domingo, 28 de janeiro de 2018

A VINGANÇA DOS NAZISTAS!


Uma das mais cabulosas personagens da minha infância fora o glorioso Major Crispim Douglas Corcoran Júnior.

 Ex-combatente da F.E.B. na Segunda Guerra, ele se orgulhava das dezenas de soldados abatidos na campanha, quando arrancava, dos soldados mortos, a corrente com a plaqueta usada para identificação. Como escalpo, elas eram colecionadas e exibidas com orgulho no sótão escuro junto às armas, uniformes e condecorações. Havia algo de perverso no modo como ele pronunciava os nomes gravados no bronze pelo tempo escovado: Hermann, Rudolf, Klugger, Patfinder.. Seu rosto moreno cintilava uma luz biliosa como se todo o continente africano, no major encarnado, se vingasse dos europeus colonizadores. Não menos sombrias eram as histórias por ele contadas no jardim da praça: O avião em forma de féretro que bombardeava em noites sem luar; a alma de um soldado pedindo pelo rádio que recolhessem e enterrassem seu corpo esbagaçado em alguma charneca; o clangor das balas no campanário de uma igrejinha de aldeia, badalando os sinos a cada pracinha morto... O repertório de “causos” de Crispim Corcoran parecia não ter fim, como também parecia não ter, a infância crédula e venturosa; mas tiveram. O major envelheceu e nós, com as primeiras penugens, trocamos suas lendas sinistras pelos mexericos das namoradas com suas fabulosas promessas de felicidade. O major agora vivia solitário. Sua filha havia se casado e o térreo da sua casa fora transformado em depósito de móveis usados. Vigiar todas aquelas cadeiras empilhadas, relógios descompassados e gavetas emperradas era sua ocupação de aposentado que ele cumpria com firulas, mesuras e garbo. Gostava de usar peças do uniforme sob a ordinária capa de estopa nas rondas pelo quarteirão enluarado. Não havia perigo de roubarem as mercadorias; ele poderia, tranquilamente, dormir sobre um dos sofás de puído estofado ou amarrar um cão rosnento no quintal, mas a verdade dessa deambulação pelas madrugadas era o seu medo de dormir sozinho, seu latente trauma de guerra que, após a morte da esposa e casamento da filha, acordara para lhe tirar toda a paz. Conforme confessara ao padre - e este, para toda a cidade - nunca havia dado um tiro sequer. Era intendente e administrava a cozinha, o hospital, os suprimentos... Mas gostava de rondar os campos de batalha em busca de cadáveres, alguns ainda moribundos, e arrancar-lhes do pescoço a corrente para sua mórbida coleção; com isso, a maioria dos soldados não pôde ser identificada, sendo enterrados em valas e tendo como únicas exéquias as cerimônias ao túmulo do soldado desconhecido feitas por desconhecidas autoridades. Agora, segundo a caduquice de Crispim, estes mortos o visitavam cobrando-lhe orações, flores e lágrimas que seus parentes não puderam, sobre eles, derramar. Dormir durante o dia, por um bom tempo, conjurava seus fantasmas. Embora, eventualmente, visse um rosto escrofuloso no espelho ou sentisse u’a mão gelada sobre a sua no corrimão, era-lhe fácil atribuí-los à imaginação e ao peso da idade. Seus problemas começaram quando tais fantasmas passaram a habitar os seus sonhos (para os quais, até hoje, ninguém encontrou a fechadura nem a chave!). Testemunhas afirmam terem ouvido, em pleno e solene silêncio do meio-dia, os gritos do major em pijamas se desvencilhando de ossudas mãos em seu pescoço e sussurrando incompreensíveis imprecações a ressoar no anfiteatro de seus sonhos. Na época, o telefone começava a se popularizar e duplicar os fios da rede elétrica. Sua filha comprou uma linha, instalou o aparelho sobra a cabeceira da cama e o ensinou a discar para a polícia, o hospital e os vizinhos... Solícita, ligava todos os dias na hora do almoço, para saber como ele estava se sentindo, se havia dormido bem, o que permitia à filha dedicada avaliar o estado mental do seu amado pai. Deve-se a este hábito (aqui franqueados os laços do inverossímil e do provável) e aos sonhos espectrais, o desfecho acintoso de um velho e esquecido herói da pátria. Corcoran voltava da ronda ao raiar do dia, guardava a mauser sob o travesseiro e dormia com as janelas abertas na esperança do sol espantar os indesejáveis epifenômenos da sua velhaca digestão. Alguns eram-lhe conhecidos com mais de uma dezena de aparições: o tenente Sebald com o rosto fraturado, o tronco rastejante de Paschoal Bruknner, o aviador em chamas pedindo-lhe água, caindo sobre ele e incendiando a cama..., outros apareciam pela primeira vez e o susto era medonho, levando Crispim a correr ao sótão, conferir as plaquetas, identificar o nome do espectro por não se sabe quais critérios em sua memória estiolada! Era uma nebulosa manhã de março e Corcoran se contorcia no leito umedecido em suor. Como se combinado, seus intermitentes fantasmas reuniram-se todos em um onírico sabat. Ele se viu cercado. Rostos e mãos sedentas fechava-se em seu pescoço. Ele sonhava que era jovem e estava no front, em Monte Castelo. Tentava apanhar a mauser no cano da bota enquanto sua mão deslizava sob o travesseiro. Ter encontrado a coronha da arma real ao sonhar com sua onírica duplicata só serviu para avivar-lhe o sonho feito crianças que, urinando na cama, sonham estar no mar ou na piscina e urinam mais ainda. O telefone tocou naquele exato instante. Nas fronteiras do sonho e da realidade, Crispim trouxe algo ao ouvido. Os nazistas já estavam à distância de um braço. Destravou o gatilho do telefone... a arma não parava de tocar...convidaria sua filha para o almoço... Sentiu uma mão de aço na sua têmpora... Atirou com precisão...Ao atravessar seus miolos, a bala interrompeu o indefectível “prossiga” que usava, sempre que atendia ao telefone, como recordação e homenagem ao rádio militar!
Encontraram seu corpo ensanguentado sobre a cama, logo após o estampido fatal. Metade de seu rosto parecia alegre, conversando ao telefone com a filha, a outra metade – é algo tão comum as duas bandas de nosso rosto irem se diferenciando com o tempo – parecia vibrar como se a sua alma estivesse perseguindo nazistas nos campos do além, sentando sobre eles os besouros sem asa cuspidos pela sua inseparável mauser!  
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