sábado, 23 de abril de 2022

ZABRISKIE POINT ou Sara Quinha, a Estranha!

 





Fora de um dia para o outro, como um destino ou uma fatalidade, que técnicos da capital, Salvador-Ba, vindos em um caminhão cheio de equipamentos, subiram no alto de um morro conhecido como Morro de Dona Mira e, dentro de uma casamata de um único cômodo ali construída, instalaram a primeira repetidora de TV da cidade de Itambé, no início dos anos setenta do século passado. Como em um sonho encantado, as pessoas que antes só conheciam a TV quando viajavam a outras cidades maiores, podiam agora exibir em suas salas de visitas a nova celebridade com ares de um altar, um novo oratório para novos deuses a substituir as imagens dos santos ou as fotos dos antepassados, ícones então dominantes no imaginário dos lares tradicionais. De todas as novas divindades que invadiram nossas vidas, os astros das telenovelas foram, de saída, o panteão mais sagrado e comentado em todas as esquinas, feiras e janelas da pequena cidade onde eu me criei. Em poucas semanas, toda a população, hipnotizada pelas imagens chuviscadas em preto-e-branco, já estava envolvida nas tramas melodramáticas das grandes novelas e, por meio delas, conectada sentimentalmente com todo o povo brasileiro em um grande e cívico inconsciente coletivo eletrizante. Foi neste cenário que chegou a nossa pacata cidade, trazido por um amigo que passava temporadas no Rio de Janeiro, Montenegro Gusmão, um autêntico playboy (ou malandro, como queiram) loiro e elegante, de nome Duarte. Sabendo da admiração frenética dos interioranos pelo universo cintilante da grande metrópole, principalmente pelos estúdios de TV onde as encantadas novelas eram produzidas, Duarte fora logo sendo apresentado pelo seu anfitrião como sendo um irmão de José Wilker, então um galã das novelas em franca e meteórica ascensão (depois descobrir-se-ia não ter este ator nenhum irmão do sexo masculino, apenas três irmãs mais velhas). Esse suposto parentesco abrira as portas de toda a sociedade para o amigo de Montenegro, embora com certas reservas, visto ser este anfitrião suspeito de homossexualismo e perdulário, gastando no Rio de Janeiro toda a fortuna de sua tradicional família de pecuaristas. Quase um mês após sua chegada, conseguindo ele vender quase todo o seu estoque de perfumes franceses e maquiagem que trouxera consigo para as mulheres ricas da elite agrária do lugar, aconteceu um acidente que viria a se tornar frequente nos primeiros anos da estação repetidora de TV no alto da montanha: Pifou uma válvula, não uma simples válvula descartável, destas de rádios que qualquer oficina sabia substituir, mas uma daquelas heradas, feitas na antiga União Soviética, e de difícil reposição, devido aos empecilhos que o governo militar colocava para a sua importação. Tão logo o povo humilde se apaixonara pelas novelas noturnas na TV, uma delas já perto de acabar, e a tragédia de ficar sem o sinal da repetidora varreu toda a alegria da pequena cidade. Queria ser um poeta para descrever a melancolia das noites com as pessoas na porta de suas casas, ouvindo rádios de pilha para espantar a saudade dos astros e estrelas das novelas, dos quais eram vagos e mortos simulacros aquele cortejo de pontos luminosos no céu estrelado sobre suas cabeças. Muitos olhavam para o alto do morro onde se podia ver, quando em operação, uma luz vermelha a piscar na extremidade da antena, feito um planeta habitado por anjos, o único entre tantos e incontáveis astros ao redor, a ter vida e vida em abundância. Mas agora a luz não piscava mais! E por falar em anjo é que posso bem definir como o Duarte passou a ser visto desse dia em diante; não bastasse sua aparência platinada a lá Ted Boy Marino (outro ídolo do nosso povo, lutador de tele catch e artista de circo que um dia por lá passou se apresentando no Grande Circo Bartolo, circo este que findou por ser carregado por uma enchente do Rio Verruga, mas isso é outra história...). Duarte dizia ter amigos na Rede Globo, com quem falava sempre ao telefone, e sabia todos os detalhes do que estaria acontecendo nas novelas, inclusive sabia o que ainda não fora filmado, pois sabia detalhe dos roteiros escritos por Dias Gomes, Janete Clair, Lauro Cézar Muniz e todos os assistentes, amigos, conhecidos e clientes dos seus fabulosos cosméticos parisienses! De repente, o povo desalentado poderia não apenas saber em que pé desenrolavam-se os dramas de amor e intriga, como também saberiam o que o futuro lhes reservava, fruindo de uma gozosa compensação ao ouvir o enfático narrador sentado na sala contando como tal ator rompera com a filha de um milionário para se jogar nos braços de uma viúva, como a mocinha sofre um acidente de automóvel ou quando haviam assassinado o todo poderoso prefeito e qual rumo tomavam as investigações! Duarte devia ser mesmo um irmão por contágio do José Wilker tamanha a sua desenvoltura e senso teatral ao narrar os detalhes para o povo humilde sentado no chão das calçadas, recostado nos automóveis da praça ou nos bancos do jardim, aonde quer que Duarte estivesse com seu séquito de seguidores ávidos por notícias de seus ídolos! O amor estava no ar e uma destas seguidoras de Duarte o seguia não mais por interesse nas novelas onde ela aprendera a amar, mas no próprio narrador, em uma clássica situação de transferência erotômata, desde Sócrates e Alcebíades até os vigaristas psicanalistas do século passado! Era Sara Quinha, uma adolescente de 14 anos, perdida de amores pelo carioca esbelto e de sotaque sibilino. Provavelmente o seu primeiro amor, e todos que tiveram um sabe a dimensão que isto representa. Caminhava sobre nuvens, ao redor da praça municipal, ouvindo em êxtase o seu príncipe responder com riqueza de detalhes cenográficos às perguntas dos curiosos. Duarte não apenas descrevia as novelas como revelava detalhes picantes dos atores e atrizes que ele conhecia como ninguém, seus amores secretos e perversões insinuantes, suas famílias e seus próximos papéis em outras aventuras onde as personagens se entrelaçavam em uma verdadeira "teledramatorgia"! Evidente que esse Duarte era simplesmente uma versão sofisticada e eficaz dos velhos camelôs de feira, se aproveitando das pausas em seus comentários para vender perfumes, batons, esmaltes e bijuterias que jurava serem usadas pelas grandes vedetes e responsáveis pelo fascínio que elas exerciam nos estúdios de gravação! Sara Quinha era o exemplo vivo do feitiço que aqueles cosméticos representavam, pois era a vítima encarnada dos filtros de amor neles contidos. Vivia para Duarte e o seguia à distância por toda a cidade. Dormia pensando nele, sonhava-lhe como um anjo dourado e enchia seus cadernos escolares com mil corações em volta do seu nome e o nome dela, escritos em canetas com cheiro e cor de chiclete e tinha obscenos orgasmos ao abraçar o travesseiro que personificava o hóspede encantado de Montenegro Gusmão. Menina naif de expressivos e artísticos pendores, Sara Quinha decidiu pintar uma tela com a imagem do seu amor. Trancou-se no seu quarto e decidida a só dele sair quando a tela estivesse pronta. Sabendo que jamais teria coragem de se declarar para um homem feito e conhecedor do mundo inteiro que ela só via na TV, era preciso que aquele quadro fosse capaz de revelar a quem o visse, a intensidade do seu sublime amor! Bastou-lhe um sábado inteiro debruçada sobre a tela para esta ficar pronta. Nela, Duarte era representado como um ginete medieval, um pajem impulsivo e arrebatador, inclinado sobre um negro e voluptuoso cavalo, oferecendo uma virginal e branca rosa a quem lhe contemplasse! Recordo-me, quando recolhi os fragmentos de Eucatex sobre cuja superfície a imagem fora pintada, e estilhaçados pelo episódio que narro agora, do genial artifício que Sara Quinha utilizou para pintar o cansaço e o esforço do cavalo após uma vigorosa e prolongada cavalgada: uma espuma amarelada no canto da boca do animal! Duarte tinha o costume de passar os finais de semana na fazenda do seu anfitrião Montenegro e costumava passear a cavalo pela cidade aos domingos, vindo montado da fazenda e circulando garboso pelas ruas principais da cidade. Sara Quinha acordou cedo e ficou na varanda da sua casa, onde inevitavelmente Duarte passava em tais passeios, e o esperou uma eternidade, o sol ajudando a secar partes ainda úmidas da sua tela pintada a óleo. Era quase dez horas da manhã quando ela ouviu um tropel de cascos sobre os paralelepípedos da rua, tropel que facilmente era sufocado pelo baticum em frenesi do seu peito apaixonado. Segurando o quadro feito uma porta-bandeira de escolas de samba, Sara Quinha correu para o meio da rua e jogou-se à frente de Duarte que, com muita dificuldade, conseguiu refrear o brioso corcel e olhar curioso para a imagem ainda fresca a cintilar no sol de verão tropical. Logo acima da moldura superior, assomava um par de tímidos olhos adocicados e dardejando amor! Demorou poucos segundos para Duarte, reconhecendo seu retrato pintado com tanto idealismo, entender também o que ela significava. Com um ríspido crispar de rédeas, Durval encarou Sara Quinha e lhe confessou para todo mundo ouvir:
_ Da fruta que você gosta, minha filha... EU CHUPO ATÉ O CAROÇO!
E assim, confessando suas inclinações sexuais, e talvez zangado por ter sido coagido a fazer isso, ou apenas por pura e gratuita aversão ao quadro que lhe representava com uma odienta virilidade, empinou o cavalo e a pata deste, como se guiada pelo cérebro pernicioso do falso galã, percutiu a ferradura no pedaço de Eucatex lançando longe a pintura que se espatifou em vários pedaços! Sara Quinha disparou em direção ao seu quarto, sem dar tempo das lágrimas caírem antes que seus olhos afundassem no travesseiro perfumado e agora odiado, que outrora fora a emulação do seu primeiro e intenso amor! Ali permaneceu todo o domingo e manhã de segunda, sem falar com ninguém nem se alimentando. Quando finalmente desceu as escadas, parecia outra pessoa. Amadurecida e completamente liberta do feitiço de Duarte! Trazia nas mãos um pacote de cosméticos que havia comprado em mãos dele e tratou de jogar tudo na churrasqueira no fundo do quintal e atear fogo sob os olhares inquietos e preocupados da sua mãe e irmãos mais novos. Almoçou à mesa com toda a família e conversou sobre coisas triviais, o que findou por dispersar qualquer preocupação posterior e tudo parecia que iria voltar ao normal. Três dias depois, sem que ninguém desse por conta, Sara Quinha conseguiu abrir, nos fundos da garagem, o escritório do seu pai - dono de lavras e especialista em dinamitar rochas em busca de pedras preciosas - e apanhar uma banana de dinamite, escondendo-a sob a roupa. Em poucos minutos, se alguém olhasse com um binóculo para as trilhas que subiam o morro de Dona Mira, conseguiria ver a resoluta adolescente se aproximar em ritmo lento e determinado da casamata onde ficava a estação retransmissora de TV. Os reparos já estavam bem adiantados e muito em breve o sinal iria voltar. Sem ninguém para lhe deter, Sara Quinha subiu um lajedo ao lado da construção, de frente e a dois palmos de uma claraboia e por ali fez descer a banana de dinamite, não sem antes acender o longo pavio e correr depois para detrás das árvores no sopé da montanha. Segundos depois toda a cidade pode ouvir ressoar no vale cristalino o trovão da dinamite levando pelos ares o telhado da casamata e pedaços derretidos dos equipamentos enquanto a antena balançava sob efeito do deslocamento de ar em uma cena parecida à explosão da casa no penhasco, na cena final de Zabriskie Point, filme do Michelangelo Antonioni! Sara Quinha, sem remorsos nenhum, desceu pelo outro lado da montanha, enquanto muitas pessoas se dirigiam ao local para se atinarem do que havia ocorrido. Nenhum rastro deixou a terrorista mirim. Sara Quinha conseguiu voltar para casa sem ninguém desconfiar da sua conduta criminosa. Um inquérito fora aberto e o pai de Sara prestou queixa do desaparecimento da banana de dinamite, mas daí a associar esta explosão a sua filha era algo imponderável e sem sentido nenhum. Somente duas décadas depois, embriagada durante uma festa de carnaval em Salvador, é que Sara Quinha resolveu confessar o seu crime em tom de chacota e muito riso ao seu então amante, o falecido fotógrafo italiano Vitor Diniz, quem depois, findo o romance, deu com a língua nos dentes. Não é verossímil supor que fora uma vingança contra o desprezo de Duarte, exceto se ela quisesse prolongar a presença dele como griô e noveleiro do povo desassistido audiovisualmente, o que seria contraproducente; aliás, Duarte acabara por ser desmascarado naquela mesma semana, após um colecionador de revistas compradas na cidade vizinha mostrar para todos o verdadeiro status das novelas, revistas estas que traziam em suas páginas todo o script e resumo semanal do que acontecia nas telas da TV. Duarte fez suas malas e voltou rápido para o Rio de Janeiro. Nunca mais deu notícias. Seu anfitrião Montenegro há muito faleceu e Sara Quinha, hoje uma avó de duas lindas crianças de cinco e três anos, vive juntando dinheiro para levar seus anjinhos para a Disneyworld! Aqui ficamos rezando para que ela não se apaixone pelo cicerone e invente de dinamitar o castelo da Cinderela. Sempre a achei uma pessoa muito estranha!


Vejam a cena final da dinamite clicando AQUI

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