sexta-feira, 18 de agosto de 2017

O SEU CABELO NÃO NEGA, MONARCA!



     Corria o ano de 839. O Rei de França, Carlos, o Calvo, estava prestes a ser coroado Imperador do Sacro Império Romano Germânico e um detalhe pitoresco o incomodava profundamente:

não podendo cingir duas coroas nem abdicar de uma delas, a tradição recomendava que o monarca não usasse coroa nenhuma, apenas um cetro de dupla haste com as insígnias dos dois impérios e outros símbolos duplicados. O problema era mesmo a sua calvície, da qual ele sentia profunda vergonha em uma época de reis cabeludos, onde a mística dos monarcas taumaturgos sugeria que todo o poder divino de curar as escrófulas do povo com o toque de suas mãos derivava das longas madeixas. Sua cravejada coroa sempre escondera do público esse detalhe, mas agora ele não mais poderia recorrer a esse artifício. Entre seus confidentes, que eram tantos e incontáveis na populosa corte parisiense, alguém espalhou o drama pessoal do Rei, ou a providência divina - os historiadores discordam – e logo surgiu no palácio dois vikings, prisioneiros entre tantos após o cerco à Paris das tropas loiras do viking Ragnar, desejando falar com o sacro monarca. Diziam-se feiticeiros das terras geladas e mestres em conservar as vastas cabeleiras nórdicas. Juravam ser capazes de fazer os cabelos do rei voltarem a crescer em poucos dias, sob condição de serem libertados e recompensados com um belo pacote de moedas de ouro. Havia, porém, um detalhe, que os dois só contaram no ouvido do crédulo monarca: Os cabelos não poderiam ser vistos por criminosos, por pessoas que possuíssem em seu passado qualquer tipo de falta grave contra o Rei ou contra Deus. Tais pessoas, se identificadas fossem, deveriam ser sumariamente torturadas para confessar seus crimes e depois sentenciadas, conforme os ritos ordálicos e em voga na época por toda a Europa. Chegaram até mesmo a sugerir que esse detalhe não viesse ao público, para que algum criminoso distraído comentasse sobre a calvície real e assim se denunciasse. O Rei Carlos julgou muito nobre esse detalhe, mas não sabemos se adotou tal sigilo; caso contrário, deve ter partido de alguém muito próximo ou dos próprios magos vikings, pois o certo é que, tão logo o Rei fechou o acordo, todo mundo na corte já sabia desse detalhe revelador. Após algumas reuniões secretas com o monarca em seus recintos reais e reservados, após passar vários unguentos no cintilante crânio real e recitar cânticos e encantamentos em sua língua nativa, os dois magos concluíram o serviço. Esperaram cinco dias para que, segundo a opinião de todos os camareiros e serviçais próximos, nascer os primeiros e dourados pelos na cabeça de Carlos. Com um espelho, ele vasculhava ansioso para ver os fios da sua juventude e do seu poder taumatúrgico devolvidos, mas... Carlos imediatamente se lembrou do assassinato do seu irmão primogênito, nas águas do caudaloso Reno. A cena de suas mãos sufocando sob os nenúfares o pescoço daquele que era o único obstáculo entre ele e o trono de França subiu-lhe à consciência e ele, lívido com tal poder mágico da poção viking, descobriu que não seria capaz de ver os pelos dourados! Conteve o ímpeto de chorar, atenuado pelas comoventes manifestações de admiração de seus camareiros e serviçais! Todos eram unânimes em elogiar o brilho, o crescimento vertiginoso, o volume e o viço de sua futura cabeleira! A vaidade ofuscou o remorso e Carlos apertou efusivamente as mãos dos magos do Norte. Pagou-lhes mais do que o prometido e ofereceu um banquete de despedida que eles, providencialmente, declinaram alegando muitas saudades de casa e temor de viajarem na iminência de um inverno rigoroso. Restava ao rei doravante esperar algumas semanas para que os cabelos mágicos caíssem-lhe sobre os ombros. Para tal período foi combinado a cerimônia de coroação, quando ele iria marchar pelo tapete de flores da Sagrada Catedral de Reims e unir os dois maiores reinos da sua época! No palácio e no reino não se falava de outra coisa a não ser da cabeleira real crescendo mais que rabo de cavalo! Aias com finos pentes orientais de madrepérola penteavam os fios reluzentes e invisíveis ao pobre e vaidoso monarca criminoso. Perfumes eram aplicados sobre a pele onde agora estaria o mágico couro cabeludo úbere de raízes e folículos capilares. Penteados eram ensaiados com mãos mágicas aplicando cachos empoados cujo aroma o embriagava e lhe trazia doces reminiscências da infância cabeluda! Carlos quase podia enxergar seus cabelos no reflexo dos olhos de suas pajens, todas elas unânimes em afirmar jamais terem visto cabeleira tão bela e majestosa! Chegou enfim o dia da coroação. A catedral de Reims estava apinhada por nobres de toda a Europa convidada para a cerimônia. O próprio Papa João VIII viajou da Itália para a celebração e pessoalmente oficiaria a cerimônia imperial. Entre a turba apinhada do lado de fora da catedral, estava um jovem pescador de vinte e poucos anos, homem feito no mar e na solidão, sem apreço pelas cerimônias e minúcias da vida na corte! Estava ali para entregar uma partida de peixes frescos encomendados para o banquete e estava furioso por não terem lhe pago o valor combinado, recebendo apenas um terço do que seus peixes valeriam se vendidos no mercado. Todo o seu ser ressentia a mágoa do desapontamento e ele resolveu assistir na porta da catedral a entrada triunfal do monarca. Era temente a Deus e esperava que a visão de um santo regente, coroado pelo Santo Padre, viesse a aliviar o seu coração mesquinho. Juntou-se à multidão bem perto das escadarias, no máximo que seu corpulento corpo pudesse se aproximar até ser barrado pelas lanças cruzadas da Guarda Papal. Dali viu a carruagem se aproximar e dela saltar, em trajes de indescritível beleza, o valoroso Senhor de toda a França Ocidental e unificador da Europa! Carlos desceu da carruagem em sapatos de feltro azul e estolas de arminho entrelaçada por faixas de ouro. O sol matinal cintilava nos botões dourados e nos fios de prata que adornavam a gola de cetim púrpura caindo em volutas sobre seus espadaúdos ombros. Trombetas tocaram anunciando a chegada do excelso. Até o Papa, lá no alto do púlpito, no interior da catedral, pressentia pelos apupos de admiração, a beleza irradiante do novo dono da cristandade. Conforme mandava o cerimonial, Carlos descia sem a coroa, para não causar conflito de símbolos. Guardas haviam sido espalhados por toda a catedral e arredores para prender eventuais criminosos que manifestasse qualquer impossibilidade em ver sua mística cabeleira! Com tal segurança, o Rei cruzou o espaço entre a carruagem e as escadarias. O Pescador olhou para Carlos e quase foi ofuscado pelo brilho do sol em sua calva untada de cremes perfumados. O rei não possuía nenhum fio de cabelo! Calvo como uma criança recém-nascida! De onde então poderia vir o seu poder, pensou o pescador que fora criado ouvindo lendas incontáveis dos reis carolíngios, da famosa REGIS CRINITIS, as crinas reais das dinastias merovíngias e carolíngias tão cantadas por Gregório de Tours, Bernardo de Claraval, Remígio de Reims e tantos outros, mito profundo e impregnado no imaginário de todo homem medieval! Súdito leal e servo da Santa Igreja, ele não pode se conter diante de tal estupor, mas também não era nenhum garoto inocente para falar o que pensa. Também havia ouvido rumores de que pessoas seriam presas se duvidassem da cabeleira Real. No conflito de sua alma, na sua inconsciência machucada pelo episódio dos peixes e pela visão inusitada da careca gigantesca, seus pulmões formularam um grito que ele nem se lembra de ter dito. Sua garganta abriu-se sozinha e seu cérebro arredio moldou ali mesmo uma mitigação e um estratagema. Ele gritou a plenos pulmões, sem sentir que gritava:
_  O REI CARLOS USA PERUCA! O REI CARLOS ESTÁ USANDO UMA PERUCA!
O povo inteiro ao redor, após um eterno minuto de silêncio e estupor, se deixou envolver por aquele grito libertador e comovente, de uma verdade que desce dos céus camuflada de humildade e simplicidade. O povo todo começou a gritar uníssono:
_O REI CARLOS USA PERUCA! O REI CARLOS ESTÁ USANDO UMA PERUCA!
O Valoroso monarca parou um pouco nas escadarias e refletiu. Não fora capaz de interpretar o clamor do povo como uma dissimulação, uma verdade coagida e distorcida pela força real sobre a evidência da luz matutina. Pelo contrário, aquilo lhe soou como uma confirmação de seus novos e estéticos atributos. A confirmação de sua cabeleira era mesmo tão fabulosa que as pessoas se recusavam a acreditar ser real e tentavam uma explicação mais verossímil para beleza tão inaudita! Jubiloso, inflado de real orgulho e vaidade, Carlos simplesmente jogou os dedos cintilantes sobre o que ele imaginava ser volutas de cabelos leoninos, jogou o pescoço para o lado em expressão que antecipava em séculos os dândis e flaneurs do porvir, e com ar blasé, comentou para suas damas de honra e valetes:
_ INVEJA! INVEJA MATA! INVEJA CANSA A MINHA BELEZA!
E com a elegância de um Oscar Wilde precoce, Carlos, o Calvo, Charlôt, para os íntimos, deslizou sobre as escadarias feito um cervo adamantino, de lânguido e licoroso esplendor! 

UM APÊNDICE SOBRE CABELOS:

Conheci um sujeito que, quando adolescente, era apaixonado pelo movimento hippie norte-americano e sonhava cruzar a América em uma possante Harley Davidson, mas era muito pobre. Se formou, trabalhou a vida inteira e, aos cinquenta anos, ficou muito bem de vida. Podia realizar o seu sonho. Entretanto, não o fez. Perguntei-lhe se o sonho de cruzar a América havia passado. Ele disse que não, mas que tal experiência só fazia sentido com o vento soprando furiosamente em seus cabelos longos, a expressão sensível da liberdade.
_ Hoje é proibido pilotar sem capacetes! - O interrompi como de hábito.
Ele desenhou um ricto labial de falsa comicidade, tirou o boné da cabeça e me disse:
_ Não! É que não poderia mais ter a sensação de vento nos cabelos!
Era completamente careca! De fato, reflito agora, nunca vi um motoqueiro hippie em minha vida, no cinema ou na realidade, que fosse careca! Acho que, tão logo os cabelos caiam, o homem busca abrigo embaixo de um teto, trocam a liberdade pelo anseio de alguma coisa que lhe sirva de telha!
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