terça-feira, 18 de julho de 2023

HOMO LUPUS HOMINI!

 

A HISTÓRIA SE PASSOU NOS FUNDOS DESTA CASA! Nomes e lugares foram trocados!



O Alcaide Serapião Cangussu, aventureiro e oficial de Justiça autonomeado durante as primeiras décadas de colonização da Vila das Vitórias, hoje município de Vitória da Conquista-Ba, era sinônimo de justiça e tirania simultaneamente, a depender de seus caprichos, simpatias e venetas. Distribuía a paz e o terror e a tal ponto se encastelou na alma temerária dos colonos que já começava a expandir sua influência por uma vasta região e incomodar outros mandachuvas vicinais. Viajava muito e sua propriedade era governada por um servo de nome Jovelino Ferraz, negro taludo, fleumático e dedicado aos negócios do seu patrão. Um dia fizeram uma intriga com o seu nome, acusando-o de ter roubado duas reses do Serapião e vendido no povoado de Itambé, a poucas léguas do Vale do Verruga, como então era conhecido o arraial. Sem sequer dar ouvidos ao acusado, confiando excessivamente na autora da calúnia, uma fogosa mulata que com este servo quis se deitar e fora esnobada (Jovelino era castrado, soube-se depois pela visão de seu cadáver). Talvez ele não tivesse tido a coragem de revelar esse cabal detalhe anatômico para a reencarnada esposa de Putifar que lhe assediava, talvez esta não lhe agradasse por outras razões, o certo é que ele foi convocado pelo Alcaide Serapião, em sua sala improvisada no peitoril da fazenda, apenas para ser comunicado da acusação e da sentença. O alcaide iria viajar por duas semanas. Na volta, Jovelino seria atirado aos cães da fazenda, cinco ferozes Mastiff alemães de lendário currículo no extermínio dos javalis e veados da região, para aprender a não abusar de suas protegidas e servir de exemplo. Sem mais delongas ou compaixão pelo servo que cuidou dele desde a mais tenra infância, o alcaide viajou na madrugada seguinte deixando o pobre Jovelino em pânico e amarguras mergulhado. Nem por isso, homem resignado e temperado no sofrimento que era, deixou de cuidar dos seus afazeres e compromissos. Provavelmente fora nesse mesmo dia, contemplando os cães que iria lhe devorar, presos e babando de fome no cercado que seria de canil, que ele teve um lampejo de esperanças, na forma de um ardil soprado por algum gênio protetor em sua mente dilacerada. Ordenou que o responsável pelos cães cuidasse de outros afazeres e ele mesmo passou a alimentar e cuidar dos cães a que em breve serviria de repasto. Quem o visse neste e nos outros dias seguintes, lavando o canil, dando banho nos animais, servindo a ração como se fosse um garçom hipócrita de tanta servidão, seus afagos e conversas com os animais, pensariam todos que ele havia perdido o juízo. Mas seu plano era outro. O dia chegou em que o alcaide retornaria de viagem. Duas semanas se passaram e Serapião Cangussu nem esperou o jantar ser servido. Fora logo para a rinha onde treinava os animais e mandou soltar ali o capataz Jovelino, espumando de raiva pela traição de quem confiou por toda a vida e ansioso para dar um exemplo aos seus capangas de como a melhor lealdade que existe é aquela ancorada no medo e no terror! Chamou a mulata autora da calúnia para assistir ao seu lado a cena dantesca e deu ordens para que soltassem os cães, atiçando-os com seus gritos de caçador. Para seu espanto e de todos, os mastiffs, feito os leões na cova de Daniel, começaram a lamber as mãos de Jovelino e a fazer mil festas pulando sobre ele, indiferente às instigações de fúria e ataque por parte da plateia. Serapião ficou em pé. Todos silenciaram e ele perguntou o que estava acontecendo, afinal! Jovelino aproveitou para o seu discurso meio-ensaiado pois a tensão lhe fizera perder metade das frases ruminadas durante aquela quinzena macabra:

_ Meu Senhor, a quem nunca traí a confiança e que hoje me acusa de modo tão injusto e desumano. Penso que estamos diante de uma lição da vida para todos nós! Vejam o senhor e todos presentes que estes animais, por eu ter cuidado deles por apenas quinze dias, dando-lhes carinho, amor e atenção, tornaram-se meus amigos e demonstram a gratidão que o senhor, a quem cuidei como um filho por quase cinquenta anos, não é capaz de demonstrar, ao me julgar e me condenar a uma morte tão infame! Eis que vemos aqui um homem ter menos nobreza do que uma matilha de cães!

O medo de morrer, certamente, fizera com que Jovelino errasse o tom das palavras, ou se deixou levar por lembranças afetivas do tempo que o seu patrão era um rapazinho e ouvia dele reprimendas, antes de se tornar um bandido celerado. Serapião, se sentindo humilhado na frente de seus homens - conta a lenda que a autora da calúnia era uma feiticeira e mantinha sob sua influência o monstro assassino -, apanhou seu facão Corneta de cabo prateado e o enterrou até o cabo no bucho do seu velho cuidador, sentindo ele morrer lentamente, abraçado ao seu corpo e tentando chama-lo de “meu filho”! “Meu filho”! Os cães hesitaram um pouco, mas logo começaram a rosnar para o assassino, até serem contidos por um dos capangas, a chicoteá-los e tangê-los para dentro de suas celas. 

Share this post

0 comentários :