terça-feira, 29 de março de 2022

A Besta Nas Fendas do Tempo!



Vicent De Broglie, bisneto do lendário aristocrata francês e físico notável, Louis De Broglie, herdou de seus pais o gosto pela especulação teórica, Física e Filosofia notadamente, um pouco da fortuna financeira e o infortúnio de viver em uma época onde a nobreza era perseguida, o poder político sendo ocupado e exercido cada vez mais por socialistas que não perdoavam sua herança nobiliárquica e de tudo fazendo para obstruir sua carreira como cientista acadêmico. Somado a isso, alguns problemas pessoais com jogos e mulheres findaram por dissipar o pouco da herança dos avós e, antes que ficasse sem nada, resolveu emigrar para os EUA, tentando a sorte em uma de suas prestigiosas universidades. Conseguiu um emprego na Caltech, na Virgínia, mas não como cientista pesquisador, e sim como responsável pela manutenção dos equipamentos, cargo que ele logo descobriu ser, na prática, o de vigia noturno, cuidando de desligar todos os equipamentos e fiscalizar os incontáveis corredores do campus. Vicent não hesitou em aceitar o posto, pois sabia que era apenas uma questão de tempo para se familiarizar com o corpo de cientistas e conseguir ter acesso aos equipamentos e máquinas admiráveis para testar as elucubrações extraordinárias que trazia em sua mente prodigiosa. Uma de suas teses, a mais encorpada - a se considerar o tamanho da caderneta onde registrava as cabeludas equações correlatas -, versava sobre a corpuscularidade do tempo. No esteio da física quântica, de quem seu bisavô fora um dos precursores, sabia-se que a natureza ondulatória das partículas subatômicas - e sua contrapartida corpuscular - deveria determinar o ritmo do tempo se este fosse explicado por uma misteriosa função análoga ao graviton, uma sub-partícula que explicava e determinava a força gravitacional. Traduzindo, em sendo explicado por uma sub-partícula, o tempo seria descontínuo, formado por três dimensões pontuais, o passado, o presente e o futuro, havendo entre estas dimensões um verdadeiro abismo preenchido pelas ondulações ancilares, mas que permanecia, em tese, uma dimensão distinta, um abismo onde, na linguagem dos poetas e místicos, jazia o frio esplendor do nada! Era justamente esta dimensão temporal inusitada e desconhecida que Vicent ambicionava comprovar quando tivesse acesso aos doutores e seus aceleradores vertiginosos. Sua hipótese não era absolutamente original, visto haver considerações desta natureza na história da filosofia, notadamente em seu conterrâneo Renê Descartes, que afirmava ser o tempo descontínuo, formado por "átomos" ou instantes, sendo Deus quem garantia a passagem de um instante dissolvido para outro. Na visão deste filósofo, a criação do mundo se repetia a cada instante, o mundo só perseverando na existência por ação de um conatus sobrenatural, a saber, a contínua intersecção divina sobre o abismo que se abria a cada vez que um "átomo" do tempo passasse e outro não surgisse ainda. Vincent, que era um cátaro praticante, acreditava também em um gênio maligno que habitaria esses abismos entre os instantes, em um mundo das trevas constituído por esta outra dimensão intrínseca que este gênio garantiria a existência. Ele gostava de usar o anagrama do I-ching, das duas metades preto e branca de um círculo, para ilustrar esse combate entre o Bem e o mal como causa do dinamismo e da passagem do tempo. Quanto ao que habitava ali, dentro desta dimensão, contentava-se em dar créditos ao escritor norte-americano Hovard Phillips Lovecraft, o maior explorador, segundo ele, d'estes reinos de trevas e maldições infernais que, eventualmente, conseguia franzir essa tênue película temporal e assombrar o mundo em que vivemos, frágeis criaturas de Deus. Enquanto não conseguia credibilidade para utilizar os sofisticados equipamentos da instituição na pesquisa desta partícula, seguia na sua rotina que consistia, basicamente, em percorrer todas as instalações do campus durante a madrugada, desligando equipamentos e apagando as luzes. Sobre estas luzes, os circuitos eram do tipo de comutação dupla, muito comum em prédios residenciais. O mesmo interruptor podia acender a lâmpada, se esta estivesse desligada, ou apagá-la, se a mesma estive acesa. isso conferia praticidade a quem se deslocasse pelos longos corredores, sem necessidade de retornos recorrentes para acender ou apagar as luzes. Vicent costumava percorrer um corredor iluminado até o ponto onde ele bifurcava com outro e o interruptor dos dois corredores estavam bem próximos. Só depois de acender o novo corredor é que ele apagava a lâmpada do já percorrido, de modo que perfazia todo o longo e labiríntico trajeto do campus dentro de uma ilha móvel de luz, quando então verificava as salas e voltava para o seu trajeto. Uma noite de outubro de 1994, quando estava concentrado em ensaiar as postulações da sua teoria do tempo discriminado, para uma palestra no dia seguinte, aconteceu-lhe de errar o procedimento (presume-se que, ruminando sobre sua tese, conseguira finalmente formular a equação que permitisse isolar esta partícula virtual e com isso, ainda que dentro apenas de um túnel do acelerador, abrir com o pensamento uma fenda no tecido do tempo): ao chegar ao fim do corredor, no exato instante em que visualizava mentalmente a projeção descritiva e geométrica da sua "chave" do tempo, apagou as luzes do corredor que findava antes de acender a lâmpada do outro! Na profunda e excruciante escuridão em que mergulhou, sentiu algo como uma garra felpuda e glacial segurar por seu pescoço em uma pose congelada, como se o tempo não mais existisse, e o arrastasse para o coração do nada! Seu corpo nunca mais fora encontrado. Apenas a caderneta saturada de equações sobre sua teoria fora recuperada pela manhã. Ao lado da sua capa de plástico que usava rotineiramente nas noites frias da Universidade da Virgínia. Nenhum policial que investigara o caso teve a sensibilidade para registrar a sutil e estapafúrdia coincidência, ou sequer ousar investigar uma eventual relação entre seu desaparecimento e a sua teoria de haver abismos infinitos e incomensuráveis no fino tecido ondulatório do tempo que nos atravessa e nos arrasta por esta vida tão iluminada pela ciência ocidental!

Clique AQUI para ler um texto gêmeo, escrito 20 anos antes!

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