismo Frances e mundial. Nos filmes amadores feito por turistas e na cobertura profissional dos jornalistas esportivos, conseguimos ver algumas cenas onde Ronildo passava embevecido, vendo o povo acalorado acenar para os concorrentes e distribuindo beijos para as sorridentes colegiais nos vilarejos por onde passava! Sua expressão de felicidade era a certeza, quase matemática, pois que o rosto humano, na infinitude de relações e proporções de linhas, planos e ângulos é um verdadeiro tratado de matemática, de que seu sonho fora realizado. Aquele jovem era um francês! Um descendente de Carlos Magno, um Barão de Montaigne, ou apenas um avarento padeiro do interior, mas era, sim senhor, UM FRANCÊS!

Mas, infelizmente, não o era para quem mais importava ser, sua torturante e complexada consciência de besta colonizada! No percurso para casa, após a exaustiva odisséia sobre rodas, soturno como um Ulisses sem ítaca, sem Penélope, sem o porqueiro amigo, sem nada... Ronildo foi logo percebendo que ainda era, no íntimo, um tremendo de um baiano do interior: aquele jeito inconsciente de coçar a bunda e o saco com um único gesto, aquele ar subserviente de chamar todo mundo de “pai” (em francês, “mon pére”), aquela preguiça depois do almoço e o gosto pela fofoca... Toda a baianice do mundo nele permanecia encruada, latejando como uma nascida, um furúnculo verde esperando a hora de espirrar pus. Foi nessa volta para casa – o relatório não é capaz de afirmar tal particularidade – que Ronildo decidiu se matar. Entrou em casa resoluto. Rasgou um lençol de cambraia que sua mãe lhe enviara sem sequer pensar na velha e com ele improvisou um laço entre os encanamentos da “chauffage”. Se despediu de toda a sua vida inútil com um olhar de desprezo por centenas de quinquilharias baratas que havia acumulado dentro de casa, como se imitasse o mais compulsivo colecionador de bibelots e berloques da frança e seu autor favorito, Honoré de Balzac! Segurou entre os dedos uma de suas bizarrices mais antigas, uma garrafa de vidro, imitando a Torre Eiffel, vazia e lacrada com o título: “Le air d’Paris!” O ar de Paris! Seu primeiro souvenir, sua lembrancinha dos tempos de estudante na Aliança Francesa! Ali, dentro daquela garrafa parecia estar aprisionada a sua alma, o seu ser profundamente Frances que não conseguira sair e ganhar os ventos Elíseos da vida original! Sim, original, pois ter nascido em Alagoinhas e ali vivido a sua infância só poderia ser mesmo uma piada do destino! Mas agora, com o triunfo da sua vontade, com seu gesto livre de se libertar daquele corpo roliço de baiano comilão, ele iria enfim voar e, feito um mistral encantado, penetrar em todos os lares franceses e viver como um fantasma no lar querido da sua pátria! Lançou com fúria a garrafa na parede da sala que se espatifou e teve a impressão que uma etérea névoa se libertou ali do vidro estiolado! Era um sinal. Subiu no tamborete e ergueu os braços para por a corda no pescoço. Era verão e ele estava só de cuecas. Seu corpo ainda ofegava com o fracassado passeio de milhas e milhas pelo interior da França em sua bicicleta-carruagem. Ao passar o laço, sua axila aproximou-se do seu nariz. Um corrosivo e bestial aroma adentrou suas narinas de ventas triunfais e dilatadas pela atividade física incomum da recente viagem. Uma tremenda parosmia, uma desbragada sinestesia olfativa varreu-lhe a mente lho fazendo sentir os aromas inefáveis de todos os seus anos na França, delírios de feiras e mercados, peixes podres e esgotos mal canalizados, vísceras de animais esfolados e resinas acres de perfumarias e estábulos, banheiros químicos mal tratados, defuntos insepultos e queijos apodrecidos, por moscas rejeitadas... Um milhão de alucinações (quero crer causadas pelo laço apertado da corda no pescoço, a famosa visão panorâmica dos moribundos) fedorentas invadira a sua alma, vindas de suas nunca dantes tão suadas axilas, miasmas que conseguiram finalmente vencer camadas e mais camadas de carnes gordas libertando sua mais profunda essência corporal! Eram os famosos “suvacos de negro” ou, segundo outros estudiosos mais esotéricos, a sua alma guardada dentro daquele singelo frasco que por fim se libertara revelando a ele, não por imagens visuais, mas por acachapantes fedentinas e seu séquito de reminiscências transcendentais, como uma estragada Madeleine proustiana, toda a alma de Paris, todo o ar da França e era de dentro de suas carnes que a podridão de um povo que não cultua o hábito de tomar banho exalava-se! O chulé de milhões de soldados napoleônicos, o bacalhau podre das prostitutas do pigalle, o fumo, toneladas de fumo do povo que mais fumou tabaco na história da Humanidade, o podre de toneladas de queijo brié, roupas íntimas escondidas em malas elegantes e séculos de inexistência de banheiros, de necessidades fisiológicas feitas atrás de muretas e escadarias... Tudo isso era Ronildo, era a alma expressa pelo seu suvaco tropical! Sua mente embriagada findou por entender que ele era, desde sempre e para sempre, um homem sujo e fedorento. Sujo de nascença, fedorento de vida em Alagoinhas e Salvador, mas que tivera em Paris seu mestrado e seu doutorado! ELE ERA UM FRANCÊS! E, de posse dessa redentora e tão sonhada verdade, Ronildo largou o laço, pulou do tamborete e, sem se preocupar em se vestir, chegando até a ferir um pé descalço no vidro da garrafinha espatifada, saiu a gritar pelas ruas de Paris, feito um Arquimedes tropical de posse de uma intuição arrebatadora, de uma Heureka existencial:

_ JE SUIS FRANÇAIS! JE SUIS FRANÇAIS! JE SUIS FRANÇAIS!

E ainda deve seguir gritando lá no sanatório onde fora recolhido e para onde eu me dirijo a atendê-lo, nomeado que fui pelo governo brasileiro como seu médico psiquiatra!

₢ Cassiano Ribeiro Santos
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