PROÊMIO:
A não tão humilde
assim – pois que seu interior revelava um quase estiloso luxo na decoração, no
toalete e nos armários da cozinha onde se estocou outrora alimentos finos –
casa de Dionê estava apinhada de carros na porta, Simca Chambord, Aerowyllins,
Gordinis e até um classudo Chevrolet Oldsmobile do prefeito da vizinha cidade
de Itapetinga estavam estacionados na rua descalça, de casas humildes cheias de
gravatás e quaresmeiras desenhando invisíveis calçadas. Uma considerável
multidão de curiosos empilhava-se no alto batente de pedras, nas janelas e
portas do fundo, curiosos para ver a solene reunião de familiares nunca antes
vistos, quando o tabelião, que também era coletor de impostos e farmacêutico,
Olavo Vidigal, iria abrir o lendário baú de Dionê, onde, muito provavelmente
haveria uma grande fortuna de jóias que ela amealhara durante as décadas de 40
e 50 do século passado, como vidente e curandeira renomada, atendendo clientes
de todo o sudoeste baiano, e que a sua casa comparecia em busca dos dons
mágicos e curativos. Não fazia nem duas semanas que ela fora sadicamente
torturada até à morte pela nata da sociedade itambeense, por ricos fazendeiros
e suas enfurecidas esposas, pelo séquito de capangas, afilhados, bajuladores e
outros perversos sem nenhum prejuízo aparente, a descarregar socos e sopapos no
corpo mirrado e desfalecido da pobre senhora! Muitos até ali perto se
encontravam, ou tinham emissários dentro da casa, ansiosos para conferir o
conteúdo do baú, certos de que muitas de suas joias, doadas com jubilosa boa fé
e gratidão, lhes seriam restituídas tão logo apresentadas e confirmadas a
origem delas. As circunstâncias do seu assassinato hediondo foram tais que, os
parentes de última hora convidados pelo testamenteiro não se queixavam do crime
bárbaro nem os assassinos se preocupavam em dissimular o ocorrido. Para saber que
circunstâncias foram estas precisamos recuar duas décadas, até o começo dos
anos trinta, precisamente janeiro de 1932, quando Dionê, então uma bela cigana
de olhos verdes, chegou à Itambé com duas malas na mão, saltando da velha
marinete, único meio de transporte entre as cidades da região, e se hospedando
no recém-inaugurado hotel de Maria Gorda. Seus primeiros movimentos são
inescrutáveis. Trabalhou de feirante, lavadeira, cozinheira até se envolver com
um fugitivo do bando de Lampião (foram muitos que passaram por lá após o
cangaço ser dissolvido, buscando um lugar para se esconder da lei e levando
consigo seu pequeno tesouro escondido no corpo, entre armas de fogo e um
antológico punhal). Esse romance mal sucedido trouxe como sequela, além de um
coração partido, o fim completo da reputação de Dionê, já profundamente
ressabiada por ser uma cigana sem origem e sem dotes nenhum além da sua força
de trabalho. Ninguém quis mais lhe dar emprego e ela alugou um barraco na
periferia, então um grande matagal às margens do rio Verruga, aonde a cidade
chegou preguiçosamente, aproximando-se dela na mesma lenta proporção em que sua
reputação foi sendo recuperada por conta da sua assombrosa – e por fim
desacreditada – feitiçaria. Certa noite, já convertida em pária e atendendo
raros clientes que se esgueiravam pelas margens do rio Verruga para se
consultar com a vidente e seu curioso baralho de cartas, Dionê procurou o
ambulatório do médico Jorge Heine, recém chegado à cidade, transpirando sangue
escuro e espesso por todos os poros. O médico improvisou um leito e tentou
estancar o fenômeno sem ter nenhuma ideia do que poderia estar lhe acontecendo,
provavelmente um efeito de beberagens do mato, próprias de curandeiros,
conjecturou em seus diários. Inconsciente, em um misto de transe e
desfalecimento, Dionê sussurrava:
_ PLANTEM! COMPREM
BEZERROS E ENCHAM OS PASTOS! VAI CHOVER MUITO ESSE ANO! MEU SANGUE ANUNCIA A
ÁGUA DAS ALTAS CABECEIRAS DAS INVERNADAS!
Era então novembro,
mês das esperadas chuvas sazonais. A região passava por uma seca flagelante e
muitos fazendeiros e camponeses sofriam com a prolongada estiagem. Tão logo
Dionê teve alta da sua suposta intoxicação, voltando ao seu casebre com o raiar
do dia, uma diluviana formação de cúmulos cinzentos e relampejantes cobriu os
céus de Itambé e choveu dois dias sem parar! Os rios e aguadas transbordaram, a
cidade inteira, assim como o barraco da cigana, ficaram inundados. Quando o
temporal passou, em um misto de sofrimento pelos danos, e alegria pelo fim da
estiagem, os habitantes se reuniram solidários em reconstruir as casas mais
humildes e mais danificadas. O médico Jorge Heine lembrou-se e comentou no bar,
entre uma e outra talagada comemorativa, a curiosa premonição da cigana que ele
diagnosticou intoxicada. Era um homem de Ciência, mas não o era o povo, que
logo atribuiu ao ocorrido um profundo e misterioso dom de adivinhação. Por
conta disso resolveram ajudá-la a consertar o seu barraco inundado,
dedicaram-lhe doravante um inusitado respeito e até mesmo crédito no armazém de
João Rucas, um mascate bem estabelecido, achou ela de gozar, comprando algumas
coisas antes só lhe vendidas “no pau”, no dinheiro vivo! Tal mudança de
consideração para com a cigana se explicava facilmente pela dependência de toda
a economia do povoado às efemérides do clima, além de imperar no coração dos
nativos a superstitio prava e imódica, capaz de enlouquecer e converter seus
possessos em bestas assassinas, como de fato os convertera. Passou-se um ano,
veio a estação seca do inverno. Os rios se encolheram, as cacimbas secaram e a
apreensão dos agricultores e pecuaristas roía a cada noite um pedaço maior do
sono benfazejo. Alguém se lembrou da cena do ano anterior, de Dionê sangrando
pelos poros a anunciar a chuva iminente. Correu lá para visitá-la, levando-lhe
bolos e coalhada e um olhar perquiridor. Por sorte, encontrou-a na cama de
varas de fedegoso, se queixando de dores no corpo e de minúsculas gotículas de
sangue a lhe escorrer pelo pescoço e pelos quartos (ancas). O rapaz encerrou a
visita de modo inopinado e, trôpego de pressentimentos, correu ao fundo do
mercado municipal espalhando a descoberta do sinal no corpo da cigana. No dia
seguinte, uma fina e vaga cortina de água varreu os telhados e muros de pedra
da cidade. Não chegou a formar enxurrada, sequer saciou a sede da terra, mas
encheu de esperanças o povo que vivia com os olhos no horizonte à espera de um
milagre como aquele, um chuvisco em pleno fim de inverno! A partir de então,
por conta de uma enfadonha e subjetiva acomodação de opiniões, crenças e
percepções compartilhadas, Dionê se convertera em uma espécie de barômetro de
sangue, anunciando no sangue místico que aflorava em sua pele – e cuja causa
nunca saberemos apontar, precisamente agora que só os seus ossos secos e violentamente
partidos repousam no cemitério local – a pluviometria caprichosa do Vale do Rio
Pardo, no sudoeste da Bahia! Posso até dar um salto no inventário desse caso de
amor e morte entre uma população de sedentários agricultores e uma nômade
feiticeira, e passar para o momento, quase uma década depois, onde, de modo
muito previsível, seu poder de premonição transformou-se, em causa dos
fenômenos previstos. Muitos e muitos profetas passaram por isso: de videntes e
adivinhos, se converteram em agentes causais por conta de um elo misterioso com
as forças secretas que a eles o futuro revela. Tal inversão de causa e efeito é
muito comum também na mente do povo que vive de associar ideias por critérios
quase nunca racionais. Nos tempos antigos da cristandade, bem antes do ano mil,
os reis da Europa usavam o toque de suas mãos para curar escrófulas e outras
doenças da pele. Na Sexta-feira Santa, além do toque mágico, os Reis ofereciam
aos peregrinos, vindos dos confins dos seus reinos, uma moeda de ouro para estes
custearem suas viagens de volta. Os peregrinos guardavam essas moedas,
derretiam para fazerem anéis e ornamentos, julgando que a cura permanecia, por
contágio e associação, presente no ouro oferecido. Quando uma criança desenha o
vento como uma nuvem com rosto humano e largas bochechas a soprar – os antigos
até o personificava dando-lhe o nome de Bóreas -, ela faz algo bem semelhante:
confere o poder do vento para a nuvem, que apenas sofre o efeito dele. Algo
semelhante ao que o povo de Itambé fizera com a cigana Dionê, transformando-lhe
de vidente em feiticeira responsável pelas chuvas que sustentava a economia do
lugar. Não que ela tivesse se antecipado a essa impostura; não queria e temia
até essa responsabilidade tamanha, mas o prestígio e as benesses da nova
posição a seduzira como uma enxurrada que facilmente dissolve o barro de uma
ribanceira que protege nossas hortas! O motor dessa entronização fora o
prodigioso balaio de presentes e oferendas que o povo humilde (muito rápido
imitado pela elite dos latifundiários) começou a depositar na sua porta. Assim
que o pasto secava, que o rebanho exibia os ossos das costelas e cortava o
leite, a lavoura esconder seus frutos e os brejos em lama seca se converter,
começava a aparecer na porta da cigana embornais de linho branco com biscoitos
e fubá, perfumes baratos, peças de chita e brocados diversos, anáguas e
califons, panelas e fivelas, bilhetes de rifa, itens de presumível valor
deixado ali por camponeses desesperados por chuva, esperando que tais mimos fizessem
a vidente sangrar até morrer, se preciso fosse, pois quanto mais sangue
derramado, mais chuva copiosa no pasto, mais água nos poços, mais sombra de
nuvens no frescor das tardes, rezava a lenda. Como que uma alma simplória e de
poderes inconscientes como Dionê poderia antecipar a maldade daquele povo, já
insinuada no rito de lhe oferecer bens materiais na esperança de ver seu sangue
derramado? E como ela poderia recusar tamanha generosidade na medida em que
novos e mais prósperos devotos adotavam o gesto de depositar ofertas em sua
porta? Vitrolas portáteis com discos de Dalva de Oliveira, Noite Estrelada e
Luiz Gonzaga! Organdis e galochas de pele de veado, exemplares da revista O
Cruzeiro, garrafas de espumante e conhaques finos vindos da capital Salvador!
Em todos os cestos de presente, o nome do ofertante, o nome da fazenda e dos
santos devotos! E foi assim que a cigana Dionê acabou se tornando uma próspera
e influente moradora do lugar, frequentando a casa dos grã-finos, convertendo
seu antigo casebre na beira do rio Verruga em uma suntuosa chácara, andando de
charrete e a primeira mulher a adquirir um automóvel, um Kharman-Guia verde
esmeralda que buzinava como a trombeta de um anjo anunciador do progresso. Tudo
ia bem; todo ano ela sangrava na proporção exata do volume de chuvas
precipitado, mas fora justamente essa exata proporção o que quebrou a crença
ilegítima dela ser a causa das chuvas, como um barômetro que apenas indica a
presença da umidade do ar, sem potência nenhuma para fazê-la precipitar. Vieram
os anos secos, a famosa seca dos anos cinquenta. Não chovera uma única gota em
1952 e os presentes rarearam. No ano seguinte, também nenhuma gota, o
sofrimento começou a atingir também os grandes proprietários e, no fim daquele
ano, nenhuma oferenda amanheceu na calçada da casa de Dionê. A princípio ela
julgou ser apenas a penúria do povo a causa de tal parcimônia em uma gente tão
generosa, mas a sombra de uma suspeita começou a rondar o pátio de seus
pensamentos. O povo poderia ter percebido que ela era apenas a mensageira das
chuvas e a recompensando pela quantidade de chuvas ocorridas! Os presentes não
seriam mais um crédito para auferir futuras trovoadas, mas apenas o pagamento
pelas águas efetivamente caídas, afinal nestes dois anos de seca ele praticamente
não transpirou uma única gota de sangue! Pode ser que uma dúvida inicial
pairasse na mente obscura e supersticiosa do homem do campo: seriam os
presentes que não estariam mais agradando a Senhora das tempestades ou seria a
quantidade quase irrisória de sangramento na pele a prova de que ela somente
era capaz de anunciar as chuvas, sem nenhuma influência no volume derramado?
Veio o terceiro ano de seca. Nenhuma gota d’água na primavera de 1954. A fome
gemia e o êxodo do povo rural de Itambé para São Paulo enchia a praça de ônibus
e caminhões paus-de-arara. Era o terceiro ano em que Dionê sangrava uma única
gota os poros e o seguno ano em que não recebia um único donativo, uma única
peça de chiffon para suas vestimentas espalhafatosas. Nem mesmo seu crédito no
armazém de Santão, Ananias ou Queiroz fora renovado. A isso se somava seu
caráter perdulário que lhe fizera dissipar tudo que amealhara nos anos de chuva
gorda. Resumindo: Dionê, solidária com o povo que lhe adotara e a esquecia,
estava na miséria, matando cachorro a grito! Em um domingo de Reis, em janeiro
do ano de 1955, após uma cansativa excursão pelas fazendas próximas da sede,
buscando em vão por reisados e celebrações onde pudesse granjear uma cesta de
alimentos e só encontrando desolação e fome nos casarões semiabandonados, Dionê
voltou para casa disposta a tomar uma providência que pudesse por algum grão de
comida em suas prateleiras vazias, mesmo que isso pudesse por em risco a sua
reputação de iniciada nos mistérios da natureza, coisa que, aliás, não estava
mais servindo para nada. Resoluta e possuída por alguma força sobrenatural, ou
apenas simulando estar para conseguir coragem, cercada de dezenas de imagens e
utensílios encantatórios, Dionê apanhou um estilete no banheiro e começou a
cortar a pele do corpo inteiro, braços, pernas, ombros, pés, rosto... Sempre
com perfurações bem pequenas, cujos sangramentos imitassem gotas pequenas e
intermitentes. Em seguida, vestindo um fino robe de cambraia que rapidamente
começou a se pontilhar com as gotas do seu sangue escuro, Dionê tomou o rumo da
Igreja matriz, onde o povo inteiro se acotovelava a ouvir a missa do
recém-ordenado Pe. Juracy. Sob a luz de um luar prateado e pincelado de amarelo
pelas lâmpadas da iluminação pública, Dionê subiu as escadarias e adentrou na
Igreja, descalça e já seguida pelo olhar dos curiosos. Imediatamente o Pe.
Interrompeu a homilia e seu olhar estupefato para a mulher seminua na porta fez
todo o povo da missa se voltar em uma uníssona exclamação diante de um milagre
inesperado e fora do script. Providencialmente enfraquecida pela perda de
sangue, Dionê desmaiou no átrio sob a luz dos vitrais derrubando um turíbulo e
fazendo subir uma nuvem de incenso embriagador. Estranhos a ampararam nos
braços e a levaram, semiconsciente, para o hospital municipal recém-inaugurado,
mas ela, temendo a descoberta da farsa, prontamente se restabeleceu e voltou
para casa. No outro dia, como alvíssaras de um novo tempo, sua calçada
amanheceu coberta de oferendas: carnes temperadas e resfriadas em um vasilhame
de isopor, cestos de laranjas, um relógio de parede com um cuco da língua
pontiaguda, caixa de sapatos scarpin, uma bússola de ouro, do finado patriarca
Belisário Ferraz, um broche de diamantes escondido nos bolsos de uma calça de
veludo cotelê, um sonolento cabritinho branco recém-apartado e amarrado no
tronco de um pé de laranja... Dionê não sabia como agradecer tamanha
generosidade retornando em proporções que parecia querer compensar os últimos e
amargos anos. Agora era orar e torcer muito para que as chuvas voltassem, e que
fossem copiosas; e contar todo aquele tesouro acumulado em sua porta! Mas as
chuvas, caprichosas, não vieram! Quinze dias se passaram e o povo começou a
perder as esperanças nas águas de março. Os tonéis foram retirados das bicas,
ou tampados para não evaporar o resto que ali dormia, os vendedores de água
voltaram a percorrer as ruas descalças com seus burricos e caçotes de madeira
ora vazios, ora cantarolando a água doce levada de porta em porta e ninguém mais
especulava a compra de bezerros na praça do mercado. Dionê se viu de repente
cobrada publicamente pela chuva coisa que, outrora, devido ao caráter
sobrenatural do augúrio, ninguém ousava comentar em público. Começou a ficar
mais tempo em casa, e, quando saía às ruas, era sempre com o corpo todo
coberto, apesar do calor, na tentativa de esconder as cicatrizes dos cortes
feitos com o estilete. Descobriu-se depois que esse estilete, de lâmina
enferrujada, fora causa mais verossímil de uma febre tetânica que começou a
incomodá-la. Procurou o médico Jorge Heine, o mesmo que havia lhe atendido
quando da primeira manifestação de sangramento cutâneo, já então um senhor
casado com uma herdeira local e sem temer mais a concorrência de ervateiros e
feiticeiros da mata. Pressionada, contou-lhe todo o ocorrido, seu desespero com
a miséria iminente e seu truque inopinado de se automutilar. Dr Jorge lhe
prescreveu alguns medicamentos mas não conseguiu se conter e, ao tomar um trago
de gengibrina com os amigos no Clube Social, deu com a língua nos dentes. Em
algumas horas a notícia do golpe aplicado pela cigana na comunidade ingênua do
lugar chegou a todos os lares. Ninguém queria mais saber dos avisos precisos do
passado, quando ela sangrava espontaneamente indicando a iminência das chuvas e
a sua exata proporção. Certamente também houvera anos em que o intervalo entre
suas premonições e a tromba d’água fosse a mesma desta atual circunstância, o
que autorizaria uma espera mais cautelosa pelas águas, mas o fato dela ter agido
de má-fé soterrou toda a credibilidade do povo em um suposto vínculo dela com
as coisas sagradas do bom Deus e uma aura de satanismo crescia em torno da
cigana, principalmente por ser de beatas e de fanáticos do Pe. Juracy a
liderança da horda que marchou em direção à casa de Dionê, em transe de fúria e
indignação. Invadiram a casa da profetisa, encontraram o estilete com marcas de
sangue embaixo do colchão e pilharam tudo que puderam. Dionê teve suas roupas
rasgadas, exibida suas cicatrizes da farsa praticada e arrastada para os fundos
da chácara entre os pés de sapoti e jaboticaba – alguns ainda prodigiosamente
preservados pelo atual dono da chácara, meu colega de ginásio, Gilbertinho
pé-de-gás – e testemunharam um macabro linchamento que pôs fim à vida da pobre
profetisa e cujos detalhes prefiro não descrever em respeito a eventuais
parentes ainda vivos da minha protagonista.
EPÍLOGO:
Nesse ponto da
narrativa, volto à cena inicial na casa apinhada de curiosos, semanas após o
linchamento, funeral e inquérito aberto (uma mera formalidade, pois até hoje
quase 70 anos transcorridos, ninguém fora indiciado). Conforme descrito no
início, entre os curiosos, familiares distantes, amigos e autoridades reunidas
na Chácara da defunta, havia muitos que participaram do linchamento, agora com
olhares cúmplices e furtivos, novamente unidos por um sentimento comum: a
esperança de resgatar suas antigas doações à profetisa, mesmo que ela os
tivesse vendido e naquele baú estivesse apenas o dinheiro amealhado e guardado
por mais de uma década de oferendas. Após uma formalidade engomada, o tabelião
Olavo Vidigal leu um arremedo de testamento post-mortem, onde os parentes
reunidos concordaram em destinar sua casa, contendo ainda resquícios do luxo de
outrora, para uma prima idosa, residente em Contendas do Sincorá, na Chapada
Diamantina. O conteúdo do baú, na eventual ausência de outro lesado
proprietário, capaz de provar a origem do bem ofertado em troca de uma chuva
que parecia nunca mais cair por aquelas bandas em deserto transformado, seria
repartido entre os proprietários presentes. Um silêncio de morte tomou conta de
todos quando o tabelião sacou de uma longa peixeira e com ela começou a forçar
a fechadura do baú de dobradiças quase enferrujadas e madeira vermelha como o
próprio sangue que a sua proprietária costumava exsudar! Aquele tempo não havia
os absorventes femininos que hoje se encontra em toda e qualquer farmácia ou
birosca de rodoviária. As mulheres de antão, usando de panos finos, tafetás,
linhos algodão e sedas - quando mulheres de famílias ricas – confeccionavam
lenços que usavam, quando menstruadas, como absorvente menstrual. Muitas delas,
por conta do valor do tecido, costumavam lavá-los e reutilizar. Dionê não fugia
à regra e tinha o hábito guardar seus trapos de xibiu lavados e dobrados dentro
do baú. Por preguiça, displicência ou outro defeito que me constrange
especular, em se tratando em pessoas mortas, a higiene não era a marca fulcral
desses panos. Dionê sempre providenciava outros e ia acumulando-os no fundo,
tornando estes verdadeiros e empapados acúmulos de sangue menstrual acrisolado
e ressequido nas fímbrias dos tecidos de fina tessitura. Pode ser que nos
últimos anos de vida ela tenha se adaptado aos novos costumes de usar
absorventes descartáveis (não sei precisar em que ano começou a se vender esse
artigo nas farmácias e mercados do interior baiano) e o tempo se encarregou em
apodrecer e curtir o tesouro genital no baú acumulado. Nas bordas internas da
madeira de lei, uma estranha colônia de pequenas mariposas em casulos
cinzento-prateados, dormiam, quiçá por décadas, no futum embriagadas. Com os
primeiros movimentos, elas se desprenderam e começaram a voar no espaço
interno. Assim que o tabelião abriu a tampa, junto com a fedentina de mênstruo
apodrecido, uma nuvem de mariposas cor de sangue pisado revoluteou em torno dos
atônicos e intoxicados convivais. Parecia não ter fim o enxame que saia do
enorme recipiente aberto. Após tomar a sala inteira, algumas encontraram uma
fresta por uma telha estiolada e por ali fugiram; outras não conseguiram passar
pela fresta, pois o inacreditável nisso tudo era que elas, as mariposas, iam
inchando de tamanho à medida que revoavam pela sala. Como se insufladas por um
vento sobrenatural, rapidamente ganhavam a forma de pequenas nuvens de água e
sangue, saindo pelas janelas a expulsar os curiosos assombrados com tais
mariposas em forma de nuvem, já do tamanho de uma gaivota ao passarem pelas
janelas. Tudo por conta do sangue mágico e sintonizado com os elementos do
clima, sou forçado a crer! Em poucos instantes, um gigantesco enxame de nuvens
voadoras, monstruosas mariposas sudoríferas e encharcadas, escureceu o céu de
Itambé e desabou como um dilúvio memorial chovendo três dias e três noites
consecutivas, sepultando, sob a enxurrada que alagou os vales do Verruga e Rio
Pardo, as lembranças da infeliz vidente, cujos sangramentos encantados, na
mente dos poucos e antigos habitantes que por lá permanecem, é um episódio mais
tênue que uma sombra noturna, mais sutil que um vapor nos campos, mais vago que
uma lágrima na chuva!
3 comentários :
Nunca ri tanto numa situação de pandemia como a que estamos vivendo. É que nasci justamente em 1954 os meus pais nunca falavam a respeito dessa mulher nem uma vez sequer. Meu pai, um barbeiro ali da Rua Nova ouvia muitos "causos" durante o seu ofício, principalmente aos finais de semana em que o povo da roça vinha vender seus mantimentos. Minha mãe era costureira, muito bem relacionada na profissão. São coisas que somente este brilhante escritor costuma esmiuçar. Como a história de Itambé é rica, a não ser pelo fim bárbaro da figura em questão. Belo relato. Espero que mais leitores possam de deleitar. Um abraço, meu amigo.
Obrigado pela leitura e pelos compartilhamentos! Se quiser repetir seu comentário no Facebook segue o link! A história é fictícia, mas a protagonista realmente existiu e teve um final bárbaro, assassinada por um cliente a mando de muitos!
https://www.facebook.com/CassianoRibeiroSantos/posts/1450266318494905
Hoje conversei com um senhor de 92 anos, Seu Siloé, morador de um distrito que, acidentalmente, leva meu nome: CASSILÂNDIA, e ele me contou uma pitoresca história muito antiga, passada em Itambé. Em 1941, ele tinha 14 anos de idade e presenciou a chegada de um destacamento de polícia nesta cidade, vinda de Salvador para garantir que o médico Dr. Jorge Heine - filho ou neto de alemães - não sabemos precisar, pudesse atender a população local. Ele estava sofrendo ameaças e a população estava proibida de consultá-lo, pois os curandeiros e raizeiros da cidade e zona rural não queriam perder a clientela. Um aparentado do médico Jorge Heine, de nome Belisário Ferraz, fora à Salvador e reportara o fato ao intendente Juracy Magalhães, que lépido e presto enviou o destacamento. Liderando essa tropa, veio um sargento, de nome Salviano, que, para bem cumprir seu propósito de coibir o exercício ilegal da medicina e voltar logo pra a esbórnia da capital, resolveu tomar a iniciativa de perseguir os curandeiros, ao invés de montar guarda e ficar esperando um quase impossível flagrante de ameaça ou coação ao médico; até porque os métodos da feitiçaria são invisíveis e insidiosos, basta o olhar de um bruxo para que sua espinhela caia, sua pleura constipe e seu saco encolha... Salviano partiu para o ataque. Ele e seus esbirros se imiscuíam entre os feirantes procurando por remédios caseiros, xaropadas e ervas brabas. Tanto se queixavam de dores lancinantes e exibiam sua cédulas amarelas de contos de réis que logo eram levados até um curandeiro em alguma casa mais afastada da periferia. Uma vez ali dentro, tão logo o curandeiro se apresentava e começava a consulta, eles puxavam um providencial porrete e surravam o pobre feiticeiro até deixar este moído que nem todo o seu estoque de garrafada e mandingas poderia aliviar. Terminada a pancadaria, arrastavam o coitado, mais morto do que vivo, e o trancafiava nas celas insalubres da cadeia municipal. Bastara-lhe três ou quatro corretivos destes para Salviano sentir que o problema estava resolvido e o médico Jorge Heine pode, enfim, abrir seu consultório e atender o povo de itambé, finamente liberto das superstições e da feitiçaria. Evidente que esse episódio não exterminou completamente os ervateiros e curandeiros do lugar. Nos comentários deste post publicarei alguns links sobre episódios literários neles inspirados. Também tem feitiços meus textos: já aconteceu de uma leitora, certa feita, de madrugada, vir andando, sonâmbula, até aqui no meu chalé, para se curar de uma dor nos quartos. Saiu daqui com os quartos mais doloridos ainda, voilá!
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