quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

HERMENÊUTICA SEXISTA DA LITERATURA




    

      Dos poucos talentos do espírito que a avara natureza me dotou, creio que a psicologia dos artistas tenha sido o mais primoroso. Não que eu tenha inaugurado tão refinado dom, visto ter havido uma respeitável escola de Estética alemã, a Kunstwoller, daqueles meninos Theodor Lipps e Alois Riegel, que inauguraram, estes sim, uma clivagem no estudo das artes, buscando analisar não mais a obra criada, a tela, o livro, a catedral..., mas doravante o artista, o que sua vontade queria de fato ao criar, quais forças inconscientes manipulavam o criador, revelando a causa e, assim, os conceitos imprescindíveis para o crítico, pois que o artista, submetendo os dados sensíveis da matéria às ideias da razão, não trabalha com os conceitos do entendimento. Como é prazeiroso e reconfortador, diante dos mistérios que uma obra de arte insinua (a aura que o W. Benjamim julgava ver fremir em torno de uma obra) saber que motivos secretos estão por detrás, que tipo de vontade é aquela, se ele quer rivalizar com a natureza representada, harmonizar-se com ela ou espiritualizá-la! Muitas vezes esta vontade quer apenas imitar um outro artista admirado, sem com isso perder nada da sua nobreza. Recordo-me certa feita, na casa do escritor Jorge Amado, com quem privei já nos últimos anos da sua longa vida, ter visto um exemplar de O Morro Dos Ventos Uivantes, da Emily Brontë, da editora mineira Itatiaia, em cujas páginas, para quem conhece este clássico, vibramos com o amor sobrenatural do cigano Heatcliff pela solitária Katherine, seu fantasma aparecendo-lhe nas lúgubres charnecas inglesas sempre acompanhado por ridimunhos e livusias uivantes do vento nos telhados. De estalo (d’emblée), perguntei ao Jorge Amado se ele havia se inspirado neste romance para criar o fantasma de Vadinho, o primeiro e falecido marido de Dona Flor, então casada com um farmacêutico tocador de oboé. Seus olhos saltaram das órbitas:

 

_ De onde você tirou essa ideia? - Perguntou-me o velho sátiro.

Para ser espirituoso e enigmático, e não o chamar de um mero imitador, respondi que o som do oboé tocado pelo marido atual de Flor evocava, em minha imaginação, um lamento fantasmagórico, um vento sepulcral nos fundos da botica onde o casal morava, e daí, passar deste vento para os ventos ingleses...

Acho que ele acreditou na inconsciência da minha exegese literária. Com o pouco de ironia que lhe restou ao ser assim desmascarado, piscou-me seu olho recém operado de catarata e pediu-me:

_ Não conte pra ninguém não!

Nunca o contei enquanto ele fora vivo e sua obra ainda lida pelo grande público. Hoje parece não ser editado mais os seus livros maravilhosos. Em verdade, arrependo-me mesmo por ter contado para outros, outras intuições literárias que tive com este meu inútil talento. Alguns anos antes deste episódio, no Rio de Janeiro, em um jantar oferecido ao eminente professor francês Maurice de Gandillac, professor de Gilles Deleuze e Michel Foucault, na época já um honorável acadêmico de 82 anos, vi a conversa fruir sobre uma especiosa galimatia que havia tomado de rumores a elite intelectual francesa. O Escritor inglês e helenista de contrabando, Robert Graves, autor da fabulosa trilogia Os Mitos Gregos, estava convencido e convencendo a todos, pelas mais abscônditas e eruditas razões, de que a obra A ODISSEIA, havia sido escrito por uma mulher! Ali havia todos os encantos da alma feminina: O poder e a sedução de Circe feiticeira, a fidelidade de Penélope, o anseio de Ulisses pelo lar, o canto embriagante das sereias, anseios e volições diametralmente opostas ao autor da Ilíada com o sacrifício de Ifigênia, a traição de Helena, as carnificinas das batalhas, o ciúme possessivo de Aquiles (A França não havia sido ainda empesteada pela ideologia de gênero, e estas distinções eram profundamente pertinentes!)... Nosso convidado, em seu erudito francês provençal, empolava-se todo para fazer a "kunstwoller" dos autores gregos, tomando como sua a tese do escritor inglês. Para agradá-lo, visto que minha função de cicerone assim o recomendava, calhei-me de ter alguns mediúnicos insights sobre o tema em questão. Sim! De fato eram arquétipos bem definidos do homem e da mulher estes dois autores e minha prova hermenêutica era bem menos sublime e muito mais tropical, saliente e sexual (na época eu só pensava naquilo!): na Ilíada, expliquei olhando bem nos olhos das mulheres ao redor da nossa mesa, o ápice da astúcia de Ulisses, o cavalo de Tróia, era uma estratégia criada para PENETRAR, ROMPER defesas, literalmente ESTUPRAR a cidadela de Príamo, enquanto na suposta autora feminina, a Homerina como viemos a chamá-la após alguns drinques, a grande astúcia de Odisseu teria sido escapar da caverna do ciclope Polifemo, escondido e encolhido sob o ventre lanoso das ovelhas que saiam todos os dias da caverna para pastar. Uma típica estratégia de sair, murcho, pequeno, e de dar à luz os rebentos na caverna introjetados. Haveria assim metáforas mais freudianas e reveladoras do sexo dos autores? Um só pensando em entrar, outra só pensando em tirar de dentro, em parir? Acreditam vocês que o Maurice de Gandillac tomou essa picaresca e pitoresca leitura minha como uma cabal e definitiva explicação a favor dos ingleses e até escreveu um artigo sobre a psicologia dos autores clássicos gregos, fazendo uso dela e atribuindo, como castigo, quero crer, à sua aluna rebelde Bárbara Cassin, a autoria deste insight? (Cassiano, Cassin... Tudo não teria passado de um inocente erro tipográfico?) De nada adiantou, no fim da bebedeira em uma cantina de Botafogo, eu ter lhe lembrado que o Cavalo de Tróia não aparecia na Ilíada, sendo citado apenas na Eneida, de Virgílio, mil e duzentos anos depois! Ele retrucou que isso não importava, afinal, Virgílio também era um homem, e Homero pensaria como ele se houvesse registrado o episódio! Tão velho como Jorge Amado, citado na introdução deste apontamento, recordo-me dos dois sob a mesma rubrica de um velho adágio popular: o capeta é o que é não por ser o capeta... Mas por ser velho!

 

 

 

P.S. Certo mesmo é que levei a sério esse meu farrapo de insight "Kunstwolleriano": Escrevi - e perdi depois - um texto onde desenvolvo essa metodologia sexista e tentei com ela explicar a masculinidade do autor de Cinderela, quando o desfecho e grand finale deste conto arquetípico ocorre no momento em que o príncipe enterra até o talo o pé de Cinderela dentro do sapatinho de cristal, e a feminilidade da autora da saga Arturiana, quando o jovem aprendiz do mago Merlin, descobre ser o Rei dos Bretões ao RETIRAR de dentro da pedra a fálica espada Excalibur! Lamentavelmente, não sei onde enterrei esse texto. Se um dia minha esposa o desengavetá-lo de algum armário aqui em casa, volto a comentar. Sinto que vocês ficaram bastante excitadas!

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