Antônio Caidor esteve ausente da cidade por três dias. Era um homem tão simplório que ninguém notaria a sua ausência não fosse ele o gerente do único cinema da cidade, o cine Fox, cujas grades cerradas neste período aumentou ainda mais a melancolia noturna da praça Pequeno Ferraz onde o cinema se localizava. Ele havia decidido consultar um médico na Capital pois temia que a notícia do seu mal chegasse até a seus conterrâneos causando-lhe um grande constrangimento. Para se justificar, trouxe da Capital dois grandes lançamentos de Hollywood e evitou comentar o diagnóstico da sua doença cujo único sintoma era o de andar com as mãos sempre no bolso da calça, calças, aliás, bastante folgadas quando a moda de então ditava roupas mais apertadas na cintura e na barra. Dois meses depois, com o recrudescer do seu mal, Antônio Caidor decidiu não mais sair de casa. Fechou o cinema causando grande comoção aos moradores que passaram então a questionar o que estaria acontecendo com o taciturno solteirão escondido numa casa de esquina e tomada por um matagal que de um terreno baldio prolongava-se até a sua porta lateral. No silêncio das frias madrugadas, seus gemidos entrecortados puderam ser ouvidos pelos vizinhos do quarteirão; alguém telefonou para um irmão de Antônio, um modesto comerciante de grãos em outra cidade, e dias depois toda a família do doente sentou praça na pequena casa, decidida a isolar a vítima da alheia curiosidade. Na Câmara de Vereadores, sob o adejar solene de mariposas em torno do lustre de cristal, o tenente Robson, presidente da casa, após sua habitual citação de um verso dos “Upanishades”, abordou o misterioso mal do seu fiel eleitor e insinuou a possibilidade de uma epidemia a pôr em risco toda a população da cidade e da zona rural. A cidade ainda se recuperava de um surto de meningite que havia inflacionado de cruzes o pequeno cemitério local. A audiência sonolenta reagiu com um murmúrio que se ampliou pelas ruas, praças e lupanares perversos iluminados por ligações clandestinas na rede elétrica municipal. Às três horas da manhã, no prostíbulo de Maria Goiaba, o delegado Osmar Farjala fora arrancado dos braços da cafetina para uma reunião urgente com o prefeito, o juiz e o padre. Os primeiros raios do Sol encontraram a rua de Antônio isolada por cavaletes e os vizinhos retirados até à vinda do médico que viajara, para vacinar seu rebanho de gado, a uma distante propriedade acessível, em boa parte do percurso, somente a pé ou à cavalo. O irmão, a tia e a cunhada de Antônio Caidor tratavam de acalmar o pânico suscitado afirmando não se tratar de nada infeccioso mas relutando em explicar o que se passava pois haviam jurado ao paciente não revelar a natureza do mal que tanto o envergonhava. Trancado em seu quarto, Antônio Caidor observava os curiosos por uma fresta na janela. Deste ângulo podia ver o alvoroço dos meninos ao descobrirem na sua lata de lixo a coleção de fotogramas que ele levara anos colecionando, sempre a recortar e colar os rolos de filme enquanto outros eram projetados. Os meninos apontavam os fotogramas para o sol, fechavam um olho e se deliciavam com o desfile de estrelas nuas: Jane Fonda em “Barbarela”, Charlotte Rampling no filme “Zardoz”, Úrsula Andrews, Rachel Welch, Cláudia Cardinali em “Sol Vermelho”... um cortejo de seios e nádegas que a cidade nunca houvera visto graças à tesoura do zeloso guardião dos bons costumes e da moralidade. U’a multidão na esquina olhava os fotogramas e teciam picantes comentários. Entre uma e outra fisgada de dor, Antônio tremia ao pensar que as fotos pudessem, com propriedade, serem associadas ao distúrbio de sua saúde, mas a presença da sua tia, uma evangélica fervorosa, acabou se tornando a mais crível e comentada causa para o despojo da sua apimentada coleção de imagens. No final da tarde o médico finalmente apareceu. Acompanhado pelo delegado e dois policiais, Dr. Carneiro fora logo se desculpando pelo atraso e pediu compreensão à família pelo transtorno que a ausência de sua opinião balizada era, no fim das contas, a única responsável. Fingiu não ouvir a cunhada dizer que o doente não queria ser examinado e fora logo em seguida entrando no quarto. Antônio Caidor estava deitado, embrulhado até o pescoço por um grosso cobertor apesar do sol estival fulgurando nas frestas do telhado. Esticou o braço até uma gaveta, apanhou um envelope com os exames feitos na capital e o entregou ao médico cuja estatura imponente à contraluz da janela daria-lhe a configuração de um anjo não fosse seu branco avental manchado de estrume e cheirando à urina de cavalo. Dr. Carneiro nunca havia visto um caso semelhante e não se lembrava a que doença específica se referia o lacônico diagnóstico do médico da Capital embora o nome não lhe soasse estranho. Tinha quase certeza dele constar no “Vade Mecum” que sempre carregava na pasta e lamentou tê-lo esquecido na fazenda. Andou pelo quarto com passos meticulosos e soletrava o nome com ares solenes de profunda reflexão: PRI-A-PIS-MO, PRI-A-PIS-MO...
_ Posso ver onde está doendo?- Perguntou-lhe incisivo.
Antônio Caidor implorou-lhe segredo e somente
quando teve certeza de que o médico nada contaria, retirou o cobertor e exibiu
a sua genitália insolente, um pênis entumecido e grotesco apontado para o teto
feito um negro obelisco. Antônio respondeu à anamnese e comentou o seu temor de
o mal se alastrar por todo o corpo pois a área adjacente a sua genitália estava
excessivamente rígida. Para endossar o seu temor, Antônio dava petelecos em
várias partes da púbis e as batidas ressoavam como se alguém em baixo da cama
martelasse o estrado. Dr. Carneiro estava perplexo. Com a ponta do termômetro
ele batia na genitália do paciente como se estivesse tamborilando sobre uma
mesa de pau-d’arco. Recomendou repouso absoluto, pastilhas de cânforas e banhos
frios. Iria pesquisar na literatura médica e prometeu voltar em breve. Ao sair,
tranquilizou o delegado e a família. Não havia risco de epidemia. Os vizinhos
poderiam retornar a suas casas. Para explicar a doença de Antônio Caidor,
pensou em um neologismo que desse uma vaga idéia do problema sem, contudo,
quebrar a promessa de sigilo que fizera ao seu paciente infeliz:
_ Jumentismo, Sr. Prefeito, jumentismo crônico
e progressivo. Um caso raríssimo nos anais!- sussurrou ao telefone.
Isso fora o bastante para que a função
fabuladora dos ociosos habitantes de Pedra Azul se ocupasse do caso. A cidade
inteira comentava que Antônio Caidor estava se transformando em um Asno. Na
missa dominical, o padre falava em exorcismo e Manezin Batata, que entregava
leite de porta em porta no lombo de um jumento velho e sofrido, sonhava em
comprar o gerente do cinema que, aliás, já lhe devia dois meses de leite, tendo
a sua nova família aumentado o consumo diário em dois litros e meio.
_ Já imaginou?! – comentava ele com a velha
vendedora de roletes na praça – Um jegue preto! Tiro a raça e fico rico!
As crianças tinham pesadelos com Antônio
retirando o chapéu e exibindo, como o rei Midas, um par de longas e peludas
orelhas de asno. As virgens sonhavam com outros atributos e tinham vertigens e
calafrios. Nancy, professora de legendário sonambulismo, por duas vezes fora
recolhida a rondar a casa do pobre coitado ardendo de febre e desejos. Um
sábado á noite, retornando embriagados de uma festa, um grupo de rapazes se
aproximou da janela onde Antônio dormia e começaram a imitar um asno em seu
típico zurro de excitação. Ele estava a sonhar. Caminhava dentro da igreja
vazada pelos raios violáceos do vitral. O Átrio estava vazio e os santos
laterais pareciam de uma magnitude colossal. Antônio aproximava-se do altar e
orava cabisbaixo em beatífica paz quando os rapazes começaram a zurrar sob o
sereno enluarado. Antônio ergueu os olhos para a cruz do altar. No lugar do
cristo ele viu um imenso asno empinado e suspenso no ar por um par de Níveas
asas. Entre as pernas do jumento, a longa e inflectida haste do sexo balançava
como uma angélica espada. O jumento parecia lhe sorrir com dentes de um branco
sublime e, no alto da nave, podia-se ler uma inscrição em letras douradas: “
IN CULUS PRINCIPIT!” Antônio acordou em pânico e persignou-se. Parecia-lhe
ressoar dentro do seu quarto um zurro endemoninhado. Quando se deu conta do que
estava acontecendo, encolheu-se todo sob o cobertor e jurou não mais sair do
quarto, não mais receber um médico incapaz de manter a palavra empenhada.
Apesar das pastilhas, dos xaropes que sua
piedosa tia preparava e dos remédios prescritos pelo Dr. Carneiro, a sua
enfermidade sequer estagnava-se; ao contrário, ganhava dia-a-dia proporções surreais.
Boa parte de suas coxas magras e a popa da sua barriga pronunciada estava tesa
como uma gamela e, quando percutida, soava como um galho de cedro sob a lâmina
de um machado. Não mais saía da cama. Seu irmão o lavava com úmidas toalhas e a
tia recolhia pelas manhãs o urinol de esmalte que dormia ao seu lado, cheio de
uma fétida e gordurosa espuma esbranquiçada. Seu espírito também endurecia no
mesmo ritmo. Imagens eróticas, cada dia mais intensas, pervertidas e luxuosas
tiranizavam a sua mente. Bastava-lhe fechar os olhos para ver seres bizarros,
metade homem, metade besta – sátiros e sereias, quimeras e esfinges- copulando
em frenesi pelos cantos do quarto e sua cunhada, com uma longa e peluda calda,
comandando o bacanal feito a babilônica prostituta escarlate. Primeiro o
pastor, depois o padre, duas tentativas de exorcismo foram encenadas sem nenhum
sucesso aparente. Seria preciso esparzir água benta ou óleos sagrados sobre o
órgão escrofuloso e isso Antônio não permitia, prendendo o cobertor com os pés
e as mãos e um mastro no meio que dava a sua cama uma aparência de barraca.
Domingo, durante um jogo de dados no clube social, o irmão de Antônio pôs o
delegado a par da situação atual. Com o cinema fechado, Osmar Farjala estava
privado da sua gratuita diversão e das duas horas diárias de tranqüilidade que
o cinema proporcionava. Cofiou os longos bigodes, verteu um copo de cerveja e
sentenciou:
_ Alguém precisa lhe bater uma punheta!
_ É só o que ele faz! Ouço todas as noites
gemer as molas do seu caixão, mas parece que ele não consegue chegar ao
final...!
_ Isso é trabalho para uma profissional. Deixe
comigo!
Dois dias depois deste encontro,
no final da tarde, o delegado apareceu na casa do enfermo acompanhado por uma
distinta senhora em luvas brancas e um negro véu caído de um florido chapéu.
Sentada na extremidade do estofado em estudada elegância, ela ouvia o delegado
conversar enquanto na cozinha fumegava um aromático café.
_ Esta é Mlle. Fifi Charlacan, uma
psicanalista francesa. Ela veio da Capital só para ver o pobre Antônio. Seria
uma indelicadeza não recebe-la! – Osmar Farjala alisava a cartucheira enquanto
falava.
_ Me
gusta mucho hablar con ese muchacho! – A estrangeira falava em falsete. A
cunhada de Antônio a levou até o quarto. Pediu-lhe que esperasse um pouco na
porta até ser anunciada. O delegado passou o braço no ombro do irmão e tentou
tranquilizá-lo:
_ Fique tranqüilo! Ela irá lhe fazer uma boa
lacanagem!
Na penumbra do quarto, os olhos de Antônio
dilatavam-se como se estivessem em uma sessão de cinema. A sua frente, uma
“lolobrígida” em carne e osso descalçava as luvas e avançava sobre a cama,
simulando os movimentos de um gato. Passava a língua sobre os lábios e
sussurrava:
_ Meu Chocolate! Minha jabuticaba!
Duas horas depois, a francesa saiu do quarto.
Todos estavam apreensivos. A tia entrou e encontrou o sobrinho no mesmo estado
de antes. Uma expressão de lascívia nunca vista antes fremia no rosto de
Antônio como uma máscara de Bacchus. Fifi Charlacan havia fracassado mas não iria
dar-se por vencida. Tomou o braço do delegado, dirigiu-se à porta da frente e
externou um bestial comentário aos familiares:
_ Quero ser uma cachorra se ele não for um
veado! Ponha um macho lá dentro e verão como ele logo, logo, relaxa!
Sua voz natural, seu vocabulário torpe e o véu machucado a denunciaram.
A idosa tia pôs as mãos no rosto e exclamou a desmaiar:
_ Essa aí é Maria Goiaba! A piranha do
delegado!
O ilustre casal acelerou o passo, entrou no
Galaxie prata e desapareceu sob uma nuvem de poeira e guinchos de pneu deixando
a família do enfermo atabalhoada e boquiaberta. Olhos e ouvidos indiscretos
pareciam povoar as humildes paredes daquela casa, pois, no dia seguinte, Paulo
Bacana e Tony Nolasco, os dois tipos mais efeminados do sudoeste da Bahia, com
suas maletas de jóias e cosméticos importados, visitaram a residência
praticando preços irresistíveis e dispostos a qualquer sacrifício em nome da
bondade. Alguns dias se passaram e o caso de Antônio se agravou ainda mais; do
maxilar para baixo ele estava mais rígido que um jatobá centenário. Não falava
nem comia, mônadas e gônadas em letargia petrificada. Um novo gerente fora
nomeado, o cinema voltou a funcionar e a aberração de Antônio ia,
aparentemente, perdendo notoriedade; aparentemente apenas, pois algo escabroso
estava acontecendo nas noites hereges e assombradas da minha pequena cidade. A
cunhada de Antônio, depois de muito resistir, começou a aceitar propinas de
piedosas senhoras ansiosas por uma furtiva espiada no estafermo miserável. Com
Antônio dormindo, ela introduzia sorrateira uma visita no quarto; erguia
vagarosamente o cobertor de flanela e, com uma lanterna, iluminava a epifania
priápica, o totem da ancestralidade animal capaz de causar espécie e em reino
transmutada como se uma estaca de jacarandá se erguesse naquele corpo franzino
a marcar a fronteira da bestialidade e do irracional. Em uma destas furtivas
noites, Helena, esposa do gerente do Banco do Brasil, tirou as volumosas jóias
que adornavam seu corpo roliço: braceletes, pingentes, colares, brincos e
anéis. Pôs nas mãos da anfitriã quase meio quilo de ouro e pediu para ficar
meia hora a sós com o ebúrneo minotauro. A partir desse dia, começaram as
longas filas noturnas de mulheres veladas no matagal que ameaçava tragar os fundos
da casa como se a natureza reivindicasse o sátiro ali reencarnado. Com um
providencial estilingue, a cunhada de Antônio mantinha apagados certos postes
de iluminação, esquematizava os horários e dispersava a fila em moitas e
árvores estratégicas, evitando sempre o mútuo reconhecimento de suas visitas e
o subseqüente constrangimento. Em noites de lua cheia era possível vê-la
conduzindo pelas mãos uma furtiva e mascarada dama pelas portas do fundo, em
seu pescoço brilhando a chave de um cofre já repleto de ouro e prata, seus
capciosos honorários. A orgia poderia se prolongar indefinidamente já que tais
visitas ao catatônico enfermo, além de excita-lo a um paroxismo de ereção e
bloqueio, o mantinha também passivo e mudo sob a sanha das feiticeiras; entretanto,
uma das eleitas fraquejou e quebrou a lei do silêncio que regia o torpe
comércio. Em uma madrugada de abril, a cidade inteira acordou com os gritos
histéricos de Dona Simone, uma portuguesa viúva e milionária, dona de um
incontável rebanho de reses holandesas:
_ AI, QUE ME ACABO! VALEI-ME SANTO IGNÁCIO!
ESTÃO A RASGAR-ME AS COSTURAS D’ALMA!
O irmão de Antônio invadiu o quarto e
encontrou a viúva nua saracoteando e refastelando-se sobre o que sobrou do seu
irmão, a flácida carne branca ainda a vibrar com um bilionésimo e incontrolável
orgasmo.
O escândalo tomou conta da cidade gerando
histórias incontáveis para deleite dos fabuladores, dos moralistas e das velhas
fofoqueiras. A envergonhada tia de Antônio morreu fulminada por um enfarto; sua cunhada e seu irmão fugiram
com as jóias e o dinheiro amealhados e me contrataram, como idôneo advogado que
sou, para cuidar do pobre inválido. Toda quinzena uma modesta quantia era
depositada na minha conta bancária, telefonavam ansiosos por notícias e, alegando
muitas dificuldades, adiavam sempre a prometida ambulância que levaria Antônio
a uma clínica na capital do estado onde, suponho, eles viviam assustados.
Durante o dia uma enfermeira aposentada cuidava do enfermo cuja vida somente os
olhos asininos a denunciava; à noite, temendo visitas com novos propósitos –
muitos maridos traídos temiam pela recuperação de Antônio e suas revelações
comprometedoras – eu dormia no corredor da casa com um velho rifle winchester
ao meu lado. Confesso aqui a minha espúria ambição. Queria ser o compilador de
suas histórias, já simulava ter a lista das pervertidas adúlteras e esperava
com isso pressionar as partes processuais de muitos casos arquivados. Nesse
período, tornei-me íntimo de Bethânia, uma professora do estado que tentava
legalizar os dois filhos que tivera com um ilustre deputado. Perguntou-me sobre
Antônio. Respondi que nenhuma mudança fora observada. Ela lamentou de um modo
tão sincero que pensei, malicioso, ser ela uma das noturnas seviciadoras
fatalmente apaixonada. Parecendo ler meus pensamentos ela se explicou:
_ Esse pobre senhor fora meu colega no
colégio. Dizia ser apaixonado por mim e era muito divertido. Tínhamos apenas
onze anos de idade. Ele escrevia em todas as folhas do meu caderno. Chegou a
tatuar com um canivete as iniciais do meu nome no seu braço. Comecei a achar o
seu comportamento esquisito e me afastei dele. Eu não sabia o que era o amor,
senão por ouvi dizer...dois anos depois, na 3° série, é que fui me apaixonar... _ Você ainda tem o caderno onde ele lhe
escrevia? – Perguntei sem mesmo saber para que o queria. Ela se ausentou um
pouco e voltou com um caderno escolar de folhas esmaecidas. Pediu-me cuidado
pois havia velhas fotografias coladas na contracapa onde hoje os adolescentes
colam adesivos coloridos. Quase o recusei mas a curiosidade sobre a vida do meu
protegido e a esperança de sua recuperação findaram por justificar um anseio aparentemente tão frívolo. No final
da tarde, protocolando no fórum uma ação de paternidade contra o deputado Agenor
Geraldo, folheei o caderno com desenhos infantis, contas de somar e exercícios
elementares de caligrafia. No verso das folhas, em garatujas quase ilegíveis, o
menino Antônio escrevera inúmeras mensagens de amor, frases inconclusas
copiadas de revistas e novelas de rádio, versos do cancioneiro e propostas tão
inocentes que a mais íntima era do tipo: “quando crescer quero me casar
contigo!... Tudo salpicado por erros crassos de ortografia e clichês do mais
piegas romantismo. À noite, deitado no colchonete e com o dedo no gatilho –
agora eu temia também os capangas de Agenor Geraldo – eu recordava-me de ter
tido também um grande amor na aurora da minha vida e como deve ser universal
esse capítulo em todas as biografias. Jamais amei alguém como amei Maísa e o
ardor que esse amor causava-me era uma sensação que jamais irá se repetir.
Sentar ao seu lado no banco da escola e roçar a penugem do seu braço deixava-me
enlevado e febril pelo resto do dia. Dançava com ela as quadrilhas e minhas
pernas tremiam. Bastava-lhe uma palavra ou um sorriso para que o vago e
abstrato sentido da vida retalhasse minhas vísceras como um destino na ponta de
um estilo. Era um amor dolorosamente físico embora não houvesse sequer um traço
de erotismo. Acostumado à malícia de babás e primas pervertidas, eu ardia de
desejo por Maísa em um fogo espiritual de cumplicidade e comunhão mística sem
imagens de coito, luxúria e sevícias embora já soubesse bem o que era isso – as
empregadas domésticas que o digam. Sem conseguir conciliar o sono, liguei o
interruptor e apanhei o caderno em minha pasta. Acendi um cigarro e contemplei
as fotografias estioladas, em tamanho 3x4, de crianças em uniforme escolar.
Fora-me fácil identificar Antônio. Era o único negro da turma, uma criança
triste com olhos expressando a típica e sublime melancolia da sua raça. A foto
de Bethânia pareceu-me profundamente familiar. O cigarro queimou-se sem que eu
identificasse a origem da inquietante familiaridade. Abri a pasta com o
processo de paternidade e conferi as fotos dos filhos de Bethânia. Por um
momento recusei-me a crer que fossem duas pessoas distintas na foto colegial de
Bethânia e na foto atual de sua filha Camila tão profunda a semelhança entre as
duas. Uma súbita ideia resplandeceu no cotejar das duas imagens. Temi a insônia
e o delírio das idéias paridas de madrugada. Esforcei-me em recalca-la e dormi
sobressaltado. Como a anos não me acontecia, sonhei com Maísa, a amada da minha
infância quase mítica tão longos os anos que nos separam. O cenário nada possuía
de relevante, exceto a promessa de sempiterna felicidade que dela emanava para
todo e qualquer lugar que estivesse, e isso tudo relevava – ainda hoje, se
passar pelas ruínas do nosso velho colégio sei que irei chorar. Girando comigo
com os pés unidos, o corpo inclinado e as mãos dadas, ela sorria dizendo-me
algo que me custou recortar no fluxo de uma indistinta e onírica algazarra.
Parecia-me dizer: Cuidado, Carlos, cuidado! Pela
manhã, como uma ameba incapaz de distinguir o dentro e o fora, eu
preparava o café com o pensamento a borbulhar no sonho e na insólita
ideia que o prenunciara. À revelia do meu entendimento dormente, minha
razão e minha sensibilidade se acordaram: a ideia emprestando ao sonho
um sentido possível e recebendo deste a vivacidade. Almocei com Bethânia
e prestei-lhe contas do seu processo. Estendi a minha visita até ver
Camila, sua filha de emblemáticos onze anos, sair do quarto queixando
estar atrasada para a primeira aula. Ofereci carona em minha simpática
Variant verde-malva. Guiei devagar fascinado em observa-la. Não me
interessava tanto a criança ao meu lado e sim o efeito que sua visão
causaria no enfermo sob minha custódia. Teria ele vivido seu primeiro
amor da forma como eu vivi o meu? Seria possível que a visão de Camila
provocasse em Antônio uma paramnésia capaz de transporta-lo ao passado,
de faze-lo reviver um modo de desejar ingênito e assexuado? Seria esta
sensação suficiente para vazar o erotismo em que seu corpo e sua alma
estavam subjugados? Obviamente que promover o encontro de uma criança
com um tarado seria, expresso nesses termos, um requinte de perversidade
mas eu estava seguro dele não ser um maníaco de fato, mesmo tendo o
espírito assaltado por lascivos fantasmas. Quanto á obviedade, cuidaria
em ser extremamente prudente e dissimulado. Sem nunca ter sido diretor
de teatro, tive o pressentimento de que o mais importante em uma peça é o
cenário e cuidei de o reconstituir como o faria ao defender um
criminoso no tribunal. A sorte parecia estar ao meu lado. O vizinho de
Antônio estava alugando a casa e convenci Bethânia a ser a sua nova
vizinha alegando, com propriedade, que a minha presença no local
inibiria, talvez, uma possível represália do deputado e glosei, com o
argumento soberano, de ser o aluguel quase a metade do que ela então
pagava. O quarto dos fundos onde o irmão de Antônio se hospedara possuía
uma janela para o quintal do vizinho e ali eu esperava que Camila
pudesse ser observada em toda a sua graciosa naturalidade. Com ajuda da
velha enfermeira, transportamos Antônio para o seu novo quarto, sempre
envolto no seu indefectível cobertor de flanela quadriculada. Ele se
mostrou indiferente às novas paredes e era visível a irreversibilidade
da sua patologia deplorável. A minha trama possuía um segundo fio.
Mesmo que uma lembrança esteja profundamente soterrada por décadas de
esquecimento acumulado, acredito que as canções que a embalaram, que a
trilha sonora destas cenas perdidas podem faze-la brotar com o mesmo
viço e frescor, ainda que por breves segundos como, ao rocio do orvalho,
se abre uma flor. Quantas vezes uma velha balada nos faz reviver as
feéricas sensações de um passado que julgávamos sem mais nenhuma cor!
Para evocar o passado de Antônio desloquei-me até a cidade vizinha, à
sede da Radio Clube Guarani, onde passei uma longa tarde pesquisando as
canções mais tocadas no longínquo ano em que Antônio estudara no mesmo
banco de escola com Bethânia, sua colegial amada e minha cliente atual.
Gravei várias fitas-cassete com músicas de Trini Lopez, Lupicínio
Rodrigues, Pat Boone, Chico Alves, gravei Ansiedad na voz de Nat King
Cole, Nada Além de Mário Lago, Al di la e Dinah Washington cantando
Manhattan. Pedi a Bethânia que mantivesse seus filhos em casa o máximo
que pudesse e Camila, um pouco entediada, passava as longas manhãs de
sol no quintal, lendo fotonovelas, cuidando do jardim e escrevendo o que
parecia ser um secreto diário. Seu tagarelar incessante funcionou como
uma isca notável e logo Antônio Caidor começou a sentar na cama e
vasculhar durante longos minutos o quintal da sua nova vizinha como um
menino a observar passarinhos. Em menos de uma semana, já passava quase a
manhã inteira sentado em uma cadeira de balanço ao lado da janela.
Fingia ler um jornal e a todo instante olhava por entre as talas da
persiana o interior da casa de Bethânia; Pela outra janela, do meu novo
quarto, um fluxo de músicas antigas invadia o espaço criando uma ilha de
nostalgia e invocando um passado denso de melancólicos
fantasmas.Quisera muito saber o efeito desta dupla aparição no espírito
de Antônio: A amada verdadeira, quiçá não corrompida pelo tempo ou sua
repetição ainda mais original...Para qual delas o seu coração se
orientaria? Para a esperança de um amor possível e finalmente carnal com
o seu primeiro amor ou para o reino ideal da saudade, para o amor
imaculado e espiritual que habita necessariamente o intangível passado
do qual Camila era a sagrada imagem? Quanto de verdade haveria na lenda
de serem os negros uma raça melancólica cuja melomania os inclina à
saudade e ao fascínio pelo passado? As cartas estavam dadas mas o
desenrolar do jogo me era velado. O tipo de emoção que eu esperava
engendrar no coração de Antônio ao contemplar o clone do seu primeiro
amor não era, decididamente, um sentimento infantil. Durante séculos, na
Europa Medieval, homens viveram intensamente uma forma de amar batizada
como “amor dos trovadores”. Impedidos de possuírem o corpo de suas
amadas, geralmente senhoras casadas e virtuosas ou nobres prometidas a
outras casas, tais amantes empunhavam seus alaúdes, suas bivas e
cantavam a felicidade celestial que um simples sorriso, um furtivo olhar
de suas amadas lhes causava. Um amor imanente, sem nenhuma falta, sem
nenhuma necessidade além de cantar a beatitude desta modalidade de amar.
Eu estava certo de que ao amor imanente corresponderia uma distinta
disposição do corpo onde a excitação dos órgãos sexuais cedesse lugar a
uma vibração, a uma febre, a uma volúpia consumada e dispersa por todas
as partes do corpo e da alma mas o desfecho trágico deste caso abortou o
meu aprendizado. No final de uma ensolarada manhã, ao voltar à casa
para um rápido almoço, parei em frente ao quarto de Antônio e troquei
com ele algumas palavras. Ele estava bem animado e, ao mesmo tempo,
profundamente sentimental. O velho cobertor em volta do corpo indicava
volumosamente a renitência do seu mal mas seu rosto parecia desanuviado
como se um raio de esperança nele brilhasse. Fui ao meu quarto e liguei o
gravador com as velhas baladas no volume máximo. Acenei para Camila
que, já vestida com a farda do colégio, estendia no varal uma úmida
toalha. Elogiei suas roseiras e pedi que avisasse a sua mãe sobre as
boas notícias prometidas. O juiz iria julgar em breve o caso da
paternidade. Tudo indicava que o deputado Agenor Geraldo seria obrigado a
assumir uma série de novas responsabilidades. Quando voltei ao corredor
vi Antônio com a mão na janela recebendo uma rosa que a doce Camila
havia colhido e lhe ofertado. Foi quando ouvi a velha enfermeira gritar
na cozinha e passos velozes na sala. Voltei-me a tempo de ver, as minhas
costas, Luís Borjala, o capanga do deputado com uma escopeta descomunal
para mim apontada. Mal tive tempo de me jogar ao chão. Ouvi um
estampido seco e senti a nuvem de chumbo passar sobre minha cabeça como
um vento quente e sibilante. Antônio gritou e levou a mão ao peito.
Corri ao meu quarto em busca do meu winchester mas já se ouvia os pneus
de um carro em fuga disparada. Corri de volta ao quarto de Antônio e o
encontrei morto com uma rosa ensanguentada no peito. Não sei se o tiro
me era destinado como prêmio no processo de paternidade ou se o deputado
quisera silenciar o homem que tanto prazer proporcionara a sua esposa,
pois, meses antes desse triste episódio, a cunhada de Antônio enviara-me
a cópia de um vultoso cheque emitido por Raquel, a esposa de Agenor
Geraldo. Pedia-me que efetuasse uma cobrança judicial e era bastante
suspeito o objeto dessa operação comercial. O cobertor ao lado de
Antônio Caidor não cobria mais nada. Seu pênis estava pequeno e
encolhido como um amendoim. Teria sido o tiro no peito que pusera fim a
sua monstruosa ereção contínua que já durava um ano? Pelo que aprendi no
breve curso de medicina legal, a morte produz um enrijecimento súbito e
o cadáver preserva até à decomposição a postura que teve ao morrer,
mãos crispadas, olhos abertos... Quem faz autópsia ou prepara um funeral
sabe a dificuldade que há em manusear um cadáver, quebrar os dedos,
costurar as pálpebras...Estou quase certo que minutos antes de morrer,
ao receber uma rosa das mãos de Camila, Antônio se lembrou do primeiro
amor e senti-lo outra vez, em sua sensação original, devolveu-lhe a
saúde se é verdade que o erotismo é a doença específica do homem
moderno. Se a sua cura fora definitiva ou se duraria apenas o tempo de
um sentimento redivivo nunca saberemos. Quanto a mim, não iria ficar ali
para saber se o tiro me era destinado ou se fora um serviço de um
exímio e impecável profissional. Providenciei o enterro, passei o caso
já quase resolvido de Bethânia para outro advogado e me mudei para a
capital do estado onde hoje trabalho e procuro nunca me envolver com a
vida de meus clientes, fato que me proporciona a fama que trago de ser
um rábula desalmado.
0 comentários :
Postar um comentário