segunda-feira, 12 de outubro de 2015

ATIVAR, RETROFOGUETES!


Corria o ano de mil novecentos e setenta e três.
Era verão, o que acrescentava certos requintes na atmosfera mágica de Itambé-Ba, tais como, a tênue dilatação das tardes causada pelo equinócio (que eu imaginava como um grande búfalo a peitar a terra com os chifres), as revoadas de andorinhas se despedindo no poente sanguinário e os circos mambembes que insuflavam nossas noites de magia e fuzarcas. O verão trazia também seus perigos como o incêndio no único posto de gasolina no centro da cidade; da origem do fogo, nem a posterior perícia soube precisar. Quando o vigia acordou de um pesadelo – onde o seu corpo era assado em um espeto, nas labaredas do inferno -, as chamas já lambiam vorazes o papel de parede do escritório e os calendários onde modelos nuas se distorciam no calor em satânicos simulacros. Saiu ele gritando pela praça, pedindo socorro e acordando a todos. Sua voz estridulosa acordava os galos que, sob os reflexos de uma falsa alvorada criada pelas labaredas, anteciparam a cantoria nos telhados e quintais. Quando o último morador acordou, os primeiros já formavam filas com baldes d’água apanhados no chafariz da praça. Não funcionou. O fogo se alastrava quando alguém aventou que as chamas poderiam atingir os tanques e explodir o quarteirão feito a bomba de Nagasaki. O pânico se espalhou mais rápido do que as chamas. Os moradores na vizinhança do posto apanhavam suas crianças e idosos em camisas de dormir e buscavam abrigo em casa mais distantes. A casa dos meus pais ficava no alto da colina e ao lado da igreja. Para lá se dirigiu u’a multidão de sonâmbulos arrastando rubros travesseiros e lençóis, pois tudo era rubro à luz do sinistro. Muitos ocuparam a igreja, os mais íntimos vieram se abrigar em nossa casa. Com seis anos de idade, eu já dormia sozinho em um quarto todo meu, porém, com medo de que eu viesse a cair, minha mãe fazia-me dormir em uma cama de casal que meu avô havia construído com o lenho de um centenário jatobá. Ali eu me encontrava nessa noite dormindo como um gordo rei anão quando o povo chegou. Quatro a cinco crianças foram acomodadas em minha cama na esperança de que dormissem (o susto era tão grande que mesmo no subnigrum do quarto, brilhava o branco dos seus olhos na expectativa da grande e iminente explosão que iria destruir o mundo). Conspirava para isso o rumor das mulheres salmodiando pelos corredores, o murmúrio ansioso dos homens pendurados no muro do quintal, desesperados por suas casas, seus pertences, um papagaio esquecido, um gato, um cão......

Certo era que eu dormia e que - de um modo impreciso, através das sombras espectrais, de premonições inconscientes ou percepção subliminar – pressentia o que estava acontecendo. Havia mais de um ano que não urinava na cama, mas não deveria ser difícil reativar um hábito ainda fresco como este. Sabemos também que os animais usam a urina para marcar o território e, muito provavelmente, eu sentia-me invadido em minha cama transformada em berçário. Quando o primeiro tanque explodiu e a casa tremeu, eu mandei ver. Dormia nu devido ao intenso calor e o pinto de uma criança quando urina gira feito um regador de jardim. Penso que sonhei sendo um heróico bombeiro em mortal combate contra chamas traiçoeiras. Na manhã seguinte encontrei, na mesa do café, meus hóspedes noturnos. Estavam de banho tomado e me olhavam furtivos como se eu tivesse uma daquelas armas secretas da tv, um flip paralisante, um raio laser, um retrofoguete!
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