domingo, 16 de outubro de 2022

O DEDO!





     O Brigadeiro Crispim Corcoran acordou mais cedo do que de costume naquela auspiciosa manhã de abril.
Sua bexiga ainda dormia, como quase todos os seus órgãos, mas os olhos há muito corriam as formas caprichosas e figurais que a infiltração desenhara no teto de gesso do seu quarto. O dia havia chegado, pensou, e este pensamento o deixou inerme por mais meia hora sob os lençóis amarrotados. Durante anos, inadvertidamente, havia se preparado para ocasiões solenes, a morte, por exemplo, mas ao preço de não saber, em troca, enfrentar quase nenhuma pequena contrariedade. Era como se o grande exército inimigo da batalha final adotasse, de repente, táticas de guerrilha, dispersando os batalhões em pequenos ataques que iam minando o equilíbrio do militar; pois não é que, já há dois dias, ele não ia ao vaso por causa do compromisso para hoje agendado? No espelho contemplava absorto seus dedos correrem os botões forrados de veludo da sua libré, as comendas e dragonas no peito penduradas e sentia o suor frio a escorrer ao longo do espinhaço, indo morrer suaves no algodão macio de suas cuecas encorpadas. Não fora nada fácil agendar o compromisso inexorável. Sua secretária selecionara os trinta carrascos profissionais e ele cuidou de investigá-los, um por um: estado civil, expressão facial, idade, histórico profissional, tudo o que podia deduzir das fichas sobre a sua escrivaninha espalhadas. Nenhum lhe era confiável: os brancos branco dos olhos, os bigodes bem untados, a pele fosca das noites mal dormidas... Pareciam membros de uma sinistra corporação cujos lúbricos tentáculos penetravam em todos os meandros da sociedade. Nos bons tempos ele poderia intimar a todos, analisar suas unhas, seus hábitos secretos, fazer-lhes veladas ameaças... Mas os tempos eram outros. Deveria ir ao encontro sem seus seguranças, suas prerrogativas e seu cabedal. Mas antes era preciso matar o tempo, pois o duelo estava marcado para o fim da tarde, e não era auspicioso chegar muito cedo. Corcoran teve então uma daquelas idéias geniais: iria dedetizar a casa. Não iria deixar viva nenhuma aranha, nenhuma formiga, nem uma baratinha sequer. Desceu até o porão (hoje uma garagem) em busca de uma velha bomba fumegante e de um pacote de veneno em pó conhecido pela sigla B.H.C. Por algumas horas daquela gorda manhã, ele esqueceu o dilema das cinco e se divertiu a beça ao enfiar a ponta da mangueira em todos os orifícios da casa, bombear o pistão como quem detona uma dinamite e ver sair, aos poucos, dentro da nuvem cinzenta do veneno, trôpegas centopéias, besouros confusos e larvas de cupim. Só parou com as queixas da esposa e com o suculento almoço servido no jardim. À mesa, deu-se ao luxo de comer como a criança que fora no distante distrito de Condeúbas, no entroncamento de Contendas do Sincorá: comeu com as mãos, amassando e enfiando bolos de feijão com farinha nos dedos, levando-os à boca e dela os retirando, limpos e lúbricos de saliva. Interrompeu o doce passatempo quando quase engoliu a aliança. Percebeu como ela estava folgada e chamou-lhe a atenção o discreto emagrecimento do seu dedo anelar que antecipava os inexoráveis encolhimentos da velhice. Fez bem em ter escolhido o mais velho da lista, pensou. Provavelmente seria também o mais fino. Sabia haver sempre, por trás de suas intuições, um conhecimento basilar, por mais vulgar que o fosse. Enfiou, por fim, o dedo em questão no pastoso doce de leite, untando-o até a ponta da unha e deu alguns telefonemas com a outra mão, sem deixar de degustar a bolota de doce de fecinina cor e consistência. Às cinco e meia, lá estava ele no coração do Q.G. inimigo onde mãos ossudas empurravam-lhe sobre a maca. Sob seus olhos desfilava o monocromático piso de mármore e os emborrachados sapatos dos enfermeiros. Sentia-se mortalmente ferido e esperava por recordações sublimes, mas a única lembrança que insistia em ocupar a sua mente era uma de sua infância pobre, quando ajudava seu pai a fabricar picolés enfiando centenas de pauzinhos nas formas semi-congeladas, sentindo, em frações de segundos, a consistência do coco, da groselha e da goiaba. Percebeu que as ranhuras do piso eram idênticas ás do teto de gesso do seu quarto, pela manhã observadas. As linhas se encontravam e o dia se fechava em um místico círculo arrebatando sua alma. Logo um dedo forrado de plástico estaria dentro do seu ânus girando à procura de uma próstata inchada, o círculo vicioso da sua monomania, a ideia fixa arrastando sua mente como um girassol em busca da roda solar, os anéis de Saturno e a espiral das galáxias, Tudo girava na cabeça de Crispim Corcoran quando ele entrou, de nádegas para o alto, no consultório do urologista, repleto de estagiários, de dedos cabeludos e de mãos enluvadas...
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