O antigo abrigo dos indigentes estava quase abandonado e no último pavilhão havia somente um obscuro habitante, uma idosa cega e sem o braço direito, circulando como um fantasma pelas úmidas galerias. Era um desses pacientes que se alimentam de pensamentos e memórias ou talvez uma indigente miserável acometida por uma doença insólita. Seu único laço com o mundo era o braço esquerdo estendido em busca da marmita piedosa que uma freira todas as manhãs depositava em sua porta. A sensação do seu cotidiano era indescritível supondo-lhe uma sensibilidade indiferenciada e pastosa, estado esse desconhecido por um narrador de alma tempestuosa, contudo, algo de relevante vinha lhe acontecendo “a fortiori” como, na cisterna onde bebia, o vento agitando a água que dorme. Seu braço direito parecia por alguns instantes estar de novo ligado ao seu corpo, devolvendo-lhe novas sensações que diriam-se milagrosas não fossem feitas de dores tão pungentes perturbando-lhe a esperança de uma boa morte. Sabia porém não se tratar de um milagre pois com a outra mão podia sentir a cicatriz no ombro onde fora decepado, o espaço vazio em volta e mesmo assim os dedos perdidos moviam-se prestidigiosos; era mesmo capaz de simular todos os acordes de um rondó ao violino tocado com freqüência nos idos de outrora. A esta circunstância em si tão assombrosa um outro detalhe vinha confundir a representação que ele possuía do espaço a sua volta. As lancinantes cãibras no seu membro fantasmagórico lhe extraíam bruscos movimentos que findaram por lhe revelar uma nova e estranha realidade. Costumava aliviar as dores com fortes socos no ar desferidos com o suposto braço quando a mão “abstrata” chocou-se contra uma porta de madeira que nunca ali houvera estado! Ela conhecia cada metro quadrado daquela cela imunda e fora com um estupor inaudito que tateou o relevo estilizado, as cornijas de um portal que praticamente não existia para o resto de seu corpo. Era doloroso ver aquele ser decrépito girando no vazio, obcecado por uma sensação localizada à centímetros do ombro obtuso. Salvo a hipótese da loucura com a qual ela ia temerariamente se acostumando, nenhum sentido fazia aquela aparição que personificava as próprias portas do desconhecido e com o corpo todo arrepiado voltava ela para o leito feito de velhos jornais e chorava e tremia. Sua curiosidade aguçada descobriu dias depois u’a maçaneta e girá-la lhe fez sentir a expansão de um mundo novo como se os antípodas da mente houvessem se integrados. Entregou-se ao delírio de penetrar o novo recinto que seus nervos descobrira e explorar a atmosfera virginal que ao seu tato configurava-se. Venceu cortinas de seda e uma brisa de noite tropical acalentou seu espírito excitado; mosaicos de um suave vitral intercalava-se com tapetes aveludados nas paredes do que parecia ser, ao seu tato superexcitado e imaginário, um quarto nupcial. Descobriu u’a mesa e derrubou uma taça sem contudo ouvir o tilintar provável do cristal. Eflúvios de calor indicava-lhe a presença de uma lareira e a indigente maravilhada acreditava ter ascendido a uma outra dimensão com o que ele supunha ser o braço da sua alma. As frutas sobre a mesa não puderam saciar a fome que a devorava pois, embora fosse capaz de sentir o sumo melado entre os dedos, a sua boca amarga e omnívora, quando aberta, só experimentava o ar pestilento e o miasma do seu catre e teve de se contentar com prazeres mais delicados que a singularidade daquelas formas lhe proporcionava: a pêra rotunda, os ásperos ananases e os cachos de uva invocavam reminiscências de um tempo paradisíaco e voluptuoso que se espalhavam por sinestesia no veludo das almofadas. Há um estado além da excitação e para o qual falta-me as palavras: o transe que experimentou quando vasculhava o que lhe parecia ser uma cama. Sua taumatúrgica mão descobriu um pé delicado que se moveu ao primeiro toque. Hesitou. Sua última gota de bom-senso evolou-se ao reconhecer que havia ali, ao alcance das suas ilusões, um corpo vivo e masculino. Sob os lençóis o fantasma estava nu. Tinha formas roliças e quentes. Ao tocar-lhe o sexo uma outra mão segurou a sua. Recuou. Na sua mente insana o desejo e o medo ora se anulavam, ora somavam forças. Quem olhasse para o interior da cela veria brilhar no vazio dois olhos satíricos em um corpo macambúzio. O espectro uniu a sua mão aos dedos da anciã hebefrênica. Por eles subia um doce feitiço que traduzia-se em seu cérebro como um melódico e distante convite: “vamos, vamos”. Seus nervos sentiram então as épuras do paraíso. Seu corpo queria. No silêncio da sua alma possuída os dedos entrelaçavam-se. Algo dentro dele hesitava. Seu corpo fora perdendo a tensão e se entregando à doçura do contato. Deu enfim o consentimento. Sentiu então um arranque violento carregar o seu místico braço e com ele o resto da sua alma. Não teve tempo de gritar. No dia seguinte a freira encontrou, morta e contorcida, o corpo da escritora Roseana Murray, cujo braço direito fora amputado por um cão imundo, estendido no chão do sórdido catre. Talvez, para os esotéricos que futuramente se debruçam sobre o caso, o cão que levou seu braço e o cão que sequestrou sua alma, para além da sinonímia mitológica, sejam modalidades formais de uma mesma e perversa substância do mal! Oremos, se crédulo formos!
₢ Cassiano Ribeiro Santos
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