domingo, 4 de outubro de 2015

VOX ASTRONÔMICA, VOX DEO



Anos atrás – a data não importa para esta faculdade que desconhece o tempo: a memória – eu vivia em casa dos meus pais e no sótão encalacrava-se o estúdio do meu tio Calazar. Ele era um astrônomo amador e passava noites inteiras observando as estrelas com uma velha luneta japonesa. Costumava ele repetir o enunciado de Pascal: a vastidão desses espaços infinitos me enche o peito de opressão e medo!- todos os dias no almoço com a mesma regularidade e monotonia dos astros em seu noturno pastoreio. Um Sábado, de madrugada, eu retornei de uma festa visivelmente bêbado, abri a geladeira e dentro encontrei um suntuoso pudim coroado de ameixas. “A doçura infinita deste pudim enche-me o estômago de desejo”, pensei. Ele estava destinado à ceia de Domingo e possuía um sentido mais sagrado que as hóstias insalubres ingeridas pela manhã na igreja. Violar o pudim acarretaria maldições, deserção e desterro. Com a faca na mão eu hesitava: “Cometo esse crime ou não o cometo? Oh! Deus! Cometo ou não cometo?”- Quando então ouvi uma voz vinda do alto a gritar: COMETA, COMETA! – Imediatamente ataquei o pudim acreditando, bêbado, ter ouvido a tonitruante voz de Deus. Contemplando depois o prato vazio onde, sobre uma calda rala, orbitavam sementes de ameixa, lembrei-me ser esta voz divina o grito do meu tio Calazar rastreando no céu um intempestivo cometa. No outro dia a minha compreensiva mãe salvou-me a pele preparando uma rápida sobremesa mas não me abandonou uma intermitente azia confirmando a velha superstição de serem bastante aziagos estes errantes cometas!

A FLECHA DO TEMPO

Com imprevisível raridade me ocorre lembrar uma cena do passado que se apresenta não somente com a imagem específica mas também com o registro cumulativo de todas as vezes que esta imagem invadiu, inadvertidamente, a minha consciência. Sempre que isso acontece, seja qual for a imagem ou a circunstância, eu me recordo de todas as vezes em que se deu tal reminiscência e, embora simultânea, posso analisar a sensação em termos numéricos ainda que não consiga datar os momentos precisos desta série acumulada e ordinária de lembranças: temos somente o pressentimento do fio invisível do tempo atravessando-as. A lembrança em questão a inspirar este apontamento é uma cena da minha travessa infância: eu possuía uma espingarda de ar-comprimido e tive um dia uma idéia luminar. Apanhei uma grande agulha de sapateiro e nela enfiei um fio de nylon com cerca de dois metros de comprimento, uni as extremidades e dei um nó como um bom costureiro. Enfiei a agulha com o fio dobrado no cano da espingarda e posicionei-me na janela à espreita dos bandos de pardais que esvoaçavam no quintal. Segui com a mira da arma um bando numeroso que passava estridente e quando percebi muitos deles alinhados..., disparei. A agulha atravessou sete pardais que caíram mortos e alinhados no fio de nylon. Não sei se o número de pardais era exatamente este ou se, a cada vez que recordo esta cena, a imagem de um único pardal se aprisiona e se repete no fio do tempo que a atravessa inúmeras vezes...

@Cassidy Brook (Cassiano Ribeiro)
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