segunda-feira, 12 de outubro de 2015

FLIPPER, UM GOLFINHO FORA D'ÁGUA!


Me lembro de ter sido uma virgem, um escudo, um peixe!
₢ Empédocles de Agrigento.

Para Lis Braga que,quando me vê, exclama: Tô dendágua!

Dias inesquecíveis vivi no Porto da Barra quando eu era um rato de praia e não saía de lá! Em suas águas plácidas e transparentes vi a morte por três vezes, além de ver a morte de outros, mas me limitarei a falar das minhas. A primeira foi quando, afoito e sem ar, após um longo percurso nadando bem longe da praia, resolvi segurar na borda de um pequeno barco que ali costumava ancorar. São muitos os barcos e canoas que ficam por ali servindo como repouso para nadadores, mas também como local para se fumar maconha e muitos banhistas, meninos principalmente, costumam urinar e defecar nos barcos, para horror de seus proprietários. O proprietário deste que agora narro, para prevenir-se do assédio dos nadadores atrevidos, eletrificou toda a cilha do barco e o choque elétrico que levei foi qualquer coisa descomunal. Cansado e nocauteado pelo choque elétrico, quase desmaiei, mas consegui flutuar com muito sangue frio e, com um esforço extra, cheguei a um outro barco mais humilde, mais cagado, e me joguei dentro dele como uma bosta seca! Mas não ficou nisso, não senhor! Na época eu era um cabra muito vingativo e, uma vez em casa, decidi me vingar. Esperei a noite cair. Coloquei uma peixeira na cintura e voltei para um banho noturno. Era verão e muitos banhistas persistiam na praia muito depois do sol se por. Nadei até perto do barco e mergulhei em busca da âncora. Cortei a corda após duas tentativas e deixei o barco lá, à deriva. Fiquei sentado na balaustrada esperando o resultado. Meia hora depois a maré cuidou de jogar o barco sobre as pedras do pequeno promonitório do Forte de Santo Antônio que margeia o Porto. O estrago foi imenso. Alguém do local cuidou de avisar o proprietário que apareceu logo em seguida. Passei por ele e disse:

_ Isso é pra voce pensar duas vezes antes de eletrificar o barco! - enquanto limpava as unhas com a ponta da peixeira!

A segunda vez que quase morri no mar, fora mais poética e prosaica. Eu nadava pela manhã, antes de ir para o trabalho e, de uma hora pra outra, fui surpreendido pelo espetáculo de um cardume de anchovas perseguido por algum peixe graúdo, o que fazia-lhes, à semelhança dos peixes voadores, saltarem sobre a água em voos rasantes ofertando ao sol nascente o espelho prateado de seus dorsos a esgrimar com os reflexos d'água uma peleja de fulgurações coruscantes, um festim de mônadas criadas! Atabalhoado pelo show em cujo centro eu me encontrava, limitei-me a contemplar extasiado o espetáculo. Por fim, após o cardume passar todo pela minha cabeça se afastar, um pescador à certa distância me disse que eu escapara da morte por um milagre. Tais peixes possuem uma barbatana cartilaginosa e extremamente afiada. Quando voam assustadas, abrem-nas enrijecidas como navalhas. É triscar e cortar uma veia fora! Estive dentro de uma chuva de punhais! Mas é do meu terceiro encontro com a morte nas águas do Porto da Barra que quero me ater. Eu gostava muito de mergulhar e me aventurava a grandes profundidades em um local afastado onde há dois galeões naufragados e "point" de mergulhadores amadores e profissionais. Descia só com o ar dos pulmões, muitas vezes com uma pedra no colo para afundar mais rápido. Olhava rapidamente o espetáculo submarino e subia, desta vez vagarosamente, para o nitrogênio no sangue não borbulhar causando-me uma embolia fatal. Numa dessas aventuras, mergulhando bem rente ao leito do oceano, fui assaltado por um fenômeno inusitado e singular, "presque magique", como os franceses costumam falar: No fundo do mar, no local exato onde a minha sombra deslizava (era começo da tarde e o sol de verão atingia profundidades insuspeitas) surgiu do nada a minha imagem invertida, feito um reflexo fantasmagórico. Vi a mim mesmo com as bochechas cheias de ar, os olhos vermelhos e injetados feito um cachalote, o corpo branco e a pele engrujida pela água fria, as pernas e os pés-de-pato. Fiquei estático com tal livusia aguenta, com tal miração cintilante onde eu parecia um pirata amaldiçoado e bidimensional a flanar sobre a areia à procura de algum baú enterrado entre espadas e ossos. Por conta dessa visagem, esqueci do ar e findei todo o oxigênio nos pulmões nesta narcísica contemplação. Tive então que tomar pé, desfazendo a imagem minha e subindo alucinado para respirar. Não deu outra. Tive embolia logo após gritar por socorro. Acordei no leito de um hospital bem em frente à praia, o antigo Hospital Espanhol. Guardei segredo por muitos anos sobre esse episódio. Minha mente racional e científica repugnava tudo o que não conseguimos explicar, exceto se apelássemos para superstições e crendices, e estas, convenhamos, nunca faltaram na Bahia. A mais bisonha e bestial falava de uma deusa do mar que enfeitiçava os mergulhadores e os levavam para seu leito nupcial, e cujas variantes vocês podem bem imaginar. Findei por esquecer esse fenômeno. Um dia, frequentando a Biblioteca do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro antigo do Rio de Janeiro, devorando uma enciclopédia sobre ciência Medieval escrita pelo genial Pierre Duheim, deparei-me com um tratado de ótica que iluminou o fundo trevoso de minhas recordações baianas: Quando, em condições apropriadas de incidência luminosa e ângulo adequado, uma superfície escura é superposta à um meio translúcido e cristalino, forma-se um efeito especular (de espelho) e a luz se reflete na extensão exata da sombra ( é justamente essa a explicação para um espelho qualquer, um vidro translúcido em que um lado é pintado por uma tinta fosca, sem reflexão nenhuma.) No mergulho que tive e quase morri, minha sombra, a água cristalina e a luz do sol, em uma conjunção extremamente peculiar, criaram a ilusão de um espelho fazendo-me ver meu duplo nadando no leito do oceano. Depois de ler isso, tentei várias vezes mergulhar e repetir essa experiência de ótica, e não é que consegui? Só não conto como tal ocorrera, pois, repetir o fenômeno seria repetir-me aqui dentro desse mar de letras em que escrevo e eu poderia ficar preso em um loop submarino, perdendo horas e horas relendo-me e me contemplando até perder completamente o ar!

₢ Cassidy Brook ( Cassiano Ribeiro)
Share this post

0 comentários :