sexta-feira, 8 de abril de 2022

DIVAGAÇÕES SOBRE A ORIGEM DO ESTADO!



 Os grandes arqueólogos e antropólogos do século passado, Maurice Godelier, Gordon Childe, Evans Pritchard, entre outros acreditavam que o Estado havia surgido como uma conseqüência natural da Revolução agrícola durante o neolítico: Com a agricultura surgiu o estoque de grãos, e, na gestão destes estoques, surge o Estado! Essa visão ingênua e evolucionista fora criticada pelo filósofo francês Gilles Deleuze através de um sutil e perspicaz argumento: para surgir a agricultura era preciso primeiro o broto híbrido, a “muda” posteriormente transplantada, e essa semente híbrida implicava na existência de estoques, logo, do estado rudimentar. Desse pressuposto, afirmava ele ser o Estado original e intrínseco à natureza humana, bastando cavar um pouco mais para se encontrar novas e mais antigas formações estatizantes a se perder na origem da humanidade. Era a tese do “Urstat” ou Estado original, sempre presente, mesmo quando conjurado pelos povos nômades e transumanos que produziam rígidas regras para impedir a emergência do Estado virtual entre as tribos, como bem demonstram Pierre Clastres, Jacques Lizot e outros estudiosos dos povos nômades sul-americanos. Faltava apenas explicar em qual momento exatamente, essas práticas de conjuração primitivas do Estado falharam, permitindo o surgimento dos estoques e de Estados de fato. Um passarinho me contou como isso ocorreu sistematicamente entre os primitivos. Quando a velhice se aproximava, os guerreiros e coletoras não podiam mais acompanhar os membros mais jovens da tribo e eram obrigados a se retirarem para um lugar afastado, para ali morrerem. (Vemos um belo exemplo dessa prática corriqueira, nos povos primitivos, no fabuloso filme “A Balada de Narayama”, quando uma idosa camponesa é abandonada pelos membros da sua família, com uma razoável porção de arroz para nutrir seus últimos dias de espera pela morte iminente.) Na maioria das vezes, eram mais de um membro, às vezes grupos numerosos de nômades cansados que ficavam para trás à espera da morte inevitável. Entre eles, uma porção significativa de grãos e a ausência das regras de conjuração (por exemplo, o famoso Potlach, ritual de distribuição obrigatória dos bens e avô pré-histórico do socialismo sem Estado sonhado pelos barbichas revolucionários). Enquanto a morte não vinha, alguns idosos menos idosos cuidavam de administrar esses grãos e sementes coletadas. Morriam, mais cedo ou mais tarde, às vezes comidos por bestas selvagens, quase sempre de frio e doenças e, quando seus filhos e netos ali voltavam na primavera para enterrar seus pais, encontravam o broto germinado, a semente híbrida entre os monturos acumulados. Considerando a crença de esse broto ter alguma relação mágico-religiosa com os mortos no local abandonados, uma crença na fertilidade da terra pelo espírito dos ancestrais adubada, é crível supor que eles não fossem plantar muito longe suas sementes. Assim sendo, o Estado e as cidades sedentárias surgem na história ao lado de cemitérios, de lugares sagrados e mortuários. Isso explica, cetabis paribus, a mórbida atmosfera das nossas hodiernas cidades, notadamente os centros comerciais onde os grãos e gêneros alimentícios são conservados e acumulados, e suas mortuárias arquiteturas de armazéns em forma de esquifes colossais. Alegro-me por, nesse exato instante em que escrevo isso, não estar em nenhuma dessas lúgubres cidades mortuárias e sim, vagando solitário pelas trilhas da Serra do Calibrado, perto de Contendas do Sincorá. Aqui me sinto um nômade ainda cheio de vida e não penso em nada a ver com morte ou com a burocracia maldita do Estado. Vejo apenas, imaginariamente, no vapor que se arrasta preguiçoso pelos vales, as personagens de um auto que ando lendo do Ariano Suassuna e pensando se será com o pseudônimo de Cassiano Suçuarana que esse texto será assinado!

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