O filósofo francês Gilles Deleuze, costumava
reclamar, com muita pertinência, de teólogos medievais e monges copistas terem
adulterado a obra-prima do Lucrécio, o poema De Rerum Natura. De fato, a última
parte desse derradeiro cântico pagão da humanidade, retrata a peste que se
abateu sobre Atenas, onde fica bem explícita a intenção de sancionar a
celebração da “Natura Foedera”, a força criativa e amoral da Natureza (que mais
tarde ressuscitaria em Espinosa como “Natura Naturante”!). A escatologia destas
páginas finais, seu cortejo de horrores e torturas, físicas e psicológicas,
tenta ser um desdobramento e uma contrafação de toda a exuberância estival da
obra original, onde o leitor eufórico e arrebatado com a dança epicurista dos
átomos soberanos, é convidado a refletir nos castigos prometidos ao mundo sem
religiões e sem deuses; deuses, doravante, nesta obra, relegados à fantasmas
oníricos e teológicos. Esse veemente libelo do G. Deleuze, entretanto, se
revelará profundamente parcial, quando, em outras circunstâncias, ele irá tecer
verdadeiros encômios e apanágios a esta prática. Refiro-me ao seu “Um Manifesto
a Menos”, onde o poeta e teatrólogo italiano Carmelo Bene é celebrado por
transformar as obras de W. Shakespeare, com outros e justificados propósitos.
Carmelo Bene retira de algumas obras do cisne de Avon seus protagonistas, por
exemplo, em Romeu e Julieta, vemos Romeu ser morto logo no início por seu rival
Teobaldo (no original é o seu amigo Mercúrio quem morre no duelo). Com isso sai
de cena uma personagem afetada, de discurso empolado e de valores sedentários,
para dar lugar a este jovem Mercúrio, doravante representado como um sedutor
capcioso e sensual, que exalta a vida e foge - com Julieta – da lei, das regras
sociais e da morte. Recomendo a leitura destas obras fascinantes, visto tê-las
citado aqui a guisa de introdução, apenas. Tenho a impressão de que, com a
inteligência artificial, esse tipo de pastiche, quando obras são modificadas e
reescritas, conhecerá uma grandiosa efervescência que, para além da questão
autoral e da honestidade com os autores, não deixará de ser um avivamento da
Literatura e da Arte; foi com essa percepção que suspendi o juízo sobre o
aspecto moral desta prática e resolvi escrever um final diferente para esta
mesma peça do William Shakespeare. Um final curtíssimo, pois minha intenção
confessa não seria criar outra obra, independente, feito um novo galho que
brota de frondosa árvore, mas apenas cortar fora um fruto amargo que é o
suicídio das duas personagens e que, à semelhança dos teólogos que adulteraram
a obra do Lucrécio, também condeno, e apelo para tal aos dogmas cristãos da
minha fé católica. Não sei vocês, mas eu, sempre que um amor findava, eu
desejava morrer e esse gosto de morte é perigoso em uma época onde nossa
juventude vem perdendo sistematicamente os princípios religiosos e morais que
servem como freio a tal ato radical e deprimente. Apresento para apreciação a
cena final onde Julieta acorda da morte simulada pelo filtro dado pelo Frei
Lourenço, como parte de um plano de salvação dos dois pombinhos e, a partir
daí, o texto sumário e final é de minha autoria! Não me suicidem, se não
gostarem!
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Ato V, Cena III – Interior do túmulo de Julieta
(Romeu entra com uma tocha, uma pá e um ferro.
Ele aproxima-se do túmulo onde Julieta está deitada como se estivesse morta.)
ROMEU:
_ Ah, meu amor! Minha esposa! A Morte, que sugou o mel do teu hálito, Ainda não tem poder sobre tua beleza.Não estás vencida: tua beleza triunfa sobre a pálida bandeira da Morte! Ah, querido túmulo, aqui repousarei para sempre e sacudirei o jugo das estrelas adversas de sobre esta carne cansada. Eis aqui o veneno: bebida de apotecário, tua ação é rápida! Com este beijo, eu morro. (Bebe o veneno e morre ao lado de Julieta.)
(Frei Lourenço entra, com uma lanterna.)
FREI LOURENÇO:
_ Santo Francisco, acompanha-me! Que horror é este? Romeu estendido, banhado em sangue? E Julieta... acordando!
(Julieta desperta.)
JULIETA:
_ Frei Lourenço? Onde está meu Romeu? Por que essa taça em sua mão? Ai de mim! Ele bebeu veneno! Ah, cruel! Bebeu tudo e não me deixou uma gota? Beijarei teus lábios — talvez ainda reste veneno neles. (Beija-o) Teus lábios ainda estão quentes... (Ela encontra o punhal de Romeu.) ... Ah, punhal abençoado! Aqui é tua bainha — descansa em meu peito...
(Ela levanta o punhal, mas Frei Lourenço se
precipita e agarra seu braço.)
FREI LOURENÇO:
_ Detém tua mão, ó jovem desesperada! Deus ainda não selou teu destino! Não acrescente mais um pecado à tua dor!
JULIETA (luta, chorando):
_ Solta-me! Pois o mundo já não tem alento, e minha alma, ferida, anseia por se desfazer!
(Ela desfalece nos braços do frade. Ele a toma
nos braços e sai.)
CENA IV – Quarto de Julieta, na casa dos
Capuletos
(Julieta jaz em leito de linho. Ao redor, os
Capuletos e servas suplicam. Ela não fala, não come, não ergue os olhos.)
SENHORA CAPULETO:
_ Ó filha! Rosa murcha do meu ventre, por que recusas o pão e a água, dons da vida?
JULIETA (num murmúrio):
_ Romeu... Romeu... leva-me contigo...
(Ela suspira, fecha os olhos e sua respiração
finda como brisa, entregando em sono profundo a sua alma à morte avara.)
CENA V – Um limbo enevoado, lugar entre mundos (Julieta flutua em túnica leve, entre sombras e névoa. Vozes sussurram, o tempo é suspenso.)
JULIETA:
_ Romeu? Amor meu, onde estás? Chamou-me a morte com tua voz... Estás além deste véu?
(Aparece Romeu, esmaecido, detrás de uma
película translúcida como cristal bruxuleante.)
ROMEU:
_ Julieta! Estrela do meu céu findo! Teu pranto atravessou os reinos E reteve minha alma às margens do esquecimento.
JULIETA (tentando alcançá-lo):
_ Romeu! Meu bem! Dá-me teus braços! Que arte é essa que nos separa, como vidro entre amantes?
ROMEU:
_ Não toco tua mão, nem tocas a minha. Pois entre nós ergue-se o Julgamento.
JULIETA:
_ Mas eu morri, Romeu! Morri por ti! Recusei pão e sono, abracei o luto até findar a luz!
ROMEU:
_ Mas não foste tu a ceifar tua vida com lâmina ou veneno. Foste tu flor que recusou o orvalho — não quem queimou a raiz. A morte por languidez não é o mesmo que aço ou trago. Amar mais que a vida é nobre, mas não é renegar a vida!
JULIETA (em lágrimas):
_Então não somos um, nem mesmo na morte?
(A película brilha com força e braços de
fuligem brotam das sombras, agarrando Romeu.)
ROMEU:
_ O tempo finda, e a sentença me chama! Aos que quebram o dom da vida, outro caminho é traçado!
(Ele é tragado lentamente para as profundezas,
enquanto Julieta grita e arranha a vítrea barreira.)
JULIETA:
- Não! Romeu! Espera por mim! Leva-me contigo, mesmo às sombras eternas!
(Ela desfalece sobre a névoa. Súbito, uma luz
suave, como alvorada de eternidade, a envolve.)
VOZ CELESTE (em sussurro):
_Aquela que amou sem corromper a dádiva da vida, ascende onde a esperança há de florir.
(Julieta ergue-se levada pela luz, como folha ao vento do céu. Romeu desaparece nas sombras.)
CENA VI – Limbo enluarado, entre céu e sombra
(A sombra de Romeu some no abismo. Julieta cai de joelhos sobre a névoa. Silêncio. Uma brisa leve agita o véu de sua túnica. Uma presença se aproxima: é Mercúrio, em trajes de duelo, mas com olhos brilhando como os de um anjo desperto.)
MERCÚRIO
(Com voz suave, como quem retorna de muito longe)
_ Julieta…
JULIETA
(Ergue os olhos, confusa) Mercúrio? És tu? Mas… estás morto também?
Estou além da morte. Sou memória, voz e amor não confessado. Por muito tempo, amei-te em segredo — mas meu amor por Romeu era muralha que não ousei transpor. Agora, sem corpo e sem destino, ofereço-te apenas verdade. E um caminho.
JULIETA (Com doçura e assombro)
_ Falaste de amor?
_ Sim, minha flor veronense. Amor tão puro quanto o que Beatriz teve por Dante — e que por isso o levou ao Paraíso. Não mereces a dor eterna, nem Romeu o esquecimento. Se quiseres, posso guiar-te até o sétimo céu, e lá juntos, aos pés do Trono, suplicaremos redenção por ele. (As asas de Mercúrio se abrem em luz.)
_ Mas há um caminho, e ele passa pela compreensão.
Para subir, é preciso saber o que jaz abaixo.
_ Leva-me… Se há esperança, quero conhecê-la.
(Mercúrio a toma nos braços. As luzes ao redor
mudam: a névoa se abre como cortina. Surge uma vastidão circular, feita de
rochas e lamentos distantes — o Inferno.)
CENA VII – Uma galeria escura em espiral
MERCÚRIO
_Aqui Dante começou, guiado por Virgílio. Viu almas que escolheram o mal — não por destino, mas por vontade. Olha ali (aponta): esse é o rio Aqueronte. Ali cruzam os que não foram nem
bons, nem maus — apenas vazios. Viviam sem coragem de escolher. Nem o Céu nem
o Inferno os quer.
- Como sombras que andam sem chão…
MERCÚRIO
_ Exato. Mais abaixo está o círculo dos amantes. Dante viu ali Paolo e Francesca — mortos pelo irmão dela, como tu e Romeu foram vítimas de uma guerra de nomes. Mas eles cederam ao desejo sem medida. Por isso, agora, são arrastados por ventos — como suas paixões arrastaram suas
almas.
- Mas… amaram-se! Como eu amei Romeu…
MERCÚRIO
- Sim, mas o amor deve ser como chama em lâmpada — não incêndio que consome tudo. O Paraíso não nega o amor — mas deseja que ele não destrua o dom da vida. (Cena muda para o Purgatório,
onde almas sobem em espirais de luz.)
MERCÚRIO
Aqui, os que erraram, mas se arrependeram, sobem pouco a pouco. Lá está Manfredo, príncipe excomungado, e mesmo assim perdoado, por ter se
voltado à Luz ao fim. Vês? O arrependimento verdadeiro é escada.
JULIETA
- E se Romeu pudesse ter vivido um pouco mais? Talvez… também teria subido?
-Talvez, mas seu desespero foi sua queda. (Cena se eleva: estrelas giram. Chegam ao
Paraíso, esfera de música e luz translúcida.)
_ Aqui Dante encontrou Beatriz. Ela o chamou à sabedoria e à pureza.
E mostrou-lhe que o Amor, quando guiado pelo prisma do Bem e do Deus
verdadeiro, é o que move o Sol e as estrelas.
- Tudo aqui pulsa… como um coração imenso.
_ Sim. E é aqui que suplicaremos. (Ele ajoelha-se num campo de luz. Julieta o
acompanha. No alto, apenas uma presença invisível, sentida como perfume ou
brisa dourada.)
- Altíssimo Senhor, que tudo vês — Ela, Julieta, amou sem ferir a dádiva que
deste. Eu, que a amei em silêncio, apenas rogo por justiça.
E por clemência ao coração impetuoso de Romeu.
_ O amor que busca redenção por outro é o mais alto de todos. Romeu conhecerá a sombra — mas não para sempre, pois tua súplica, Mercúrio, e teu amor, Julieta, ascenderam até Nós. (Uma estrela se acende ao longe, no fundo da sombra onde
Romeu havia sumido.)
JULIETA
_ Aquela luz… é ele?
MERCÚRIO
_ É a promessa de que um dia… será.
Julieta encontra forças para acenar à estrela
que um dia fora seu amor. Com voz embargada, ensaia um peã de despedida:
JULIETA
_ Nos encontraremos, meu amado, como nuvens de
ouro em pó, nos ventos da eternidade!
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