quinta-feira, 24 de agosto de 2017

AS BATIDAS DA CAÇULETA


O pequeno povoado de Catolezinho agonizava com a seca e com o fechamento da mineração.

 O veio secou, não sem antes levar com ele toda a água do açude, na lavagem da ganga. O moradores mais novos partiram para outras terras, os mais velhos persistiram, resistindo como podiam à falta d’água e de dinheiro. Eram solidários ao extremo e se concentravam perto do cemitério que era, justificadamente, o lugar mais bem cuidado da cidade. Exceto Dona Palmira, moradora mais distante, na saída da cidade, onde cuidava de um outrora próspero posto de gasolina, hoje reduzido a um velho mercado à beira de uma estrada cada dia mais deserta. Era quase cega e um sobrinho um pouco mais novo do que ela vinha todos os dias cuidar do balcão, ajudando-a em serviços mais pesados. Do resto ela dava conta muito bem. Cozinhava, cuidava das galinhas e costurava as roupas do sobrinho sempre com o ouvido no rádio a sonhar com a vida longe do mato onde moravam. No fim da tarde ele voltava para sua casa, em uma chácara próxima, montado em uma viçosa mula, e nessa mesma montaria chegava todos os dias antes das oito da matina. Como atravessava toda a cidade montado durante o percurso, era quem trazia para Palmira notícias dos moradores do povoado, pois seus seus raros clientes, viajantes pelo ermo sertão, nada conheciam do povoado deserto. Sula, assim era conhecido o sobrinho de Palmira, amarrava o animal na porta dos fundos, entrava para o café e, enquanto Palmira, pela janela, jogava milho às aves, contava-lhe o que havia visto na véspera. Como era de se esperar, em um lugar dominado pela velhice e pela morte, as notícias mais esperadas eram doenças e morte de velhos conhecidos que não a visitavam mais. Quando era pra noticiar uma morte, Sula usava algo que parecia ser um códico entre eles, um modo de esconjuro da inominável e gemedeira ceifa-vidas:
_ O cemitério cresceu essa noite!
_ Maria mãe de Deus! – Exclamava Dona Palmira! – Quem foi dessa vez?
_ Seu Atanásio! Aquele da esquina, no antigo Sobrado de Dona Celuta!
Ou, quando parecia querer avisar que alguém estava muito doente, sussurrava:
_ O cemitério tá crescendo pras bandas de Eleutério! Já tá perto do quintal!
_ Misericórdia! Persignava-se a pobre coitada!
Afora isso, a pouca conversa entre tia e sobrinho era mesmo pachorrenta e normal. Só aparentava estarem usando um patuá, um dialeto, quando tocavam no assunto temerário. E era quase todo mês:
_ O cemitério cobriu a casa de Seu Néu! O passeio de dona Fulô tá todo inchado! O trem cresce! Ontem o muro passou por cima da casa de Dona Jovita! 
Em todos os informes, a reação era sempre a mesma, consternação e temor por parte de Dona Palmira!
Mês de novembro chegou e Sula começou a se queixar de dores por todo o corpo. Um ritual inútil e implacável de chás, escalda-pés e emplastros aplicados pela tia cuidadosa não foi capaz de aliviar o sofrimento do coitado. Estoicamente, ele parecia preparar o espírito dela:
_ O calçamento da minha rua tá todo estufado, como se um tatu gigante viesse por ali cavoucando!
E sua tia o consolava:
_ Deve ser a água que o governo prometeu! 
_ O barranco atrás da casa derrubou meu pé de jatobá. Subiu um murundu que as raízes todas estufaram!
Dona Palmira então redobrava os cuidados ao sobrinho e, quando o despachava para casa, não o fazia sem lhe aviar um embornal de pomadas e vidros de infusão, exigindo que os frascos retornassem vazios no outro dia, como prova de uso. Ambos compartilhavam pressentimentos lúgubres feito os raios do sol cruento incendiando o sertão. A última noite transcorreu sem sobressaltos, mas dona Palmira não conseguiu pregar os olhos. Acordou mais cedo, no escuro, fez café e esperou pelo sobrinho. Ouviu os cascos da mula intempestiva no quintal e a respiração do animal no trinco da porta, mas não ouviu ninguém da mula saltar. Palmira se dirigiu até a janela e abriu de fora a fora esperando com o coração partido que a luz do sol brilhasse ou que alguém falasse alguma coisa. Chamou pelo nome do sobrinho sem convicção. Nada ouviu como reposta. O animal, cego pelo hábito, tinha vindo sozinho como fazia todo santo dia. Nem sequer cogitou a hipótese de um acidente na estrada. Algum sonho talvez tivesse lhe antecipado a fúnebre novidade. Em silêncio profundo, sentindo sabe-se lá que sentimento no peito já cansado, apanhou uma vasilha com o pouco de milho que restara e saiu pelo quintal, buscando forças em chamar as galinhas que, ainda noite escura, dormiam e crocitavam. Andou pelo quintal inteiro, meio que perdida, espalhando o milho para aves mais gulosas que optaram por comer a dormir e sonhar. Se houvesse luz no local e ela pudesse ter uma visão panorâmica do local, teria visto que, em volta da casa, em ondulações suaves, um velho e estiolado muro circundava, com as grades semi-enferrujadas perto e quase da altura do telhado refletindo um ilocalizável luar. Em colinas mais elevadas, sobre o muro e do lado de dentro, podia-se ver mausoléus em granito envelhecido, cruzes de ferro e madeira, lápides e canteiros com ervas e matos. Por toda a extensão que se olhasse, onde antes era o povoado, se via agora um espraiar de túmulos e jazigos mortuários. No canto esquerdo da casa de Dona Palmira, no ponto mais próximo, a asa de um anjo de concreto, dos tempos da riqueza quando os ricos moradores ornavam seus túmulos como palácios, parecia roçar a janela do quarto da pobre idosa, como se tomando impulso em saltar e tudo cobrir com seu manto de vermes e ossos soterrados!

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