quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O GÊNIO GENIOSO E O PERNETA GENIAL






Gérson Eleutério não possuía as asas largas da imaginação, origem de todo o bem e todo o mal dessa vida; era cotó, manco e dedicado aos hábitos de uma rotina provinciana. Nunca antes nada de sobrenatural havia lhe acontecido, sequer em sonhos e delírios etílicos, pois que bebia, até o dia do ocorrido que passo a relatar. Encarregado de limpar um velho casarão onde viveu uma família de japoneses, e zelar por ela até que lhe fosse dado um novo proprietário, ocorreu de Gérson encontrar nos entulhos do quintal uma estranha lamparina, conservada e estampada de belas imagens do Japão antigo na porcelana vitrificada. Sentiu-se gratificado pelo árduo trabalho e não pensou em devolver a quem quer que lha reclamasse. À noite, no seu leito, observando a relíquia e sentindo uma estranhíssima atração por uma áurea de luz diáfana que dela emanava no escuro, abriu a tampa da lamparina e tomou um susto medonho que quase lhe fez saltar os bofes pelas ventas triunfais: de dentro da lâmpada emergiu uma voluta espiralada de fumaça a compor, em um átimo, a imagem de um monge em posição de lótus, a meditar no ar, a poucos centímetros do piso do seu quarto. Seu olho sonolento e gordo fitava Gérson Eleutério a tremer, tentando repor o ar que lhe havia escapado! Gérson deu de capengar pelo assoalho. Acendeu a luz, procurou uma arma, abraçou uma imagem de um santo que sua mãe guardava no velho guarda-roupa, até que começou a se acalmar. Era um homem de idade, daqueles que tendem a considerar ridículo tudo que foge à banalidade contumaz de toda uma vida sem sobressaltos, e começou a encarar o monge de fumaça. Respirou fundo e pigarreou, antes de falar:



_ Assunta! Quanto mais eu rezo... Quem é você, livusia? Assombração! Coisa boa não houvera de ser! 
 
O monge se esforçava em manter uma expressão amigável e cordata. Parecia rir com os olhos. Mas nada respondeu. Gérson Eleutério sentou na beira da cama. Não fossem seus dedos torcendo a borda do lençol, dir-se-ia calmo e controlado. Foi só o tempo de pressentir que não corria risco imediato de vida para ele se lembrar de algo muito recorrente no imaginário popular: aquilo em sua frente era um gênio! Um gênio da lâmpada, um desses seres encantados que vivem dentro de uma garrafa servindo aos seus proprietários a obra de seus dons sobrenaturais. Os olhos de Gérson brilharam. O coração, que pulava no peito de tanto susto, continuou a retumbar no mesmo frenesi, só o motivo sendo trocado. Medindo as palavras, Gérson Eleutério perguntou-lhe:
 
_Quer dizer então que o Srº realiza desejos...?
 
O monge de fumaça pareceu concordar com a expressão simpática do rosto e do olhar. Foi o bastante para Gérson quase gritar, pulando sobre sua perna maior:
 
-EU QUERO SER BRANCO!
 
(Detalhe à guisa de explicação. Apesar de na sua época já existir um panteão de negros sublimes, vencendo na vida e marcando época - sabe-se a custa de quanto sofrimento e dor -, a verdade era que Gérson Eleutério era um negro complexado, com décadas de racismo introjetado, o que explicaria o grito miserável do seu inconsciente colonizado). Para seu estupor, o gênio, com voz abissal de milênios adormecidos, lhe respondeu com ensaiada reverência:
 
_ Prefiro não realizar esse seu desejo!

Gérson precisaria nessa hora ter duas bocas se quisesse reagir à altura do inusitado fato: uma para abrir de espanto ao ouvir o gênio de fumaça falar, outra para se indignar com o que lhe fora dito! A sensação de estar vivendo um pesadelo sem conseguir acordar o arrebatou momentaneamente.
 
_Como assim, Prefere não realizar esse meu desejo?                                                                                                  
O silêncio espectral que se seguiu lhe irritou profundamente, como uma ofensa redobrada pela aparição absurda, insolente e irracional! Em um gesto irrefletido, Gérson Eleutério apanhou a tampa da lamparina e a fechou fazendo com que o gênio se encapelasse em uma rotunda espiral e voltasse de espiroqueta para o interior da porcelana em fração de segundos. Pasmo, Gerson abriu uma garrafa de conhaque escondida atrás de um espelho e verteu de um único gole o conteúdo licoroso e dourado. Em seguida se jogou sobre a cama, não sem fazer um arremedo de transida oração, ferrar no sono e roncar feito uma porca celestial. 


Quando, pela manhã, veio a se lembrar do ocorrido, já estava se limpando, no vaso, e correu com o pijama nos joelhos para confirmar se havia mesmo aquela lamparina em sua posse, ou se tudo não passara de alucinação daquele conhaque de alcatrão que andara tomando como remédio para a dor nas ilhargas adquirida por décadas a claudicar. Era mesmo verdade, pensou, ao ver a lamparina bem atrás do vaso com flores de plástico que sua falecida esposa tanto amava; logo também poderia haver mesmo um cramunjão ali dentro! Abriu a tampa da lamparina e outra vez a fumaça cintilante se espalhou pelo quarto com um silvo quase imperceptível e queixoso. D’emblé – como dizem os franceses – o monge gordo e fumarento se esfalfou ao rés do piso. 


Dessa vez, aparentemente sóbrio, Gérson Eleutério encarou o oriental, girou ao seu redor, cheirou a fumaça residual e, hesitante, como quem cutuca uma onça com vara curta, tocou em sua macilenta e esponjosa carne simulacrar. 


Sabia, por pressentimentos talvez, que ele não era de falar nada. Deixou o gênio lá aparentemente meditando e foi para cozinha preparar o seu café. (Quase se podia ouvir sua perna mais comprida se arrastando no encerado). Ficou em estado de alerta enquanto fritava os ovos e passava o café no coador com gosto de barata. Porque razão o gênio não atendera ao seu desejo? 


De fato era mesmo um desejo bem ridículo, pensou, e quase se envergonhou de tê-lo formulado. Talvez esse gênio seja caprichoso, de opinião, vai saber como esse povo daquelas bandas é rigoroso e cheio de noves fora! Fechou então os olhos enormes e bovinos e começou a buscar um desejo bem inteligente e sensato, ao qual muito provavelmente esse espírito estivesse acostumado a realizar. Deixou o café escorrendo no coador e voltou para o quarto guiado por uma ideia altaneira. Encontrou-o meditando, e se espantou com a normalidade tão rapidamente adquirida no trato daquela aberração. Foi logo lhe pedindo, quase ordenando:
 
_ QUERO FICAR RICO! PODRE DE RICO! NADANDO EM DINHEIRO! 
                                         
O gênio lhe fitou como se atravessasse eras e eóns antes do mundo ser criado e lhe respondeu peremptoriamente: 
                                                  
_prefiro não realizar esse seu desejo!
_ PREFERE! PREFERE! PREFERE! 


Gérson Eleutério se exasperou e ameaçava chutar o ser encantado que parecia ter engordado um pouco desde a sua primeira aparição triunfal 


– SE PREFERE SIGNIFICA QUE É CAPAZ DE FAZER, MAS NÃO QUER!               
 
E bufava, e remoia e respirava fundo... Findou por fechar outra vez a tampa e voltar para tomar seu desejum. Comeu os ovos frios, tomou o café gelado e saiu em direção ao quintal onde uma pilha de lenhas o aguardava. Lascar lenha muito lhe acalmava!
 
Ninguém precisa ser psicólogo para concluir que ele não pensou em outra coisa a manhã inteira! Aquele gênio lá dentro era caprichoso! Tinha opiniões e vontades pessoais. Não iria realizar qualquer desejo, não. Mas nem ele próprio sabia, o pobre Gerson, qual seria mesmo os seus desejos verdadeiros, na suposição de que fosse estes os que o gênio optaria por realizar. 


Não creio que Gerson houvesse chegado à esse nível de reflexão. Para ele, muito provavelmente, era apenas uma questão de capricho, de acertar e assim foi que, durante aquele dia, tentou várias vezes dobrar a munganga, a pirraça do gênio, com todo tipo de desejos que sua imaginação bitolada fosse capaz:


 “EU QUERO SER JOHN TRAVOLTA”!; “EU QUERO COMER TODAS AS MULHERES GOSTOSAS DA CIDADE DE POTIRAGUÁ”!; “EU QUERO SER O PREFEITO MAIS VOTADO DO INTERIOR DA BAHIA”!; “EU QUERO MORRER COM 120 ANOS DE IDADE ASSASSINADO POR UM MARIDO CIUMENTO COBERTO DE RAZÃO!”; “QUERO SER INVISÍVEL!”; QUERO VOAR!”; “QUERO ENTRAR PRA MAÇONARIA                                                              
E, feito o morfético corvo de Edgar Alan Poe, ouvia sempre a mesma voz espectral e oracular:
 
_Prefiro não realizar esse seu desejo! 
 
Aquele que bem poderia ter sido o dia mais decepcionante na vida do humilde Gérson findou por lhe acender sua mente entorpecida e lhe fazer cismar como nunca antes cismara em toda a sua existência. Sentia - com sua garrafa de conhaque de alcatrão ao seu lado, sobre a mesa da cozinha vendo a chama bruxuleante arder as toras de lenha que havia lascado - como se tivesse sido a sua alma impenetrável ou a cabeça daquele gênio safado o verdadeiro alvo de suas marrentas machadadas em busca de uma chave a lhe abrir as portas da felicidade! Talvez o Gênio fosse um anjo disfarçado, enviado pelo bom Deus, pela interseção, quem sabe, de sua querida esposa morta junto ao Pai eterno, para lhe ensinar a desejar coisas boas e bonitas, coisas, como costumava dizer o padre, belas de se ver, boas de imitar! 


Dormiu pensando nisso e no outro dia retomou a artilharia, dessa vez com um magistral repertório de desejos estudados e forjados pela sua medíocre noção de sumaríssimo bem, embora, no íntimo, acalentasse o propósito de, uma vez conseguido domar o caprichoso avatar, inserir aos poucos seus velhos e recalcitrantes desejos obsessivos. Com a cara da mais profunda desfaçatez que só um Goya ou um Rubens poderia retratar, ele se aproximava melífluo e pedia: 


“EU QUERO SER PADRE!”; “EU QUERO DESCOBRIR A CURA DA GONORRÉIA E DA BLENORRAGIA!”; “EU QUERO QUE SEJA IMPOSSÍVEL ALGUÉM MISTURAR ÁGUA NO LEITE”!; “EU QUERO LIBERTAR TODOS OS PASSARINHOS DAS GAIOLAS E TODOS OS ANIMAIS DOS CATIVEIROS”!; EU QUERO ACABAR COM TODAS AS GUERRAS DO PLANETA”!; 
 
E, como os leitores já podem pressentir, para cada desejo formulado, ouvia sempre a mesma e inflectida voz tonitroar:
 
_ Prefiro não realizar esse seu desejo!

No terceiro dia, lhe passou pela cabeça que talvez aquele maldito cavaleiro da esperança fosse mesmo, como já suspeitava, um ser maligno que só viria a realizar desejos infames e pervertidos. Pulou cedo da cama, e, em jejum, momento em que somos os piores seres do planeta, sapecou seu genioso gênio de pedidos sórdidos e insidiosos: 
 
_ “EU QUERO CHEIRAR DOIS LITROS DE MACONHA E ESTUPRAR LADY DI!”; “EU QUERO MIJAR NO TANQUE DO AÇOUGUE E LAVAR NO MIJO TODAS AS CARNES FRESCAS”!; EU QUERO SABER O DIA DA MORTE DE TODOS OS MEUS CONHECIDOS E AVISAR PARA ELES!”; “QUERO QUEIMAR TODAS AS RESISTÊNCIAS DOS CHUVEIROS E SENTAR TODAS AS FREIRAS EM CIMA DE UM FORMIGUEIRO”!                                                                               
E, para terminar seu repertório de perversidades, arrematou:
 
_ QUERO ENRABAR MINHA FILHA CASADA COM UMA HÓSTIA: POR SER UMA HÓSTIA, SACRILÉGIO; POR SER ENRABADA, SODOMIA, POR SER MINHA FILHA, INCESTO E POR SER CASADA, ADULTÉRIO  
         
Mas quá! Tudo que o impassível gênio balbuciava a cada vitupério era: 
 
_ Prefiro não realizar esse seu desejo! 
 
Uma virtude do nosso Gérson, que ele comungava com a maioria das almas simples, era a de saber jogar a toalha! Deu-se por derrotado naquela noite e extremamente humilhado pela assombração marota! De uma maneira intuitiva (e bastante elucidativa na atitude fleumática do seu visitante do além), descobriu que talvez a grande sabedoria da vida fosse nada desejar, fosse atingir um estado aonde tudo ao redor nos viesse a ser indiferente e indigno de nossa inquietação. Intuiu também que aquele gênio não era um perverso, mas que a sua fleumática disposição de nada realizar fosse uma sentença de sabedoria revelando que aquilo que Gérson desejava não tinha valor absolutamente nenhum. 


Tudo por ele desejado não passaria de “vontade de nada”; sendo assim, mais preferível mesmo fosse o “nada de vontade” pelo espírito oriental prometido. Entretanto, teve o discernimento suficiente para saber que jamais poderia chegar a esse estado enquanto aquele torturante agente das possibilidades rondasse o seu quarto. 


Mais importante agora do que descobrir o desejo verdadeiro e essencial seria negar toda e qualquer possibilidade, qualquer desejo que pudesse agitar as águas dormentes da sua alma onde um pachorrento e bucólico céu de interior se refletia sem tempestades nem promessas.. 


Sentindo isso, procurou um jeito de se livrar do sujeito da lamparina. Era inquebrável, deduziu ao martelá-la violentamente com a face oposta do seu vigoroso machado. Em qualquer lugar que o deixasse, sabia que iria ser torturado pela vontade de retornar ao local e tentar mais uma vez. 


Não bebeu essa noite, orou fervorosamente para São Bartolomeu ou outro dessa constelação de santos espalhados pela casa por sua finada esposa e dormiu na esperança de achar um estratagema. Pode ser que um sonho providencial tenha lhe revelado algo ou se apenas concebeu um plano enquanto dormia e parte de nosso cérebro segue funcionando a maquinar soluções. Abriu a tampa da lamparina e, assim que o gênio se auto-formatou, disse-lhe resoluto:


_ QUERO QUE VOCÊ CONTINUE A PERSEVERAR NA EXISTÊNCIA E QUE SIGA EXISTINDO PELA ETERNIDADE A FORA!     
                                         
Seja por displicência improvável em um espírito oriental, seja por fidelidade a princípios inexoráveis e superiores, tão logo repetiu seu slogan nauseabundo PREFIRO NÃO REALIZAR ESSE SEU DESEJO, a fumaça se dissolveu por dentro de si mesma e, feito um chupão de pia, se auto-engolfou como um ovo abscôndito no ninho do incognoscível, se escafedendo tal qual leite derramado no meio da ladeira. 


Desse dia em diante Gérson Eleutério nunca mais desejou nada na vida e seus olhos de boi babão passaram a vibrar com uma centelha celestina de sabedoria pagã. Sem nada mais desejar, terminou seus dias como mendigo, em um beco aos fundos de um suntuoso e bem freqüentado restaurante. 


Dizem os velhos hippies da cidade que ele atingiu o nirvana ou coisa parecida. Dorme todas as noites perto do tonel de lixo onde os cozinheiros, vez por outra, jogam no local um saco com restos de comida. Gerson sabe que é amado pelo gesto piedoso desses irmãos atarefados e sabe que está vivo pela dor lancinante que o pacote de ossos provoca quando bate no seu couro cabeludo cheio de feridas e infestado por piolhos e moscas varejeiras.

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