sexta-feira, 5 de abril de 2024

O CLIMATÉRIO DE VIRGÍNIA WOOLF



      Antes de tornar-se objeto de uma ciência, a meteorologia, batizada por Aristóteles, na obra Dos Meteoros, o clima sempre foi um ator coadjuvante em memoráveis obras da literatura universal. De instrumento e manifestação dos poderes mitológicos dos deuses, tais quais os raios de Zeus, o dilúvio de YHVÉ e Gilgamesh, as auroras boreais das valquírias, aos cenários sublimes dos heróis humanos, como as tempestades de Próspero e as brumas de MacBeth, no Cisne de Avon, passando pelas primaveras floridas da Arcádia e dos romances pastorais da Idade Média... 

Precisamente destas primaveras medievais, como um perfume de uma flor ressequida entre páginas de um estiolado livro, vêm-me a lembrança de uma refinada efeméride climática, esquecida no miolo de um memorável livro, Orlando, da Virgínia Woolf. No início deste livro, a vida do príncipe Orlando se passa em cenários de douradas primaveras, pois que, na era elisabetiana, antes da corrente do Golfo surgir no Atlântico Norte, trazendo consigo toneladas anuais de umidade a cobrir a ilha com seus espessos e pitorescos nevoeiros, Londres possuía o clima de uma eterna primavera (até mesmo a flora e a fauna confirmam esta mudança climática nas ilhas britânicas de fácil consulta em sites de história do clima). No deslizar das páginas desta obra, a autora observa o assomar de uma pequena nuvem no horizonte alciôneo onde serpenteava o rio Tâmisa. Poucas linhas depois e uma gigantesca montanha de nuvens pantagruélicas começa a devorar o outrora e estival céu da Inglaterra. Londres agora é tomada por vaporosos e excruciantes smogs”, em cujas fímbrias se pode ouvir os ventos uivantes das charnecas inglesas onde, futuramente, outra genial escritora inglesa irá encenar um vigoroso drama de amor entre Katherine e o cigano Heatcliff. Por conta desta mudança climática que se abateu sobre a Grã-Bretanha, a umidade encharca os castelos e os quarteirões londrinos. As cortinas ensopadas, as paredes infiltradas, os lençóis molhados... A vida da cidade parece se dissolver feito farelos de biscoitos em uma chávena de chá das cinco!  Por conta desta umidade – conta-nos Virgínia Woolf -  as práticas de amor dos homens perdem a frequência e a intensidade; mas, em compensação, os discursos tornam-se empolados: NASCE O ROMANTISMO! Que insight singular desta sublime escritora!  Deve ter sentido nela mesma, na desafetação do seu esposo, Stephen Woolf (quase um “steppenwolf”, um lobo da estepe), na redução do “coito maritalis” comum aos casais que envelhecem juntos, a presença de uma causa fisiológica e errante dos seus líricos arroubos, do seu sutil e conjurado romantismo, como um nevoeiro a pairar sobre a sua obra, tão inclinada e comprometida com o cientificismo e a psicologia que imperava na cultura de sua época! Ainda por ser estudado, esse vínculo substantivo entre o ascetismo e o romantismo salta aos olhos tamanha sua evidência; afinal, não seria mesmo próprio de todas as obras românticas um cortejo de heróis celibatários, rapazes castos e moçoilas virgens tomados por um amor nunca consumado e expresso em um vocabulário efusivo e excitado, por sentimentos dilacerados a varrer a carne dos corpos separados e, na leitura de nossa autora, molhados, sem as centelhas do fogo primaveril e sexual? 

Das charnecas inglesas onde se passa o amor sobrenatural de O Morro Dos Ventos Uivantes, ao vaporoso círculo de Bloombury onde Virgínia escrevia como uma jardineira regando as flores, leiam, vorazes, as obras do romantismo inglês e deixem que o orvalho encantado de suas páginas apaguem o fogo de seus quartos excitados!

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