Corria o ano de mil novecentos e setenta e três.
Era verão, o que
acrescentava certos requintes na atmosfera mágica de Itambé-Ba, tais
como, a tênue dilatação das tardes causada pelo equinócio (que eu
imaginava como um grande búfalo a peitar a terra com os chifres), as
revoadas de andorinhas se despedindo no poente sanguinário e os circos
mambembes que insuflavam nossas noites de magia e fuzarcas. O verão
trazia também seus perigos como o incêndio no único posto de gasolina no
centro da cidade; da origem do fogo, nem a posterior perícia soube
precisar. Quando o vigia acordou de um pesadelo – onde o seu corpo era
assado em um espeto, nas labaredas do inferno -, as chamas já lambiam
vorazes o papel de parede do escritório e os calendários onde modelos
nuas se distorciam no calor em satânicos simulacros. Saiu ele gritando
pela praça, pedindo socorro e acordando a todos. Sua voz estridulosa
acordava os galos que, sob os reflexos de uma falsa alvorada criada
pelas labaredas, anteciparam a cantoria nos telhados e quintais. Quando o
último morador acordou, os primeiros já formavam filas com baldes
d’água apanhados no chafariz da praça. Não funcionou. O fogo se
alastrava quando alguém aventou que as chamas poderiam atingir os
tanques e explodir o quarteirão feito a bomba de Nagasaki. O pânico se
espalhou mais rápido do que as chamas. Os moradores na vizinhança do
posto apanhavam suas crianças e idosos em camisas de dormir e buscavam
abrigo em casa mais distantes. A casa dos meus pais ficava no alto da
colina e ao lado da igreja. Para lá se dirigiu u’a multidão de
sonâmbulos arrastando rubros travesseiros e lençóis, pois tudo era rubro
à luz do sinistro. Muitos ocuparam a igreja, os mais íntimos vieram se
abrigar em nossa casa. Com seis anos de idade, eu já dormia sozinho em
um quarto todo meu, porém, com medo de que eu viesse a cair, minha mãe
fazia-me dormir em uma cama de casal que meu avô havia construído com o
lenho de um centenário jatobá. Ali eu me encontrava nessa noite dormindo
como um gordo rei anão quando o povo chegou. Quatro a cinco crianças
foram acomodadas em minha cama na esperança de que dormissem (o susto
era tão grande que mesmo no subnigrum do quarto, brilhava o branco dos
seus olhos na expectativa da grande e iminente explosão que iria
destruir o mundo). Conspirava para isso o rumor das mulheres salmodiando
pelos corredores, o murmúrio ansioso dos homens pendurados no muro do
quintal, desesperados por suas casas, seus pertences, um papagaio
esquecido, um gato, um cão......
Certo era que eu dormia e que -
de um modo impreciso, através das sombras espectrais, de premonições
inconscientes ou percepção subliminar – pressentia o que estava
acontecendo. Havia mais de um ano que não urinava na cama, mas não
deveria ser difícil reativar um hábito ainda fresco como este. Sabemos
também que os animais usam a urina para marcar o território e, muito
provavelmente, eu sentia-me invadido em minha cama transformada em
berçário. Quando o primeiro tanque explodiu e a casa tremeu, eu mandei
ver. Dormia nu devido ao intenso calor e o pinto de uma criança quando
urina gira feito um regador de jardim. Penso que sonhei sendo um heróico
bombeiro em mortal combate contra chamas traiçoeiras. Na manhã seguinte
encontrei, na mesa do café, meus hóspedes noturnos. Estavam de banho
tomado e me olhavam furtivos como se eu tivesse uma daquelas armas
secretas da tv, um flip paralisante, um raio laser, um retrofoguete!
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