Dos poucos talentos do espírito que a avara natureza me dotou, creio que
a psicologia dos artistas tenha sido o mais primoroso. Não que eu tenha
inaugurado tão refinado dom, visto ter havido uma respeitável escola de
Estética alemã, a Kunstwoller, daqueles meninos Theodor Lipps e Alois Riegel,
que inauguraram, estes sim, uma clivagem no estudo das artes, buscando analisar
não mais a obra criada, a tela, o livro, a catedral..., mas doravante o
artista, o que sua vontade queria de fato ao criar, quais forças inconscientes
manipulavam o criador, revelando a causa e, assim, os conceitos imprescindíveis
para o crítico, pois que o artista, submetendo os dados sensíveis da matéria às
ideias da razão, não trabalha com os conceitos do entendimento. Como é
prazeiroso e reconfortador, diante dos mistérios que uma obra de arte insinua
(a aura que o W. Benjamim julgava ver fremir em torno de uma obra) saber que
motivos secretos estão por detrás, que tipo de vontade é aquela, se ele quer
rivalizar com a natureza representada, harmonizar-se com ela ou
espiritualizá-la! Muitas vezes esta vontade quer apenas imitar um outro artista
admirado, sem com isso perder nada da sua nobreza. Recordo-me certa feita, na
casa do escritor Jorge Amado, com quem privei já nos últimos anos da sua longa
vida, ter visto um exemplar de O Morro Dos Ventos Uivantes, da Emily Brontë, da
editora mineira Itatiaia, em cujas páginas, para quem conhece este clássico,
vibramos com o amor sobrenatural do cigano Heatcliff pela solitária Katherine,
seu fantasma aparecendo-lhe nas lúgubres charnecas inglesas sempre acompanhado
por ridimunhos e livusias uivantes do vento nos telhados. De estalo (d’emblée),
perguntei ao Jorge Amado se ele havia se inspirado neste romance para criar o
fantasma de Vadinho, o primeiro e falecido marido de Dona Flor, então casada
com um farmacêutico tocador de oboé. Seus olhos saltaram das órbitas:
_ De onde você tirou essa ideia? - Perguntou-me o velho sátiro.
Para ser espirituoso e enigmático, e não o chamar de um mero imitador,
respondi que o som do oboé tocado pelo marido atual de Flor evocava, em minha
imaginação, um lamento fantasmagórico, um vento sepulcral nos fundos da botica
onde o casal morava, e daí, passar deste vento para os ventos ingleses...
Acho que ele acreditou na inconsciência da minha exegese literária. Com
o pouco de ironia que lhe restou ao ser assim desmascarado, piscou-me seu olho
recém operado de catarata e pediu-me:
_ Não conte pra ninguém não!
Nunca o contei enquanto ele fora vivo e sua obra ainda lida pelo grande
público. Hoje parece não ser editado mais os seus livros maravilhosos. Em
verdade, arrependo-me mesmo por ter contado para outros, outras intuições
literárias que tive com este meu inútil talento. Alguns anos antes deste
episódio, no Rio de Janeiro, em um jantar oferecido ao eminente professor
francês Maurice de Gandillac, professor de Gilles Deleuze e Michel Foucault, na
época já um honorável acadêmico de 82 anos, vi a conversa fruir sobre uma
especiosa galimatia que havia tomado de rumores a elite intelectual francesa. O
Escritor inglês e helenista de contrabando, Robert Graves, autor da fabulosa
trilogia Os Mitos Gregos, estava convencido e convencendo a todos, pelas mais
abscônditas e eruditas razões, de que a obra A ODISSEIA, havia sido escrito por
uma mulher! Ali havia todos os encantos da alma feminina: O poder e a sedução
de Circe feiticeira, a fidelidade de Penélope, o anseio de Ulisses pelo lar, o
canto embriagante das sereias, anseios e volições diametralmente opostas ao
autor da Ilíada com o sacrifício de Ifigênia, a traição de Helena, as
carnificinas das batalhas, o ciúme possessivo de Aquiles (A França não havia
sido ainda empesteada pela ideologia de gênero, e estas distinções eram
profundamente pertinentes!)... Nosso convidado, em seu erudito francês
provençal, empolava-se todo para fazer a "kunstwoller" dos autores
gregos, tomando como sua a tese do escritor inglês. Para agradá-lo, visto que
minha função de cicerone assim o recomendava, calhei-me de ter alguns
mediúnicos insights sobre o tema em questão. Sim! De fato eram arquétipos bem
definidos do homem e da mulher estes dois autores e minha prova hermenêutica
era bem menos sublime e muito mais tropical, saliente e sexual (na época eu só
pensava naquilo!): na Ilíada, expliquei olhando bem nos olhos das mulheres ao
redor da nossa mesa, o ápice da astúcia de Ulisses, o cavalo de Tróia, era uma
estratégia criada para PENETRAR, ROMPER defesas, literalmente ESTUPRAR a cidadela
de Príamo, enquanto na suposta autora feminina, a Homerina como viemos a
chamá-la após alguns drinques, a grande astúcia de Odisseu teria sido escapar
da caverna do ciclope Polifemo, escondido e encolhido sob o ventre lanoso das
ovelhas que saiam todos os dias da caverna para pastar. Uma típica estratégia
de sair, murcho, pequeno, e de dar à luz os rebentos na caverna introjetados.
Haveria assim metáforas mais freudianas e reveladoras do sexo dos autores? Um
só pensando em entrar, outra só pensando em tirar de dentro, em parir?
Acreditam vocês que o Maurice de Gandillac tomou essa picaresca e pitoresca
leitura minha como uma cabal e definitiva explicação a favor dos ingleses e até
escreveu um artigo sobre a psicologia dos autores clássicos gregos, fazendo uso
dela e atribuindo, como castigo, quero crer, à sua aluna rebelde Bárbara
Cassin, a autoria deste insight? (Cassiano, Cassin... Tudo não teria passado de
um inocente erro tipográfico?) De nada adiantou, no fim da bebedeira em uma
cantina de Botafogo, eu ter lhe lembrado que o Cavalo de Tróia não aparecia na
Ilíada, sendo citado apenas na Eneida, de Virgílio, mil e duzentos anos depois!
Ele retrucou que isso não importava, afinal, Virgílio também era um homem, e
Homero pensaria como ele se houvesse registrado o episódio! Tão velho como
Jorge Amado, citado na introdução deste apontamento, recordo-me dos dois sob a
mesma rubrica de um velho adágio popular: o capeta é o que é não por ser o
capeta... Mas por ser velho!
P.S. Certo mesmo é que levei a sério esse meu farrapo de insight
"Kunstwolleriano": Escrevi - e perdi depois - um texto onde
desenvolvo essa metodologia sexista e tentei com ela explicar a masculinidade
do autor de Cinderela, quando o desfecho e grand finale deste conto arquetípico
ocorre no momento em que o príncipe enterra até o talo o pé de Cinderela dentro
do sapatinho de cristal, e a feminilidade da autora da saga Arturiana, quando o
jovem aprendiz do mago Merlin, descobre ser o Rei dos Bretões ao RETIRAR de
dentro da pedra a fálica espada Excalibur! Lamentavelmente, não sei onde
enterrei esse texto. Se um dia minha esposa o desengavetá-lo de algum armário
aqui em casa, volto a comentar. Sinto que vocês ficaram bastante excitadas!
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