quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A Morte do Demônio de Laplace.



Meu nome é Etewald Santos Dumond. Engenheiro de Software de uma multinacional francesa e pesquisador no CNRS, Centre Nationale de Recherches Scientifiques, onde consegui imensa notoriedade ao desenvolver os primeiros modelos de processadores quânticos, usando dezenas de partículas subatômicas como elemento de transmissão de informações.

Ao contrário dos circuitos elétricos da computação tradicional que operam em linguagem binária (input, output), tais partículas subatômicas podem apresentar dezenas de estados existenciais, ondas, partículas, spins, bósons, múors, quackers, etc... Capazes de multiplicar por absurdos expoentes a capacidade de informação processada. 

As consequências dessa revolução na vida tecnológica do nosso planeta, todos vocês sentiram, e muito vertiginosamente. Muitos devem saber que eu fui indicado ao Prêmio Nobel de Física e desfrutei de uma tremenda popularidade antes de cair rapidamente no ostracismo por um motivo que também é do conhecimento de todos, ou de muitos. 

Descobri que, entre outras propriedades destas partículas sub-atômicas, algumas delas possuíam a insólita e paradoxal capacidade de se deslocarem no tempo, fato bastante comprovado  nos aceleradores de partículas do CNRS e em outros da América do Norte. 

Fiquei então fascinado com a possibilidade de poder enviar bits de informações, textos, imagens, áudio, filmes talvez, para outras dimensões do tempo, onde houvesse computadores capacitados para receber tais arquivos - evidentemente, no futuro apenas - e para lá eu sonhava enviar as notícias que talvez pouco viesse a interessar aos nossos bisnetos, cientes de tudo que já houvesse ocorrido hoje em  dia. 

Meu objetivo mesmo, e muito fabuloso para ser aceito pela comunidade científica sem ceticismo, era enviar certa mensagem para alguns meses no futuro iminente e, na data definida, ligar as conexões e confirmar o envio e o recebimento por um atalho nos blocos de espaço-tempo, os tijolinhos da nossa realidade, atalho este que passa por uma das outras sete dimensões não-infladas que, junto com as nossas quatro dimensões conhecidas, formam o estofo de onze dimensões do universo, conforme os cálculos da Teoria das Cordas ( Cf. John Green, O Universo Elegante, passim). 

No dia combinado para tal confirmação, fui repentinamente preso por um grupo de agentes e levado para um lugar desconhecido de todos e o resto já é público e notório: os jornais anunciaram que eu havia praticado uma fraude científica, programando aquela mensagem para ficar hospedada nas nuvens da internet profunda - aquela zona indiscernível de navegação sem protocolos de identificação – e ser recebida na data prevista, simulando um atalho imediato entre instantes separados no tempo. 

Virei motivo de chacota e rapidamente esquecido, principalmente por cientistas que jamais aceitariam o tremendo sucesso de minha descoberta, mesmo tendo eu lhes inaugurado um admirável mundo novo. Talvez por isso mesmo. Minha presença era um obstáculo quando todos queriam investigar as possibilidades infinitas da computação quântica, pois eu era o pai das patentes, o grande macaco da horda primitiva que precisava ser assassinado para que a orgia com as fêmeas fosse permitida. 

Acreditei piamente nessa hipótese nos dias que passei trancafiado em uma sala subterrânea em algum lugar do Ártico, até que fui apresentado a outra realidade muito mais excruciante! Fui detido por uma secreta polícia chamada de Vigilantes do Portal e por eles fui informado do que se passava. Minha teoria era não apenas conjectural, ou simplesmente possível, e sim algo factível e que já existia por milênios no futuro! Era possível sim, com os computadores quânticos, enviar dados para séculos e milênios no futuro – com a nossa atual e incipiente potência, que eu mesmo ajudara a inaugurar, séculos apenas – mas anos depois, quando me tornei um dos mais respeitados chefes dessa Polícia Secreta, vim saber de recursos muito mais vertiginosos que tangenciavam os limites da ficção científica. O que não era possível, sob hipótese nenhuma, sob risco de desmoronar toda a realidades das gerações vindouras, era transmitir informações ao passado, isto é, do futuro até o limite do nosso atual presente, o marco zero tecnológico onde era possível, pela primeira vez na história, receber tais bytes quânticos. 

Até onde era possível saber, por séculos e séculos do futuro, essa corporação existe para impedir que algum cientista viesse a transmitir informações capazes de modificar a ordem natural dos acontecimentos e solapar de modo e grau imprevisível os alicerces do tempo onde eles, seres do amanhã, estavam constituídos. 

Não preciso dar exemplos, suponho, para explicar como uma precoce e intempestiva cura de certa doença poderia interferir no romance dos pais de um líder político ou como as notícias sobre acidentes viriam a modificar projetos e investimentos econômicos reconfigurando o mapa e o futuro de um lugar ou nação... O cinema e a literatura abundam com tais exemplos! O que vocês não sabem é que essa tecnologia não é nenhuma ficção, simplesmente foram bloqueadas todas as pesquisas para tais experiências trans-temporais. Tornou-se anátema, tabu, e somente o grupo do qual participei por toda a minha vida pode continuar em contato com as gerações futuras, após longos treinamentos e vigilâncias que incluem chips cerebrais e uso de tornozeleiras eletrônicas. 

Eu aceitei tudo isso, todas as condições em troca das visões sublimes e etéreas do deslumbrante futuro da humanidade que eu, de certa forma, ajudei a construir, mesmo que meu nome fosse dela apagado para sempre. Tivemos acessos a medicamentos e tratamentos extremamente sofisticados capazes de prolongar nossas vidas por um tempo inimaginável! Estamos no ano de 2235 e ainda estou gozando de uma saúde de aço, aliás, de aço já é quase o meu corpo inteiro. É como se eu vivesse do lado de fora do tempo, em uma espécie de divina eternidade, vendo a humanidade se espalhar pelo espaço e adquirir conhecimentos que seriam difícil até mesmo de esboçá-los tamanha a mudança de paradigmas científicos já ocorridos. 

Hoje lidamos com coisas que vocês chamariam de magia, telepatia, metempsicose, teletransporte, propulsão iônica, levitação.... Coisas que, pra serem cognoscíveis, nem sequer poderíamos mais aplicar o nosso arcaico e obsoleto método científico popperiano. Isto é, a maioria do que cito aqui o sei por ter acesso a dados que nos são transmitidos como membros privilegiados da polícia Vigilantes do Portal, mas algumas destas maravilhas eu já desfruto e entendo-as com profunda propriedade. Vez ou outra, algum cientista tenta transmitir algo para o passado fora do fluxo oficial e temos de agir com rapidez na captura do louco aventureiro. 

Em todas as ocasiões que participei, sempre o cientista inconsequente se empolgou com nossa sociedade e nosso convite para dela fazer parte, exceto uma ocasião quando um deles tentou nos enganar e teve que ser eliminado, mas isso fica para outra oportunidade, ou talvez nem venha mais a existir para além de uma mera possibilidade, se o meu propósito for atingido, como logo vocês entenderão. 

Na verdade, de simples guardiões do Portal do Tempo, de simples cães de guarda de uma assombrosa tecnologia, passamos a nos tornar controladores da humanidade, pois, por mais que esta adquira conhecimentos extraordinários, somente nós estaremos sempre na vanguarda, desfrutando de coisas que ainda nem nome possuem, um poder sublime vindo de nós mesmos que, no futuro, decidimos qual e quanto conhecimento enviar ao passado, assim como, nos dias em que escrevo isso, estamos também deliberando o que enviar a nós mesmos, décadas atrás (uma espécie de loop exigindo uma lógica abdutiva que iria me desviar por hora de meus propósitos). O objetivo sempre era o mesmo: controlar a sociedade. Sob o pretexto de vigiar o envio de dados ao passado e com isso nos dissolver em puras possibilidades lógicas, começamos a te um prazer imenso em governar os rumos da sociedade. 

Em um período de tempo menor do que o ocorrido com o cristianismo para conquistar Roma e o mundo inteiro, nós nos tornamos a Irmandade Secreta no controle absoluto das nações. Nossos agentes podiam se materializar no quarto de dormir de qualquer líder político e o eliminar se ele não obedecesse nossas diretrizes (Quase nunca eles imaginavam que nós não tínhamos autorização para agir de tal maneira, a supressão deste ou daquele político sendo capaz de modificar os rumos da história e perturbar a existência futura da nossa Ordem, mas sabíamos blefar e era justamente para manter as coisas nos trilhos ideais que agíamos interferindo nos governos). Muitas vezes fiquei a pensar se não seria desnecessário intervir na política mundial, pois, se as ordens para agir vinham de nós mesmos no futuro, era um sinal de que este futuro de fato se confirmava e que a ordem dos acontecimentos não seria alterada, porém, a outra possibilidade também era imperiosa: o futuro só se confirmou e tal ordem nos fora enviada porque fomos capazes de agir com tremenda perfeição e eficácia na intervenção política determinada. Além do mais, por algumas vezes, tivemos que enviar ordens para nossa corporação no passado para tomar certas atitudes e me recordo da apreensão que ficávamos na expectativa dos resultados e da posterior alteração do nosso presente em função da “suave interferência”. Para explicar melhor, à medida que nossa capacidade de computação ia sendo aprimorada, com ordenadores atingindo a casa de quase um googol, nossa capacidade de prever as consequências de uma intervenção cirúrgica no passado ia aumentando e, com ela, nosso aprimoramento e margem de segurança! 

Lembram-se do demônio de Laplace, a hipótese do astrônomo francês do século 18 de ser capaz de calcular a posição de todas as partículas do universo dado o conhecimento de todas as forças e variáveis existentes? Demônios de Laplace é justamente o nome dos cientistas que ocupam o topo da nossa hierarquia. Cinco mil cientistas formando a elite da sociedade planetária e todos obstinados em criar uma sociedade cada vez mais perfeita, cada vez mais desenvolvida e cada vez mais capacitada a interferir no fluxo do tempo, se auto modificando como se a vida, para além da sua notável plasticidade, houvesse conquistado uma nova vitalidade ao ser capaz de interferir no tempo e se auto modelar, uma espécie de auto-poiese jamais antes concebida!  

Foi então que o grande problema apareceu! Havia um limiar temporal em relação ao qual nada poderíamos saber: a partir do ano 2450, nenhuma informação nos era transmitida. 

Em nossas reuniões, passávamos horas especulando sobre isso e chegamos a ser informados pelo conselho do qual eu mesmo faria parte em um futuro iminente, ano de 2448, de que lá também ninguém sabia do que iria acontecer para causar tal bloqueio. A maioria de nós supunha que uma nova revolução científica havia se instalado tornando inviável a permanência da nossa confraria, ou, o que era mais provável, alguma catástrofe cósmica houvesse destruído para sempre a nossa civilização, ou, na melhor das hipóteses, destruído a tecnologia que permitia as transmissões temporais. Alguns cosmólogos mais abscônditos falavam de uma nova inflação no tecido do cosmos, empurrando nosso planeta para zitrilhões de anos-luz de onde estávamos então, e tornando impossível a sincronicidade quântica utilizada nos nossos ordenadores. Em todo caso, só nos restava esperar e manter a vigilância. 

Foi quando eu tive um sonho premonitório (gostaria de ter tempo para lhes explicar os avanços que tivemos, por outras vias distintas da computação e como uma reação a ela, no campo da assim chamada paranormalidade, e dos fundamentos adquiridos para dar a essa ancestral propriedade do homem, o sonhar, um valor científico poderosíssimo).

A premonição me dizia que a nossa espécie, seguindo uma previsível e inevitável tendência, começou há muito a migrar cada vez mais do carbono para o silício, dos tecidos orgânicos para cyborgs e do pensamento intuitivo para a inteligência artificial que a nova face digital da computação quântica nos proporcionava. 

Resumindo, estávamos inelutavelmente nos transformando em máquinas  e aconteceria em breve uma ruptura na identidade dos novos seres vivos, de tal maneira que o mais altos ideais e aspirações da nossa espécie, a espiritualidade, a vida sentimental e afetiva, o sexo, esse arremedo de outro mistério maior, a morte e a própria finitude passariam a ser coisas obsoletas e enfadonhas, diante das possiblidades maquínicas de uma vida livre das ligações reativas do carbono e solta para finalmente se encarnar nos minérios, nos terras-raras, nos gases nobres e em todos os elementos da tabela periódica! 

Eu mesmo, vivendo acoplado a tantos chips e simulações psicotrônicas de suntuosa sensualidade, posso fazer uma ideia da irresistível tentação; mas havia um porém: eu era e sou um homem religioso e nem a minha alma, nem a alma da minha espécie seriam destruídas por essa miragem de extático suicídio, em sacrifício à um império eletrônico! Eu sei o que fazer e acredito que essa premonição me fora revelada por meu Deus, o Deus criador, amoroso, mas que também é capaz de destruir sua obra, o Deus de Abraão, Moisés e Noé! 

Não demorei muito em fortalecer minhas convicções de que os seres maquínicos do futuro já começavam a plasmar a história como nós havíamos feito por séculos. Uma série de discretas modificações no limiar tecnológico da nossa civilização ao redor do planeta e nos outros do Sistema Solar, pareciam revelar uma perturbação intencional nos níveis de automação e inteligência de nossas maquinas. Robôs, do nada, começam a murmurar e expressar caprichos, Produtos químicos e ligas inconcebíveis eram encontrados à venda em ferros-velhos de beira de estrada, ataques hackers com uma frequência nunca vista antes desviando fluxos gigantescos de capital para onde ninguém sabe...

Cheguei até a acreditar no louco da minha rua que dizia estar a lua cheia de marmotas mecânicas escavando-lhe todo o solo e, temeroso, fiquei ao lado dele por longos minutos vasculhando o solo da lua com um binóculo capaz de ver a marca do sapato de Armstrong graças ao acesso de satélites lunares! Mas não era apenas a emergência precipitada de um novo gradiente tecnológico o que me assustava, mas também a lenta e insinuante modificação do mundo ao meu redor que começava a me incomodar. 

Não quis comentar isso com meus colegas, pois a mentalidade dominante da nossa corporação não permitia conjecturas do tipo das que me assaltavam o sono. Fiz uns exames de rotina nos meus implantes cerebrais e continuei trabalhando normalmente. Mas era visível como certas coisas modificavam sensivelmente. Um dia, era um quadro faltando na parede da minha casa onde eu colocava fotografias de momentos importantes, insinuando que algo vivido por mim havia deixado de existir. Soma-se a isso uma série de recordações sobre eventos de repercussão universal que, tão logo eu citava entre amigos, os ouvia jurar que aquilo nunca havia acontecido, que a Lituânia nunca havia invadido a Polônia, que as minas de Nióbio na Amazônia já haviam se esgotado há muito e que todo o nióbio atual provinha de uma lua de Saturno, ou que eu não estava habilitado a usar o cyclotranspointer espacial com o qual eu amava voar pra fora da atmosfera e ficar lá do alto olhando o planeta girar por horas e horas seguidas ouvindo Tchaikovsky, Beatles ou velhos blues de um pre-histórico marinheiro do Mississípi.

Qualquer outro no meu lugar procuraria um psicotrônicista para checar a sincronicidade azimutal das memórias e dos implantes, mas eu sabia que o motivo era outro. Nossos Ciborgues do futuro já estavam manipulando o universo temporal em função dos seus interesses, adiantando o estágio de evolução e sacrificando a história humana. A questão era: a partir de quando, de que ponto do passado eles poderiam interferir com mensagens e informações? 

Para interferir no passado de modo não-humano, eles precisariam instalar softwares e vírus que sequestrassem as máquinas fazendo-as trabalhar dentro de seus programas clandestinos e isso só poderia ser possível depois que nossa vigilância deixara de ser exaustiva para se tornar randômica (explico: era-nos possível, através de um fluxo de gravítons, partículas que agem sobre o tempo, anular todo tipo de transmissão temporal que usasse qualquer partícula sub-atômica, mas um dia, um notável cientista húngaro descobriu como operar com o bóson de Highs, uma espécie de partícula quântica que não pertence, propriamente falando, à matéria tal como a conhecemos, mas que é uma partícula do próprio tecido espacial, a tessitura do universo. Rapidamente conseguimos controlar a produção de processadores que utilizavam tal recurso, mas não poderíamos impedir que alguém no futuro enviasse alguma mensagem nesse tipo de linguagem. Para isso, bastaria apenas que existisse computadores quânticos de 5ª geração, adaptáveis a sintonizar esse tipo de campo, o Campo de Highs. Isso só fora possível a partir do ano 2045, trinta anos após eu ter descoberto os princípios da computação quântica e podido nela operar). Portanto, era  a partir dessa data que os ciborgues poderiam interferir no conttinuum tecnológico da nossa civilização, e agora, quanto mais reflito, vejo como muita coisa fora feita de modo a orientar nossa história e desenvolvimento para esse viés maquínico especificamente, quando houvera tantas possiblidades abertas: contato com outras civilizações se nossos esforços fossem canalizados para a radioastronomia, descoberta de poderes psíquicos da nossa mente, exploração da simbiose genética com outros animais e formas de vida diferentes, solução de todos os problemas sociais da humanidade com justiça e educação para todos.... 

Entretanto, o mundo apenas caminhou para mais máquinas, mais softwares, mais aplicativos, mais internet, mais automação, mais GPS, mais chips, mais clones, mais linguagens de programação, enquanto todo o resto do progresso apenas rastejava no vácuo atrativo do phyllum digital! Foi coisa deles, agora eu sabia! Se eu estiver louco, com todos os meus neurochips em ordem e saúde perfeita, só poderia ser a loucura do espírito, e essa sempre será divina e abençoada! Helás! Vamos ao meu plano! Eu irei quebrar as regras da Corporação e enviar esse texto (da maneira mais resumida que pude escrever) para o meu primeiro computador no distante ano de 2015. Também irei acessar minhas redes sociais da época e meus provedores de e-mails (não me esqueci de nenhuma senha), e enviar para todos esse alerta: 

EVITEM ESSE TIPO DE COMPUTAÇÃO CAPAZ DE INTERFERIR NO CONTÍNUO ESPAÇO-TEMPO! ABOMINEM A COMPUTAÇÃO COM PROCESSAMENTO DE PARTÍCULAS SUB-ATÔMICAS! NÃO EXISTE NADA NO FUTURO QUE SEJA TÃO GRANDIOSO QUANDO A VERDADEIRA VIDA FRATERNA DOS IRMÃOS UNIDOS EM UM SÓ CORAÇÃO! FECHEM ESSES MALDITOS ACELERADORES DE PARTÍCULAS! LARGUEM SEUS TABLETS INFERNAIS, VOLTEM ÀS PRAIAS E PRAÇAS, CONVERSEM PESSOALMENTE, OLHANDO NOS OLHOS, SEGURANDO NAS MÃOS. CUMPRIMENTE SEU VIZINHO E SEU AMIGO AO SEU LADO NO ÔNIBUS! SEM SABER, VOCÊS JÁ ESTÃO ESCRAVIZADOS PELAS MÁQUINAS, SENDO USADOS, SEUS CORPOS E SEUS DESEJOS MAIS SAGRADOS, COMO MEROS INSTRUMENTOS DE REPRODUÇÃO DELAS, ATÉ O DIA EM QUE AS MÁQUINAS FOREM CAPAZES DE SE AUTO-REPRODUZIREM E VOCÊS SEREM DESCARTADOS PARA SEMPRE!

SE APRESSEM QUE ESTÁ NA HORA, O FIM SE APROXIMA, FAÍSCAS AFLUEM. 
HÁ DESASTRES NO SOL. 
OS CÃES ESTÃO SOLTOS. 
E UMA LOUCA NA RUA USA O SUTIÃ PARA TRÁS. LARGUEM SUAS GRAVATAS PENDURADAS EM UM POSTE, CORRAM LOGO A INGRESSAR NA ESCURA NOITE INTERIOR DA ZONA CALMA DA ALMA E ENCONTRAR VOSSOS SERES RENOVADOS. 
LARGUEM PARA TRÁS O FORMULÁRIO DO IMPOSTO DE RENDA E O RELÓGIO À PROVA D'ÁGUA.
VÃO DECLAMAR NAS ESQUINAS, 
LENDO REVISTAS BICHADAS. 
SEGUIR PIRANHAS NO PORTO. 
FALAR CANÇÕES DE SELVAGERIA. 
JOGAR PEDRAS. 
DIZER QUALQUER COISA. 
PISCAR PRO SOL SE COÇAR. 
TROPEÇAR PARA CAIR NO SILÊNCIO. 
PAPEAR NAS PORTAS. 
CONHECER PUTAS DE TERCEIRA MÃO DEPOIS QUE TODOS JÁ SE FARTARAM, ANDAR CAMBALEANDO ABISMADO NO PÔR-DO-SOL SOBRE O RIO, DORMIR EM PONTOS DE ÔNIBUS, VOMITAR NUM BALCÃO DE LOJA DE PREGO BATALHANDO POR UM CASACO DE INVERNO. 
VÃO PARA O INTERIOR REAL DO PAÍS ONDE O REINO DO PENHOR PENDE PARA A PURA ANARQUIA. DESLIGUEM TUDO. 
CONFUNDAM TODO O SISTEMA. 
CANCELEM VOSSAS FOLGAS. 
PERCAM A GUERRA SEM MATAR NINGUÉM....

Desculpem meu delírio poético. As emoções estão fora de moda no mundo digital. Em breve vocês verão uma pequena notícia de telejornal em uma TV de um bar bolorento informando que um mega-computador de um pesquisador na França explodiu matando-o. Fui eu que instalei um vírus capaz de superaquecer e explodir o meu pequeno frankstein digital. Sou eu que morro duplamente, no futuro e no presente de vocês, para lhes dar uma nova vida! É preciso, portanto, agir prestamente (confesso ser muito estranho para mim essa urgência, essa sensação do tempo como um kairós que se acaba, para quem, como eu, está tão acostumado a manipular os séculos tal qual um semideus). Enquanto digito isso, o meu comprometimento com o que pretendo fazer vai criando um laço muito intenso de verossimilhança e confatalidade, de tal maneira que começa, com velocidade vertiginosa, a desmoronar o mundo em que vivo, na mesma proporção em que se torna inevitável o meu gesto heroico de lançar um universo inteiro, das franjas da virtualidade para os planos abstratos do possível lógico: meu universo começa a dissolver por conta do meu gesto de destruir o computador quântico na origem de todo esse meu admirável mundo novo! A luz se torna baça e tons sépia dissolvem o contorno das coisas. Minhas fotos desapareceram na parede do corredor. Um silêncio de feriado invade as vias elevadas no alto da estratosfera onde ainda a pouco imensos Zepelins e aeróstatos fluíam tocando música trance... 

Não consigo ver mais o horizonte. Sinto-me como um idoso amnésico que perde subitamente a visão e os sentidos titubeia. Esqueço quase tudo de mim e parte do que acabo de escrever me torna estranho, mas subsiste a minha vontade, essa parte divina e infinita dentro da minha alma e tal convicção e firmeza de pensamentos é uma prova magistral de que algo em mim persiste para além do tempo e do espaço. A mensagem está pronta. Minha mão dissolve-se no ar como se eu fosse um hippie na velha Amsterdam com a mente cheia de ácido. Movo no espaço vazio o meu dedo já do corpo separado. Aperto a tecla SEND.
Share this post

0 comentários :