quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

SONHOS SECOS & MOLHADOS

     


Quando menino, frequentava muito a casa de um distinto senhor muito amigo dos meus pais, cuja filha tornou-se a esposa de um tio meu. Éramos, assim, quase parentes. A casa dele parecia um cassino, no bom sentido, pois viviam a jogar cartas em noites intermináveis, durante o ano inteiro. Este senhor um dia me chamou na varanda da sua casa para me mostrar um truque com um baralho de cartas. Escolhia um valete de copas, cujo nome era Gregório, e representava um criado sempre servil e pontual. Eu embaralhava as cartas sem que ele participasse de nada. Em seguida ele começava a virar as cartas devagar, uma por uma. Na hora que eu bem entendesse, deveria perguntar:
_ Está pronto, Gregório?
_ Imediatamente ele puxava a próxima carta e era exatamente o Valete de copas! Não importa quando eu fizesse a pergunta, no começo, meio ou fim. E dizia:
_ Estou pronto, senhor!
Ficou profundamente impressionado com o truque. Naquela mesma noite sonhei com o truque. Eu estava, no sonho, andando ao lado de um tio meu, esse que era o genro do jogador. Caminhávamos ao longo de uma linha de montagem de uma fábrica de automóveis (devo ter visto no cinema uma dessas linhas de montagem). À medida em que eu ia tentando explicar o jogo para meu tio, as peças de um carro iam sendo montadas: O chassi, os pneus, os bancos, o motor. Eu via isso de soslaio, enquanto tentava, sem fazer a menor ideia, repetir o truque nas cartas que quase flutuavam em minhas mãos. Perto do final da fábrica, puseram a lataria, o teto, os faróis... O carro ficou pronto justamente quando eu perguntava pra ele: "Está pronto, Gregório?", esperando que o meu tio puxasse a carta de cima e que ela fosse mesmo o valete de copas. Mas ele não fez isso. Voltou-se para o carro recém montado e abriu a porta. Era um fusca, mas tanto tempo se passou que posso estar enganado. De dentro do carro caiu no chão da fábrica, quase aos meus pés, um cadáver. O corpo de um motorista fardado e com cinco punhais enterrado no peito. Olhei para o meu tio que não era mais o meu tio e sim uma sinistra caveira que me perguntou:
_Aí está o Gregório! Não vai levar ele pra sua casa?
Acordei gritando! passei anos sem querer ver na minha frente nenhum baralho ou sequer uma simples carta sem sentir uma repulsa aziaga!
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Mais uma noite sonhei nadando no Porto da Barra. Desta vez estava comigo um velho professor de filosofia, há muito falecido de enfisema pulmonar, quando, para compensar o excesso de fogo dos cigarros, os pulmões se enchem de água – talvez, por ter morrido assim, afogado, ele nadasse com tanta espontaneidade. Ao seu lado, quis lhe mostrar como eu estava bem de saúde, após cinco anos de absoluta abstinência ao tabaco. Vou mergulhar bem fundo e trazer areia nos dedos para lhe mostrar! Então, comecei procurando um local que não fosse tão profundo, pois estávamos bem distantes da praia e nunca fui um mergulhador profissional. Foi quando, para facilitar meu propósito, toda a água do mar desapareceu sem que ninguém desse por isso. Continuamos nadando na água incorporal, mas agora com toda a panorâmica visão do fundo do mar, suas rochas, moluscos e destroços semi-enterrados na areia. Vi um barco naufragado com uma preciosa carga de agasalhos e roupas de inverno. Mergulhei com outro companheiro para pilhar a carga e esqueci do professor. Acho que sequei o mar e pilhei os cobertores para lhe curar do enfisema que o matara. Nos sonhos, sou muito piedoso e, dormindo, não faço mal a ninguém!
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Em sonhos, passeio por ruínas muito antigas, escondidas por abraços luxuriosos de florestas tropicais. Descortino sob samambaias os degraus limosos de uma escada em elíptica espiral, como em uma pintura de Maurício Escher. Uma ave pia agourenta enquanto penetro em um salão semicircular de piso escuro, manchado por milênios de chuva e repasto de bestas selvagens. Caminho por ossadas ressequidas até um átrio portentoso composto por imensas estantes com milhares de livros em tomos dourados e capas rebuscadas. No centro do espaço vaporoso, onde raios laminares de colorida luz simulam cortinados, vejo um monge austero e imóvel, de olhos semi-cerrados, meditando em frente à biblioteca. Após alguns instantes estupefato, senti que havia entendido o que ele fazia ali e ousei interromper o seu silêncio sepulcral:
_ Sei que és um sábio, e que atingiu a sabedoria meditando sobre cada um destes volumes expostos aí a sua frente durante uma eternidade! Aposto como, de alguma maneira que me é incompreensível, voce conseguiu absorver todo o conhecimento que há neles! Isso é mágico!
Ele não se moveu, mas falou-me e, dentro do sonho, sua voz parecia o barrido de uma manada de elefantes orientais:
_Não é bem assim! Fico aqui meditando em cada um deles e esperando o momento onde, inevitavelmente, um por um, eles findam por se tornar obsoletos, sua suposta sabedoria sendo devorada pelo Tempo soberano, pelo Divino Aion que tudo muda, tudo transmuta, tudo renova e tudo acaba. Eu, que nada sei, Sou mais sábio que todos eles, pois minha ignorância é um dado imediato da minha consciência, enquanto estes livros precisam esperar, por vezes, uma eternidade para voltarem a ser o que sempre foram: NADA!
Senti nesse monge, apesar dele confessar sua infinita ignorância, uma igualmente tamanha vaidade! Dirigi-me até à estante. Intuitivamente vasculhei suas oníricas prateleiras e findei por encontrar um volume da Bíblia Sagrada, na Versão católica de São Jerônimo. Voltei em direção ao monge para lhe perguntar se aquele também era um livro datado, destinado a se tornar um dia obsoleto e antiquado, mas, para minha surpresa, por entre furtivas pilastras e degraus, o monge fugia chapinhando seus pés descalços nas especulares poças d'água e segurando sua túnica como uma adúltera que foge segurando a barra da saia! Observei ele desaparecer entre os galhos da ominosa mata. Pouco antes do fim das escadas, percebi que um longo e pelancudo par de asas surgiram de dentro do seu manto purpúreo e uma cauda pontiaguda ajudou o seu corpo a se equilibrar nos ares enquanto voava grunhindo, transfigurado e desajeitado. Era um demônio, muito provavelmente, e eu ainda agora ressinto-me e não me conformo em ter sonhado com tais entes execráveis! Que o próximo sonho me traga as visões celestiais que, espero, estejam-me destinadas! Orem por meu sono! Obrigado!


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