sexta-feira, 18 de março de 2022

O QUIABO É O PAI DE ROQUE!



Não é fácil precisar o momento em que uma lenda se torna mito, mas se esta lenda explica a origem de um fenômeno, uma das condições já está satisfeita, pois, para além dos ritos que o vivifica, o mito é eminentemente fundação ou "mito de origem". O fenômeno aqui investigado é o Rock'in Roll e a lenda, a curiosa personagem norte-americana, o guitarrista Robert Johnson. Contam que ele, aos vinte e quatro anos, não sabia sequer afinar um instrumento, embora sua vida, transcorrida nas árduas lavouras de algodão, fosse saturada pela intensa sonoridade do seu povo e sua região, o lírico e romântico sul dos Estados Unidos nas primeiras décadas do século vinte. Melômano incurável, R. Johnson sofria nas lavouras sem tempo de estudar música. Fascinado pela novidade da época, o rádio, ele dizia que viver assim era, segundo seu biógrafo Carl Perkins, "abaixar o botão do volume da vida", e um dia desapareceu. Semanas depois, reaparece no distrito de Yokanapatawa, condado de Jefferson, com uma esfuziante guitarra da qual extraía acordes viscerais de um novo ritmo, o rhythm and blues, a semente de um gênero musical que revolucionou o mundo: o Rock'in Roll. Sucesso estrondoso nos lupanares da sua terra, sua ascensão foi meteórica, gravando 40 fabulosas canções que, executadas no rádio, teciam um manto sonoro e enfeitiçado ao longo do Mississipi. Tão subitamente surgiu, R. Johnson faleceu, aparentemente envenenado, três anos depois, dando azo a sorumbáticas explicações. Uma delas fala de um encontro que ele teve, em suas deambulações noturnas, com um misterioso e fétido cavalheiro. Era madrugada em uma encruzilhada. R. Johnson abriu seu coração ao andarilho que não era outro senão o próprio Satanás. Este lhe prometeu, em troca da sua alma, todos os segredos da viola. Bêbado, ambicioso e cético, Johnson aceitou e ali mesmo firmaram o pacto de sangue. O resto é história. Sobre sua morte, imagino o imundo cavalheiro visitando o músico em um quarto de hotel e lhe cobrando a alma prometida.

_Há um pequeno problema, Sr. Abraxas, que talvez invalide o nosso trato!

O fedorento esperou que R. Johnson prosseguisse seu raciocínio. Estava acostumado a todo tipo de negaceio; afinal, não fora ele mesmo quem inventara a malandragem? Décadas atrás, ele havia cobrado a alma do virtuose italiano, Niccolo Paganini, mas este era um aristocrata e não regateou como esse pau-de-fumo americano!

_ Eu lhe prometi a posse exclusiva da minha alma e temo que essa exclusividade não seja possível. Nestes três anos de virtuosismo que sua magia me proporcionou, eu coloquei toda a minha alma nas composições publicadas, nos discos gravados, enfim, nas canções que foram e são toda a minha vida! Pouco entendo o que seja a alma, mas sinto que ela é feita de ritmos, de tempo e de sentimentos, que ela é parente da música! Sinto também que, por todo esse vasto mundo, sempre que alguém tocar uma canção minha, ou outras nela inspiradas, a minha alma ali também estará e não consigo imaginar que poder exclusivo, nesta hora e circunstância, você terá sobre ela!

A questão assim formulada, contendo nela o escabroso problema do Uno e do Múltiplo, e que varreu de perplexidade o mundo dos filósofos, de Platão à Bergson, fora demais para Abraxas que jogou a toalha! Serviu sorrateiro o veneno que havia preparado, pôs fogo na guitarra e no quarto, mas não conseguiu a posse exclusiva daquela bela-alma!

Hoje em dia, um século passado, quando se ouve um visceral Rock'in Roll, é comum sentir um arrepio, um frêmito na carne, uma onda a correr os meridianos do corpo. Fala-se então em energia, intensidades, emotions, vibrations, sensations... Quanta baboseira! O que se passa, na verdade, são as unhas podres do tinhoso dedilhando, nesta hora, a alma do ouvinte que, ao vibrar em uníssono com os acordes arquetípicos de R. Johnson, dá à esse perfumado Sr. Abraxas um certo direito relativo sobre ela! Melhor seria, para nós, nestas horas, ouvir os Gospels inspirados de Mahalia Jackson!


Share this post

0 comentários :