quinta-feira, 17 de setembro de 2020

OS PANOS DE DIONÊ ou O BARÔMETRO DE SANGUE!

 



PROÊMIO:

 

 

 

A não tão humilde assim – pois que seu interior revelava um quase estiloso luxo na decoração, no toalete e nos armários da cozinha onde se estocou outrora alimentos finos – casa de Dionê estava apinhada de carros na porta, Simca Chambord, Aerowyllins, Gordinis e até um classudo Chevrolet Oldsmobile do prefeito da vizinha cidade de Itapetinga estavam estacionados na rua descalça, de casas humildes cheias de gravatás e quaresmeiras desenhando invisíveis calçadas. Uma considerável multidão de curiosos empilhava-se no alto batente de pedras, nas janelas e portas do fundo, curiosos para ver a solene reunião de familiares nunca antes vistos, quando o tabelião, que também era coletor de impostos e farmacêutico, Olavo Vidigal, iria abrir o lendário baú de Dionê, onde, muito provavelmente haveria uma grande fortuna de jóias que ela amealhara durante as décadas de 40 e 50 do século passado, como vidente e curandeira renomada, atendendo clientes de todo o sudoeste baiano, e que a sua casa comparecia em busca dos dons mágicos e curativos. Não fazia nem duas semanas que ela fora sadicamente torturada até à morte pela nata da sociedade itambeense, por ricos fazendeiros e suas enfurecidas esposas, pelo séquito de capangas, afilhados, bajuladores e outros perversos sem nenhum prejuízo aparente, a descarregar socos e sopapos no corpo mirrado e desfalecido da pobre senhora! Muitos até ali perto se encontravam, ou tinham emissários dentro da casa, ansiosos para conferir o conteúdo do baú, certos de que muitas de suas joias, doadas com jubilosa boa fé e gratidão, lhes seriam restituídas tão logo apresentadas e confirmadas a origem delas. As circunstâncias do seu assassinato hediondo foram tais que, os parentes de última hora convidados pelo testamenteiro não se queixavam do crime bárbaro nem os assassinos se preocupavam em dissimular o ocorrido. Para saber que circunstâncias foram estas precisamos recuar duas décadas, até o começo dos anos trinta, precisamente janeiro de 1932, quando Dionê, então uma bela cigana de olhos verdes, chegou à Itambé com duas malas na mão, saltando da velha marinete, único meio de transporte entre as cidades da região, e se hospedando no recém-inaugurado hotel de Maria Gorda. Seus primeiros movimentos são inescrutáveis. Trabalhou de feirante, lavadeira, cozinheira até se envolver com um fugitivo do bando de Lampião (foram muitos que passaram por lá após o cangaço ser dissolvido, buscando um lugar para se esconder da lei e levando consigo seu pequeno tesouro escondido no corpo, entre armas de fogo e um antológico punhal). Esse romance mal sucedido trouxe como sequela, além de um coração partido, o fim completo da reputação de Dionê, já profundamente ressabiada por ser uma cigana sem origem e sem dotes nenhum além da sua força de trabalho. Ninguém quis mais lhe dar emprego e ela alugou um barraco na periferia, então um grande matagal às margens do rio Verruga, aonde a cidade chegou preguiçosamente, aproximando-se dela na mesma lenta proporção em que sua reputação foi sendo recuperada por conta da sua assombrosa – e por fim desacreditada – feitiçaria. Certa noite, já convertida em pária e atendendo raros clientes que se esgueiravam pelas margens do rio Verruga para se consultar com a vidente e seu curioso baralho de cartas, Dionê procurou o ambulatório do médico Jorge Heine, recém chegado à cidade, transpirando sangue escuro e espesso por todos os poros. O médico improvisou um leito e tentou estancar o fenômeno sem ter nenhuma ideia do que poderia estar lhe acontecendo, provavelmente um efeito de beberagens do mato, próprias de curandeiros, conjecturou em seus diários. Inconsciente, em um misto de transe e desfalecimento, Dionê sussurrava:

 

_ PLANTEM! COMPREM BEZERROS E ENCHAM OS PASTOS! VAI CHOVER MUITO ESSE ANO! MEU SANGUE ANUNCIA A ÁGUA DAS ALTAS CABECEIRAS DAS INVERNADAS! 

 

Era então novembro, mês das esperadas chuvas sazonais. A região passava por uma seca flagelante e muitos fazendeiros e camponeses sofriam com a prolongada estiagem. Tão logo Dionê teve alta da sua suposta intoxicação, voltando ao seu casebre com o raiar do dia, uma diluviana formação de cúmulos cinzentos e relampejantes cobriu os céus de Itambé e choveu dois dias sem parar! Os rios e aguadas transbordaram, a cidade inteira, assim como o barraco da cigana, ficaram inundados. Quando o temporal passou, em um misto de sofrimento pelos danos, e alegria pelo fim da estiagem, os habitantes se reuniram solidários em reconstruir as casas mais humildes e mais danificadas. O médico Jorge Heine lembrou-se e comentou no bar, entre uma e outra talagada comemorativa, a curiosa premonição da cigana que ele diagnosticou intoxicada. Era um homem de Ciência, mas não o era o povo, que logo atribuiu ao ocorrido um profundo e misterioso dom de adivinhação. Por conta disso resolveram ajudá-la a consertar o seu barraco inundado, dedicaram-lhe doravante um inusitado respeito e até mesmo crédito no armazém de João Rucas, um mascate bem estabelecido, achou ela de gozar, comprando algumas coisas antes só lhe vendidas “no pau”, no dinheiro vivo! Tal mudança de consideração para com a cigana se explicava facilmente pela dependência de toda a economia do povoado às efemérides do clima, além de imperar no coração dos nativos a superstitio prava e imódica, capaz de enlouquecer e converter seus possessos em bestas assassinas, como de fato os convertera. Passou-se um ano, veio a estação seca do inverno. Os rios se encolheram, as cacimbas secaram e a apreensão dos agricultores e pecuaristas roía a cada noite um pedaço maior do sono benfazejo. Alguém se lembrou da cena do ano anterior, de Dionê sangrando pelos poros a anunciar a chuva iminente. Correu lá para visitá-la, levando-lhe bolos e coalhada e um olhar perquiridor. Por sorte, encontrou-a na cama de varas de fedegoso, se queixando de dores no corpo e de minúsculas gotículas de sangue a lhe escorrer pelo pescoço e pelos quartos (ancas). O rapaz encerrou a visita de modo inopinado e, trôpego de pressentimentos, correu ao fundo do mercado municipal espalhando a descoberta do sinal no corpo da cigana. No dia seguinte, uma fina e vaga cortina de água varreu os telhados e muros de pedra da cidade. Não chegou a formar enxurrada, sequer saciou a sede da terra, mas encheu de esperanças o povo que vivia com os olhos no horizonte à espera de um milagre como aquele, um chuvisco em pleno fim de inverno! A partir de então, por conta de uma enfadonha e subjetiva acomodação de opiniões, crenças e percepções compartilhadas, Dionê se convertera em uma espécie de barômetro de sangue, anunciando no sangue místico que aflorava em sua pele – e cuja causa nunca saberemos apontar, precisamente agora que só os seus ossos secos e violentamente partidos repousam no cemitério local – a pluviometria caprichosa do Vale do Rio Pardo, no sudoeste da Bahia! Posso até dar um salto no inventário desse caso de amor e morte entre uma população de sedentários agricultores e uma nômade feiticeira, e passar para o momento, quase uma década depois, onde, de modo muito previsível, seu poder de premonição transformou-se, em causa dos fenômenos previstos. Muitos e muitos profetas passaram por isso: de videntes e adivinhos, se converteram em agentes causais por conta de um elo misterioso com as forças secretas que a eles o futuro revela. Tal inversão de causa e efeito é muito comum também na mente do povo que vive de associar ideias por critérios quase nunca racionais. Nos tempos antigos da cristandade, bem antes do ano mil, os reis da Europa usavam o toque de suas mãos para curar escrófulas e outras doenças da pele. Na Sexta-feira Santa, além do toque mágico, os Reis ofereciam aos peregrinos, vindos dos confins dos seus reinos, uma moeda de ouro para estes custearem suas viagens de volta. Os peregrinos guardavam essas moedas, derretiam para fazerem anéis e ornamentos, julgando que a cura permanecia, por contágio e associação, presente no ouro oferecido. Quando uma criança desenha o vento como uma nuvem com rosto humano e largas bochechas a soprar – os antigos até o personificava dando-lhe o nome de Bóreas -, ela faz algo bem semelhante: confere o poder do vento para a nuvem, que apenas sofre o efeito dele. Algo semelhante ao que o povo de Itambé fizera com a cigana Dionê, transformando-lhe de vidente em feiticeira responsável pelas chuvas que sustentava a economia do lugar. Não que ela tivesse se antecipado a essa impostura; não queria e temia até essa responsabilidade tamanha, mas o prestígio e as benesses da nova posição a seduzira como uma enxurrada que facilmente dissolve o barro de uma ribanceira que protege nossas hortas! O motor dessa entronização fora o prodigioso balaio de presentes e oferendas que o povo humilde (muito rápido imitado pela elite dos latifundiários) começou a depositar na sua porta. Assim que o pasto secava, que o rebanho exibia os ossos das costelas e cortava o leite, a lavoura esconder seus frutos e os brejos em lama seca se converter, começava a aparecer na porta da cigana embornais de linho branco com biscoitos e fubá, perfumes baratos, peças de chita e brocados diversos, anáguas e califons, panelas e fivelas, bilhetes de rifa, itens de presumível valor deixado ali por camponeses desesperados por chuva, esperando que tais mimos fizessem a vidente sangrar até morrer, se preciso fosse, pois quanto mais sangue derramado, mais chuva copiosa no pasto, mais água nos poços, mais sombra de nuvens no frescor das tardes, rezava a lenda. Como que uma alma simplória e de poderes inconscientes como Dionê poderia antecipar a maldade daquele povo, já insinuada no rito de lhe oferecer bens materiais na esperança de ver seu sangue derramado? E como ela poderia recusar tamanha generosidade na medida em que novos e mais prósperos devotos adotavam o gesto de depositar ofertas em sua porta? Vitrolas portáteis com discos de Dalva de Oliveira, Noite Estrelada e Luiz Gonzaga! Organdis e galochas de pele de veado, exemplares da revista O Cruzeiro, garrafas de espumante e conhaques finos vindos da capital Salvador! Em todos os cestos de presente, o nome do ofertante, o nome da fazenda e dos santos devotos! E foi assim que a cigana Dionê acabou se tornando uma próspera e influente moradora do lugar, frequentando a casa dos grã-finos, convertendo seu antigo casebre na beira do rio Verruga em uma suntuosa chácara, andando de charrete e a primeira mulher a adquirir um automóvel, um Kharman-Guia verde esmeralda que buzinava como a trombeta de um anjo anunciador do progresso. Tudo ia bem; todo ano ela sangrava na proporção exata do volume de chuvas precipitado, mas fora justamente essa exata proporção o que quebrou a crença ilegítima dela ser a causa das chuvas, como um barômetro que apenas indica a presença da umidade do ar, sem potência nenhuma para fazê-la precipitar. Vieram os anos secos, a famosa seca dos anos cinquenta. Não chovera uma única gota em 1952 e os presentes rarearam. No ano seguinte, também nenhuma gota, o sofrimento começou a atingir também os grandes proprietários e, no fim daquele ano, nenhuma oferenda amanheceu na calçada da casa de Dionê. A princípio ela julgou ser apenas a penúria do povo a causa de tal parcimônia em uma gente tão generosa, mas a sombra de uma suspeita começou a rondar o pátio de seus pensamentos. O povo poderia ter percebido que ela era apenas a mensageira das chuvas e a recompensando pela quantidade de chuvas ocorridas! Os presentes não seriam mais um crédito para auferir futuras trovoadas, mas apenas o pagamento pelas águas efetivamente caídas, afinal nestes dois anos de seca ele praticamente não transpirou uma única gota de sangue! Pode ser que uma dúvida inicial pairasse na mente obscura e supersticiosa do homem do campo: seriam os presentes que não estariam mais agradando a Senhora das tempestades ou seria a quantidade quase irrisória de sangramento na pele a prova de que ela somente era capaz de anunciar as chuvas, sem nenhuma influência no volume derramado? Veio o terceiro ano de seca. Nenhuma gota d’água na primavera de 1954. A fome gemia e o êxodo do povo rural de Itambé para São Paulo enchia a praça de ônibus e caminhões paus-de-arara. Era o terceiro ano em que Dionê sangrava uma única gota os poros e o seguno ano em que não recebia um único donativo, uma única peça de chiffon para suas vestimentas espalhafatosas. Nem mesmo seu crédito no armazém de Santão, Ananias ou Queiroz fora renovado. A isso se somava seu caráter perdulário que lhe fizera dissipar tudo que amealhara nos anos de chuva gorda. Resumindo: Dionê, solidária com o povo que lhe adotara e a esquecia, estava na miséria, matando cachorro a grito! Em um domingo de Reis, em janeiro do ano de 1955, após uma cansativa excursão pelas fazendas próximas da sede, buscando em vão por reisados e celebrações onde pudesse granjear uma cesta de alimentos e só encontrando desolação e fome nos casarões semiabandonados, Dionê voltou para casa disposta a tomar uma providência que pudesse por algum grão de comida em suas prateleiras vazias, mesmo que isso pudesse por em risco a sua reputação de iniciada nos mistérios da natureza, coisa que, aliás, não estava mais servindo para nada. Resoluta e possuída por alguma força sobrenatural, ou apenas simulando estar para conseguir coragem, cercada de dezenas de imagens e utensílios encantatórios, Dionê apanhou um estilete no banheiro e começou a cortar a pele do corpo inteiro, braços, pernas, ombros, pés, rosto... Sempre com perfurações bem pequenas, cujos sangramentos imitassem gotas pequenas e intermitentes. Em seguida, vestindo um fino robe de cambraia que rapidamente começou a se pontilhar com as gotas do seu sangue escuro, Dionê tomou o rumo da Igreja matriz, onde o povo inteiro se acotovelava a ouvir a missa do recém-ordenado Pe. Juracy. Sob a luz de um luar prateado e pincelado de amarelo pelas lâmpadas da iluminação pública, Dionê subiu as escadarias e adentrou na Igreja, descalça e já seguida pelo olhar dos curiosos. Imediatamente o Pe. Interrompeu a homilia e seu olhar estupefato para a mulher seminua na porta fez todo o povo da missa se voltar em uma uníssona exclamação diante de um milagre inesperado e fora do script. Providencialmente enfraquecida pela perda de sangue, Dionê desmaiou no átrio sob a luz dos vitrais derrubando um turíbulo e fazendo subir uma nuvem de incenso embriagador. Estranhos a ampararam nos braços e a levaram, semiconsciente, para o hospital municipal recém-inaugurado, mas ela, temendo a descoberta da farsa, prontamente se restabeleceu e voltou para casa. No outro dia, como alvíssaras de um novo tempo, sua calçada amanheceu coberta de oferendas: carnes temperadas e resfriadas em um vasilhame de isopor, cestos de laranjas, um relógio de parede com um cuco da língua pontiaguda, caixa de sapatos scarpin, uma bússola de ouro, do finado patriarca Belisário Ferraz, um broche de diamantes escondido nos bolsos de uma calça de veludo cotelê, um sonolento cabritinho branco recém-apartado e amarrado no tronco de um pé de laranja... Dionê não sabia como agradecer tamanha generosidade retornando em proporções que parecia querer compensar os últimos e amargos anos. Agora era orar e torcer muito para que as chuvas voltassem, e que fossem copiosas; e contar todo aquele tesouro acumulado em sua porta! Mas as chuvas, caprichosas, não vieram! Quinze dias se passaram e o povo começou a perder as esperanças nas águas de março. Os tonéis foram retirados das bicas, ou tampados para não evaporar o resto que ali dormia, os vendedores de água voltaram a percorrer as ruas descalças com seus burricos e caçotes de madeira ora vazios, ora cantarolando a água doce levada de porta em porta e ninguém mais especulava a compra de bezerros na praça do mercado. Dionê se viu de repente cobrada publicamente pela chuva coisa que, outrora, devido ao caráter sobrenatural do augúrio, ninguém ousava comentar em público. Começou a ficar mais tempo em casa, e, quando saía às ruas, era sempre com o corpo todo coberto, apesar do calor, na tentativa de esconder as cicatrizes dos cortes feitos com o estilete. Descobriu-se depois que esse estilete, de lâmina enferrujada, fora causa mais verossímil de uma febre tetânica que começou a incomodá-la. Procurou o médico Jorge Heine, o mesmo que havia lhe atendido quando da primeira manifestação de sangramento cutâneo, já então um senhor casado com uma herdeira local e sem temer mais a concorrência de ervateiros e feiticeiros da mata. Pressionada, contou-lhe todo o ocorrido, seu desespero com a miséria iminente e seu truque inopinado de se automutilar. Dr Jorge lhe prescreveu alguns medicamentos mas não conseguiu se conter e, ao tomar um trago de gengibrina com os amigos no Clube Social, deu com a língua nos dentes. Em algumas horas a notícia do golpe aplicado pela cigana na comunidade ingênua do lugar chegou a todos os lares. Ninguém queria mais saber dos avisos precisos do passado, quando ela sangrava espontaneamente indicando a iminência das chuvas e a sua exata proporção. Certamente também houvera anos em que o intervalo entre suas premonições e a tromba d’água fosse a mesma desta atual circunstância, o que autorizaria uma espera mais cautelosa pelas águas, mas o fato dela ter agido de má-fé soterrou toda a credibilidade do povo em um suposto vínculo dela com as coisas sagradas do bom Deus e uma aura de satanismo crescia em torno da cigana, principalmente por ser de beatas e de fanáticos do Pe. Juracy a liderança da horda que marchou em direção à casa de Dionê, em transe de fúria e indignação. Invadiram a casa da profetisa, encontraram o estilete com marcas de sangue embaixo do colchão e pilharam tudo que puderam. Dionê teve suas roupas rasgadas, exibida suas cicatrizes da farsa praticada e arrastada para os fundos da chácara entre os pés de sapoti e jaboticaba – alguns ainda prodigiosamente preservados pelo atual dono da chácara, meu colega de ginásio, Gilbertinho pé-de-gás – e testemunharam um macabro linchamento que pôs fim à vida da pobre profetisa e cujos detalhes prefiro não descrever em respeito a eventuais parentes ainda vivos da minha protagonista. 

EPÍLOGO: 

 

Nesse ponto da narrativa, volto à cena inicial na casa apinhada de curiosos, semanas após o linchamento, funeral e inquérito aberto (uma mera formalidade, pois até hoje quase 70 anos transcorridos, ninguém fora indiciado). Conforme descrito no início, entre os curiosos, familiares distantes, amigos e autoridades reunidas na Chácara da defunta, havia muitos que participaram do linchamento, agora com olhares cúmplices e furtivos, novamente unidos por um sentimento comum: a esperança de resgatar suas antigas doações à profetisa, mesmo que ela os tivesse vendido e naquele baú estivesse apenas o dinheiro amealhado e guardado por mais de uma década de oferendas. Após uma formalidade engomada, o tabelião Olavo Vidigal leu um arremedo de testamento post-mortem, onde os parentes reunidos concordaram em destinar sua casa, contendo ainda resquícios do luxo de outrora, para uma prima idosa, residente em Contendas do Sincorá, na Chapada Diamantina. O conteúdo do baú, na eventual ausência de outro lesado proprietário, capaz de provar a origem do bem ofertado em troca de uma chuva que parecia nunca mais cair por aquelas bandas em deserto transformado, seria repartido entre os proprietários presentes. Um silêncio de morte tomou conta de todos quando o tabelião sacou de uma longa peixeira e com ela começou a forçar a fechadura do baú de dobradiças quase enferrujadas e madeira vermelha como o próprio sangue que a sua proprietária costumava exsudar! Aquele tempo não havia os absorventes femininos que hoje se encontra em toda e qualquer farmácia ou birosca de rodoviária. As mulheres de antão, usando de panos finos, tafetás, linhos algodão e sedas - quando mulheres de famílias ricas – confeccionavam lenços que usavam, quando menstruadas, como absorvente menstrual. Muitas delas, por conta do valor do tecido, costumavam lavá-los e reutilizar. Dionê não fugia à regra e tinha o hábito guardar seus trapos de xibiu lavados e dobrados dentro do baú. Por preguiça, displicência ou outro defeito que me constrange especular, em se tratando em pessoas mortas, a higiene não era a marca fulcral desses panos. Dionê sempre providenciava outros e ia acumulando-os no fundo, tornando estes verdadeiros e empapados acúmulos de sangue menstrual acrisolado e ressequido nas fímbrias dos tecidos de fina tessitura. Pode ser que nos últimos anos de vida ela tenha se adaptado aos novos costumes de usar absorventes descartáveis (não sei precisar em que ano começou a se vender esse artigo nas farmácias e mercados do interior baiano) e o tempo se encarregou em apodrecer e curtir o tesouro genital no baú acumulado. Nas bordas internas da madeira de lei, uma estranha colônia de pequenas mariposas em casulos cinzento-prateados, dormiam, quiçá por décadas, no futum embriagadas. Com os primeiros movimentos, elas se desprenderam e começaram a voar no espaço interno. Assim que o tabelião abriu a tampa, junto com a fedentina de mênstruo apodrecido, uma nuvem de mariposas cor de sangue pisado revoluteou em torno dos atônicos e intoxicados convivais. Parecia não ter fim o enxame que saia do enorme recipiente aberto. Após tomar a sala inteira, algumas encontraram uma fresta por uma telha estiolada e por ali fugiram; outras não conseguiram passar pela fresta, pois o inacreditável nisso tudo era que elas, as mariposas, iam inchando de tamanho à medida que revoavam pela sala. Como se insufladas por um vento sobrenatural, rapidamente ganhavam a forma de pequenas nuvens de água e sangue, saindo pelas janelas a expulsar os curiosos assombrados com tais mariposas em forma de nuvem, já do tamanho de uma gaivota ao passarem pelas janelas. Tudo por conta do sangue mágico e sintonizado com os elementos do clima, sou forçado a crer! Em poucos instantes, um gigantesco enxame de nuvens voadoras, monstruosas mariposas sudoríferas e encharcadas, escureceu o céu de Itambé e desabou como um dilúvio memorial chovendo três dias e três noites consecutivas, sepultando, sob a enxurrada que alagou os vales do Verruga e Rio Pardo, as lembranças da infeliz vidente, cujos sangramentos encantados, na mente dos poucos e antigos habitantes que por lá permanecem, é um episódio mais tênue que uma sombra noturna, mais sutil que um vapor nos campos, mais vago que uma lágrima na chuva!


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3 comentários :

Anônimo disse...

Nunca ri tanto numa situação de pandemia como a que estamos vivendo. É que nasci justamente em 1954 os meus pais nunca falavam a respeito dessa mulher nem uma vez sequer. Meu pai, um barbeiro ali da Rua Nova ouvia muitos "causos" durante o seu ofício, principalmente aos finais de semana em que o povo da roça vinha vender seus mantimentos. Minha mãe era costureira, muito bem relacionada na profissão. São coisas que somente este brilhante escritor costuma esmiuçar. Como a história de Itambé é rica, a não ser pelo fim bárbaro da figura em questão. Belo relato. Espero que mais leitores possam de deleitar. Um abraço, meu amigo.

Blog do Cassi disse...

Obrigado pela leitura e pelos compartilhamentos! Se quiser repetir seu comentário no Facebook segue o link! A história é fictícia, mas a protagonista realmente existiu e teve um final bárbaro, assassinada por um cliente a mando de muitos!

https://www.facebook.com/CassianoRibeiroSantos/posts/1450266318494905

Blog do Cassi disse...

Hoje conversei com um senhor de 92 anos, Seu Siloé, morador de um distrito que, acidentalmente, leva meu nome: CASSILÂNDIA, e ele me contou uma pitoresca história muito antiga, passada em Itambé. Em 1941, ele tinha 14 anos de idade e presenciou a chegada de um destacamento de polícia nesta cidade, vinda de Salvador para garantir que o médico Dr. Jorge Heine - filho ou neto de alemães - não sabemos precisar, pudesse atender a população local. Ele estava sofrendo ameaças e a população estava proibida de consultá-lo, pois os curandeiros e raizeiros da cidade e zona rural não queriam perder a clientela. Um aparentado do médico Jorge Heine, de nome Belisário Ferraz, fora à Salvador e reportara o fato ao intendente Juracy Magalhães, que lépido e presto enviou o destacamento. Liderando essa tropa, veio um sargento, de nome Salviano, que, para bem cumprir seu propósito de coibir o exercício ilegal da medicina e voltar logo pra a esbórnia da capital, resolveu tomar a iniciativa de perseguir os curandeiros, ao invés de montar guarda e ficar esperando um quase impossível flagrante de ameaça ou coação ao médico; até porque os métodos da feitiçaria são invisíveis e insidiosos, basta o olhar de um bruxo para que sua espinhela caia, sua pleura constipe e seu saco encolha... Salviano partiu para o ataque. Ele e seus esbirros se imiscuíam entre os feirantes procurando por remédios caseiros, xaropadas e ervas brabas. Tanto se queixavam de dores lancinantes e exibiam sua cédulas amarelas de contos de réis que logo eram levados até um curandeiro em alguma casa mais afastada da periferia. Uma vez ali dentro, tão logo o curandeiro se apresentava e começava a consulta, eles puxavam um providencial porrete e surravam o pobre feiticeiro até deixar este moído que nem todo o seu estoque de garrafada e mandingas poderia aliviar. Terminada a pancadaria, arrastavam o coitado, mais morto do que vivo, e o trancafiava nas celas insalubres da cadeia municipal. Bastara-lhe três ou quatro corretivos destes para Salviano sentir que o problema estava resolvido e o médico Jorge Heine pode, enfim, abrir seu consultório e atender o povo de itambé, finamente liberto das superstições e da feitiçaria. Evidente que esse episódio não exterminou completamente os ervateiros e curandeiros do lugar. Nos comentários deste post publicarei alguns links sobre episódios literários neles inspirados. Também tem feitiços meus textos: já aconteceu de uma leitora, certa feita, de madrugada, vir andando, sonâmbula, até aqui no meu chalé, para se curar de uma dor nos quartos. Saiu daqui com os quartos mais doloridos ainda, voilá!