sábado, 10 de outubro de 2015

A ICONOFILIA DE CORCODILO, O VAIDOSO BOI DE BACÓ!




Bacó era um artesão santeiro, esculpindo santos devotos em tronco de jaqueiras, umburanas ou qualquer madeira que caísse em sua mão. Todo mês, enchia um carro de boi com as imagens esculpidas e tocava pras bandas de Bom Jesus da Lapa, no Oeste da Bahia, para vendê-las aos romeiros.
Puxava a carroça o seu único animal, o brioso e malhado boi Corcodilo. No percurso mensal era frequente cruzar com romeiros mais pobres - e mais devotos - que iam cumprir promessas a pé, arrastando pela poeira suas grossas alpercatas de pneu de caminhão. Era só os romeiros ver os santos esculpidos de Bacó na boleia, perfilados e arrumados em uma estranha hierarquia que só o escultor saberia explicar, para serem tomados de uma sacra reverência, alguns se ajoelhando, outros louvando, a maioria erguendo os braços em direção às imagens e suplicado bênçãos e perdões. Muitos até diminuíam o ritmo dos passos para seguir o vagaroso carro de boi, indo ao lado das estátuas em estado de culto e adoração. Mesmo não possuindo dinheiro para comprá-los - seus clientes eram todos romeiros ricos que chegavam na Lapa em carros fretados e animais vistosos -, Bacó gostava da companhia dos fiéis e proseava com eles durante o trajeto, debulhando aos ingênuos romeiros a legenda de cada santo, revelando também a sua veia artística naquelas fantasiosas hagiografias! Sua vida prosperava, mas um estranho incidente vinha lhe incomodando ultimamente, feito, no couro do pé, um espinho de quixabento. Seu boi Corcodilo se recusava a fazer qualquer outro tipo de serviço, não carregava a madeira que ele cortava com dificuldade nas capoeiras da Serra do Sincorá onde vivia, não carregava água, nem mesmo suas duas filhas conseguiam ir a qualquer lugar sobre a carroça atrelada, por mais que o futucasse com a ponta da vara! Corcodilo ajoelhava, sangrava o couro, mas não saía do lugar; entretanto, bastava Bacó carregar o carro com as imagens de Santo Antônio, São José, São Atanásio, Santa Ana e os Apóstolos, e Corcodilo se empolgava todo, balançando o rabo e babando o dobro da baba normal! Fazia o percurso no freio puxado para não desandar nas íngremes ladeiras, disjuntando o eixo no tremelique das costelas de vaca. Bacó, muito supersticioso por conta do ofício, julgou ser coisa de Deus, que o animal era reservado para o transporte das imagens sagradas, mas sua mulher, muito sagaz e escolada, logo desconfiou que o animal estava tomado por uma inacreditável ilusão e bovina vaidade. Toda aquela louvação dos romeiros, persignações e súplicas de adoração que os romeiros encenavam ao lado da carroça, aos santos esculpidos dedicadas, Corcodilo tomava-as como sendo afagos e reverências ao animal que os transportava, ele mesmo, e se achava um animal especial, um ídolo das multidões errantes pela estrada, associando de alguma maneira a sua glória com as imagens e assim se recusando a qualquer outra atividade onde ele não era aplaudido e ovacionado. Findou por se tornar um estorvo, pois se recusando trazer madeira do mato, Bacó ficava sem ter a matéria prima da sua profissão. Pensava em vender Corcodilo na feira do povoado e lá chegando com o animal, parou para ouvir a pregação de um novo padre, de nome italiano, Rosselino, que estava construindo uma nova igreja no alto da colina e, na porta da velha igreja, clamava o povo a ajudá-lo em tão elevada missão! Para convencer os fiéis, Rosselino empenhava sua palavra e sua honra na promessa de que Deus iria devolver em dobro toda contribuição que fosse feita para concluir a nova igreja. Em breve começou a chover donativos no cesto forrado de linho e púrpura com os símbolos eucarísticos bordados. Quem não tinha dinheiro doava galinhas, porcos, sacas de milho e feijão, alianças e até uma radiola da prestigiosa marca americana RCA Victor fora arrastada para os fundos da velha igreja para um futuro leilão, uma quermesse prometida para o próximo domingo. Bacó se empolgou com a fé do povo do vilarejo e, em um estalo, resolveu doar seu boi Corcodilo, na esperança de ganhar uma parelha! Um seminarista que ajudava o Rosselino na santa rapinagem, conduziu o boi que partiu choroso ao ver que mudava de dono tão inopinadamente. Bacó voltou pra casa todo esperançoso, mas também receoso do que sua esposa iria dizer, com as duas paixões, a esperança e o medo, remoendo sua alma já tão acostumada a angústias e receios de toda natureza. O padre Rosselino, ao ver tão belo animal, pediu que fosse levado até a paróquia e amarrado com outro que lá havia, para se acostumarem um ao outro, pois haveriam os dois bois de puxar uma canga e muito ajudar na obra. Quando Corcodilo viu a noite cair e o outro boi babando com o pescoço preso eternamente ao seu, não suportou aquilo e resolveu voltar pra casa, quebrando a amarra, forçando o portão e arrastando consigo o outro animal indolente.                                                                                      .  
_ Milagre de Deus todo poderoso! - Gritou Bacó no outro dia de manhã cedo quando viu de sua rede na varanda (deve ter dormido ali de castigo por ter doado o patrimônio da família) a parelha de boi entrar pelo quintal, assustando os cachorros e acordando as meninas. A festa foi animada, mas, tomado de um novo fervor confirmado pelo milagre da duplicação, Bacó colocou a carroça vazia de transportar os santos nos dois animais e voltou com eles para o povoado. Não explicou nada a ninguém, mais ia resoluto como o pai Abraão desafiado por Nosso Senhor Jeovah! Iria fazer uma nova doação e ver se Deus lhe dobrava a esmola novamente. Era domingo e toda a cristandade do local persistia na vagarosa missa. Bacó não quis perder tempo. Foi até a porta da igreja e amarrou a parelha ao lado da sacristia e retornou para casa confiante no novo milagre e que desta vez sua cética esposa fosse mais compreensiva e mais desperta pras coisas da religião. Não precisava explicar mais nada pois o olho de Deus varria todo o infinito. Grata surpresa também sentiu o Padre Rosselino ao ver a sua desaparecida parelha de boi apeada ali na porta e com uma providencial carroça emborrachada capaz de carregar o mundo em cima tamanho o vigor dos dois animais atrelados. Era a última missa na velha igreja e Rosselino, crédulo por ofício e vocação, considerou um discreto milagre essa doação capaz de transportar com segurança os santos da velha igreja para o alto da colina onde se desenhava já os fundamentos da nova matriz. Ele queria oficiar doravante os cultos e missas no novo local para comover os fiéis e mais cedo terminar a obra. Assim sendo, pediu aos dois diáconos que colocassem todos as imagens santas na carroça e fossem almoçar, para transportar a carga assim que o sol esfriasse. Não imaginava ele que o boi Corcodilo tivesse uma predileção toda especial por santos e imagens. Quando viu a nova carga, toda paramentada, ornada com adereços dourados e prateados penduricalhos, Corcodilo outra vez arrancou o cordame com a força do seu pescoço, partiu com seu parceiro sem nome e com sua carga sagrada pelas veredinhas da Serra do Sincorá até a casa do seu velho proprietário Bacó! A noite caía quando este viu surgir, rangendo como só sua carroça era capaz de ranger, a parelha de bois arrastando consigo, como se um invisível querubim a guiasse - os raios fulgurantes do sol poente coruscando no lombo dos bois e da carga os inflamavam feito a carruagem de fogo que arrebatou no deserto o Profeta Elias -, a carroça toda locupletada de santas imagens. Bacó caiu de joelho extasiado. Nunca havia visto tanta formosura nos santos paramentados com tanto ouro e prata! Nossa Senhora de Fátima! São Sebastião, São João carneirinho, São Jorge e São Patrício, São Francisco de Assis... Só faltavam falar!
_ Estou rico! Estou rico! - Gritou o pobre artesão, e tratou imediatamente de vestir sua roupa de viagem, disposto a partir aquela madrugada mesmo para o santuário da Lapa e vender a milagrosa oferta com a qual o Senhor lhe recompensara. Nem preciso descrever a euforia do boi Corcodilo ao pegar a estrada de manhã cedinho, carregando uma ilustre comitiva que iria lhe arrancar aplausos, louvores e saudações majestosas capazes de lhe arrepiar inteiro, dos chifres até o saco!

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