segunda-feira, 10 de julho de 2023

A Moral Anômala do Crispim Douglas Corcoran Jr.


 

É lamentável que um homem tão singular e espirituoso como Crispim Douglas Corcoran Junior tenha, por biógrafo, um amanuense tão enfadonho como eu; mas talvez, sob um ângulo que não posso alcançar, as suas vicissitudes sejam mesmo a causa da sua originalidade, a acreditar que o destino seja o caráter, como os antigos gostavam de apregoar. Como exemplo disso, não é que ele foi levado a ser tornar um delegado de polícia em uma simplória cidade do interior da Bahia, Itambé, quando poderia ter sido um bispo na capital, um magistrado, ou um tremendo ladrão de gado, o que era - naquelas bandas e naquele tempo - a mais glamorosa e larga estrada da ascensão social? Pois eis ele lá, delegado de polícia sempre envolto nos mais escabrosos e patéticos casos. O de hoje, diz respeito à um pobre motorista, Otelino Chagas, que havia improvisado sua pick-up em um pequeno caminhão de romeiros e partido para Bom Jesus da Lapa levando na carroceria doze eufóricas beatas, provectas e desdentadas, a salmodiar pelas empoeiradas estradas. No segundo dia de viagem, já perto do sagrado destino, um acidente escabroso sói acontecer: Otelino guiava por uma larga e longa curva, em considerável velocidade. As doze idosas, pressentindo a proximidade do santuário, viajavam em pé, seguras em uma barra de ferro improvisada ao longo da capota. Cantavam seus hinos religiosos sem obedecer aos conselhos dados pelo simplório caminhoneiro – Será que o motorista pagão não via as asas que a fé lhas dava? A certo momento da curva, despontou-se na frente do carro um longo galho de uma árvore a cruzar a meia altura toda a extensão da pista. A estrada era arenosa; se ele freasse, o risco de tombar era enorme! Sua mente em pânico calculou e concluiu que a altura era suficiente – a conta exata, pra sermos mais precisos – da Pick-up passar por baixo do galho. Era a única alternativa, comentou Otelino na delegacia, e ele pôs a cabeça para fora da janela gritando para as idosas, alertando-as do perigo. Em seguida, confiante, enfiou o carro em baixo do galho de jatobá!!! Não foi feliz. O galho apanhou as doze velhinhas pelo pescoço e espádua, lançando-as fora a metros de distância, feito um straight de boliche com doze vítimas fatais. Atordoado, Otelino recolheu os corpos, entregou-os na delegacia e, em prantos, disse que não queria mais sair de lá. Queria ser preso. Não queria nem mesmo viver mais, após tão sinistra tragédia. A perícia concluiu que fora mesmo um acidente fatal, nenhum parente registrou queixa contra o motorista. O problema era lhe convencer a sair da cadeia onde queria viver o resto da sua vida, atormentado por remorsos que lhe vinham às dúzias! Crispim Corcoran sentou-se ao seu lado e pôs-se em uma improvável tentativa de convencer Otelino da sua inocência. A única maneira de conseguir tal proeza era encontrar um culpado, qualquer que fosse, real ou imaginário, para nele depositar a pesada cruz de tamanha maldade. Foi isso que fez Crispim. Como Otelino, devido ao trauma, não se lembrava mais do que havia explicitamente gritado para as beatas, Crispim repetiu diversas vezes a sua versão até que Otelino a fizesse sua e a introjetasse. Disse-lhe o delegado que ele, o motorista, na hora do acidente pusera a cabeça pra fora berrando: Ó O PAU! Ó O PAU! Ó O PAU! Ó O PAU!

Assim que Otelino, repetindo pela enésima vez o episódio, diante de um escrivão (eu) a fingir que datilografava, usou desse termo, como se convicto estivesse de tê-lo mesmo usado, Corcoran arrematou!
_ Mas então, homem! Você fez o certo! O problema estava nelas, nas coitadas. Quando ouviram você gritar “Ó o pau! Ó o pau!” elas, ao invés de baixarem a cabeça.... FECHARAM AS PERNAS! A moral, meu filho, a moral!!! Essa estranha força da vida que nos ergue do pântano, nos faz andar altivos, só para no final nos derrubar feito uma obscena jaca! Pense nisso – Concluiu Corcoran com olhos enviesados de um nietzschiano mal-traduzido – e veja se você podia fazer alguma coisa diante da ameaça que um pau gritado daquele jeito representava para tão castas velhinhas!
Em seguida, Corcoran apanhou o paletó e me convidou para um café no bar de Olavo. Na volta, a delegacia estava deserta, apenas o tarado e pedófilo Bamburrá, nos fundos de uma cela, entoava uma pungente canção de ninar.


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