A princípio, nenhum dos dois dera pela presença do misterioso dom. Albano Leais tinha somente 13 anos e Lana Bittencourt, 11. Eram colegas de escola e namoradinhos em segredo dos pais. Namoravam dando as mãos no cinema da pequena cidade onde viviam, trocavam bilhetes apaixonados e ainda brincavam como crianças em uma época que a puberdade era um ensaio para a juventude e não, como hoje, um teatro sobre a infância há muito consumada.
O dom - que será o leitmotiv dessa
história - era a capacidade que Albano possuía de, usando apenas a força do seu
pensamento, sentir a aproximação de sua namoradinha e até mesmo, acreditava,
ser capaz de atraí-la para perto de si, pois que mentalizava a sua imagem,
pronunciava seu nome mentalmente e em breve, do nada, ela aparecia, fosse na
biblioteca, na lanchonete ou na quadra de esportes. Ela, por sua vez, não
diagnosticava nada estranho, embora viesse a confessar depois que sonhava muito
com ele lhe chamando e sentia um desejo profundo de sair andando ao seu
encontro! Isso nos conta seus familiares alguns anos transcorridos, quando um
episódio, que narro a seguir, destruiu o romance dos dois colegiais e os
separou para sempre, ou quase!
Durante esse período escolar, até os
15 anos de Albano, a vida foi o sonho dourado que todos nós carregamos em
nossas lembranças pessoais da primavera da vida. Viviam estudando juntos, em
trabalhos de equipe, dividindo seus lanches e segredos, tímidos e recatados sob
o olhar severo e maledicente – quase invejoso – dos coleguinhas de ambos que faziam
desse romance entre as duas crianças o modelo de amor real que eles pressentiam
e aspiravam ter um dia. Albano desenvolvia cada dia mais, como uma faculdade
orgânica que amadurecesse no mesmo ritmo de seus órgãos físicos e mentais, o
dom de sentir a presença de sua princesa, a sua localização, e interferir na
vontade inconsciente dela, fazendo-a mudar de direção como uma marionete
encantada.
Ele não falava disso com ninguém –
tentou uma vez e foi ridicularizado pelos colegas – mas sabia que coisas semelhantes
existia no mundo, pois via e colecionava relatos de para-normalidade em livros
e revistas, principalmente em magazines que seu irmão mais velho assinava, as
mais famosas chamadas Planeta e Realidade. Sabia não ser um mero delírio seu,
apenas algo sobre o qual deveria se ater em não compartilhar. Ela acreditava
nele e via nessa mística habilidade um sinal de que o amor deles era verdadeiro
e mágico, transcendendo toda explicação natural. Poderiam ter convivido com
isso com cautela, se houvesse quem fosse capaz de aconselhá-lo, mas o único
psicólogo da cidade, o Pe. Juracy Marden, estudioso do tema, sentia ojeriza só
em ouvir falar de dons paranormais e logo os atribuía aos demônios que ele
tanto se exasperava em exorcizar em sua paróquia.
E foi assim que um episódio trágico
findou por destruir aquele ingênuo e pueril amor de dois colegiais. Albano
viajou de férias por um mês com seus pais. Quando voltou, só pensava em rever
sua namoradinha. Era noite de domingo e ele estava na sua cama perdido em saudades
e já sem mais nenhuma noção das horas. Telefonou escondido, no silêncio escuro
da sala, ensaiando uma voz abafada quando a telefonista lhe solicitou o número,
mas ninguém atendeu nas três tentativas (a telefonista, de nome Glória, nunca
realizava uma ligação mais de três vezes seguidas, além de conhecer muito bem
os hábitos dos moradores). Albano Começou a mentalizar sua alma gêmea e
suplicar que ela viesse ao seu encontro, pois havia ouvido rumores de que Lana
havia ido ao cinema com outro colega deles, seu primo e rival. Ardia de ciúmes
e implorava mentalmente por uma visita furtiva. Não demorou muito e Lana
Bittencourt, vestida em camisolas diáfanas e exibindo o branco fulgurante de
seu corpo de adolescente virgem, levantou-se da cama e saiu de casa sem que
ninguém a visse, mas era um domingo movimentado com parque de diversões na
cidade e festa religiosa na paróquia.
Havia muitas pessoas nas ruas e foi
tomada de estupor que a população de Itambé-Ba viu a moça sonâmbula, nua sob
finas vestes, caminhar pelas ruas descalças, com um brilho enfeitiçado entre
pálpebras semicerradas, em direção à casa de Seu Dori Leais, pai de Albano, e
que ficava no alto de uma colina, próximo ao hospital. Alguém logo avisou aos
solícitos moradores que quiseram amparar a moça, ser ela uma sonâmbula e que
seria muito perigoso acordar alguém nesse estado. Uma lua curiosa empurrava a
cortina das nuvens de prata para ver a cena. Resolveram então segui-la, alguns
indo na frente para lhe evitar um tropeço qualquer embora ela, resoluta e
arrebatada, caminhava com determinação. Por conta de uma perversa coincidência,
afluíram ao mesmo tempo na Praça Municipal os fiéis voltando da missa, os
foliões do parque de diversões e o público saindo do cinema, formando uma
caudalosa e curiosa multidão. À frente deles, feito uma Joana D’Arc possuída
pelos demônios de Gilles de Rées, a inocente Lana, virgem e galvanizada por um
mistério de amor que ela era incapaz de entender, sonâmbula e provavelmente
ouvindo em sua mente os apelos taumatúrgicos do seu jovem amado, seguia com
passos obstinados, subindo a ladeira do Hospital como uma noiva espiritual!
Assim que chegou no grande e antigo solar onde vivia a família do seu jovem
Romeu, Lana se dirigiu ao lado da casa, vencendo uma velha grade enferrujada
que protegia o jardim e, sob o olhar atônito de todos, se ajoelhou na janela do
quarto de Albano e gritou seu nome, declarando-lhe em voz alta e vinda das
profundezas do sonho, o seu amor e a sua fidelidade. Em seguida desmaiou. A
tempo de sua mãe e uma irmã, avisadas por alguém, chegasse para ampará-la, sob
os olhos atônitos e vampirescos de Albano na janela, ainda sem acreditar que
ela viesse dormindo ao seu encontro e que houvesse aquela multidão de olhos em
frente do jardim a lhe olhar com inquietante assombro e consternação. No dia
seguinte, não se falava em outra coisa na cidade. Lana Bittencourt dizia não se
lembrar de nada e seus pais providenciaram rapidamente uma transferência da
menina para outra cidade. A explicação de Albano de que era capaz de hipnotizar
sua namorada a distância e manipular sua vontade foi imediatamente lançada ao
descrédito pelos adultos céticos e, aproveitando a ausência providencial da
garota, foi logo aventada a hipótese de uma tramoia, uma cena farsesca e
zombeteira dos dois adolescentes para causar espécie e conjurar o tédio da vida
modorrenta de uma pequena cidade no interior da Bahia! Em duas semanas o
assunto foi esquecido. No final do ano, os pais de Lana Bittencourt se mudaram
da cidade, indo para o local onde sua filha morava com parentes. A casa foi
posta à venda e ninguém mais falava da linda e encantada moça que, à semelhança
da ninfa Eco, vagava certa noite ouvindo a voz de seu amado Narciso e
emagrecendo de amor até ficar só a voz a chamar por ele! Pelo menos era assim
que Albano a imaginava, pois ainda era capaz de sentir sua presença no
pensamento, ou o coração, pois até hoje ninguém descobriu ainda onde fica a
sede da alma. Não apenas sentia sua presença, ou melhor sua ausência, na forma
de um grande vazio onde antes ela brilhava, como era capaz de ouvir seus
clamores por ele vindos desse locus. Mas o bom senso da vida cotidiana, dos
pais e da sociedade, da vida que segue, lhe fez controlar esse dom e até mesmo
adormecê-lo. Não respondia às assim chamadas mensagens telepáticas da sua
desaparecida namorada. Jogou fora as revistas de mistério e para-normalidade.
Virou jogador de futebol, concluiu o ginásio e foi trabalhar no Banco do
Brasil. Era como se o abandono do seu dom sobrenatural implicasse também na perda
do amor e, como arremate e tampo de caixão, morresse também para a vida, pois
sabemos todos que ninguém pode viver no sentido elevado da palavra sendo
bancário e jogador de futebol em uma cidade do interior. Namorou outras
garotas, conheceu o sexo e as mulheres de vida, tornou-se um beberrão nos fins
de semana, comprou uma casa, um carro e se casou. De sua amada Lana
Bittencourt, nunca mais teve notícias, nem mesmo de seus familiares. Sabia que
seu dom ainda dormia nos recessos profundos do seu coração, mas forças vitais e
imperativas haviam lacrado os portões para esses labirintos que só ficam
abertos na infância! Somente quando bebia um pouco mais é que um arremedo de
nostalgia, feito uma sublime paisagem dentro de um vidro de areia colorida que
se vende nas praias do Nordeste, amolecia seu coração e ele suspirava por sua
doce fada! Nesses raros momentos ele a sentia e, com ela, o seu amor pulsar.
Era capaz de localizar no espaço o lugar onde ela hoje morava e até mesmo
voltar a chamá-la; mas não chegava a esse ponto. Tinha agora o que todo adulto
tem e nenhuma criança jamais tivera: o medo de enlouquecer! Assim, como um
vídeo em time-lapse, com nuvens passando vertiginosas e o dia e a noite se
sucedendo no céu com tal velocidade que parece piscar, passaram-se 30 anos!
Albano ficou viúvo e se aposentou como inválido por alcoolismo e tabagismo.
Os moradores mais antigos de Itambé
ainda devem se lembrar dele andando de uma ponta a outra da rua do Asfalto,
onde morava, próximo da rua dos Artistas, em eternas caminhadas solitárias
fumando um cigarro atrás do outro. À noite bebia furiosamente, dentro de sua
casa na esquina com a prefeitura, ouvia elepês de vinil em uma potente vitrola
e assim ia vencendo suas noites solitárias. É de se supor que estivesse outra vez
entregue ao seu misterioso dom e ao amor por ele alimentado (ou vice-e-versa,
pois em toda a sua vida nunca mais esse dom se manifestou em qualquer outro
tipo de relacionamento, nem mesmo com a sua esposa com conviveu por quase três
décadas). Seu dom era exclusivo de Lana Bittencourt e talvez o dom fosse, ainda
que inconsciente, um poder que emanasse dela, se tivéssemos notícias de que fim
ela levou e se outros namorados experimentaram esse estranho dom ao se
apaixonar por ela. Disso Albano nada podia saber, mas, sentindo por toda a vida
essa presença da sua ausência - que bem poderíamos chamar de uma forma
transcendental de sentir a saudade (são tantas as faculdades humanas ainda por
mapear!) -, Albano acreditava que ela nunca mais amou ninguém como o amou, e a
forma virginal e idealista com que viveram aqueles anos dourados da infância,
longe de empalidecer o amor, era justamente o que lhe dava essa pátina de
eternidade, algo sentido e jamais consumado em seus corpos ainda imaturos, como
uma tempestade estacionária que nunca chove mas enche as tardes de relâmpagos e
trovoadas. O que fosse que ele pensasse sobre isso, o certo é que Albano Leais,
aos 50 aos de idade, decidiu ir ao encontro da única mulher que ele amou em
toda a sua vida. Não cogitava, a princípio, voltar a seduzi-la, consumar o
amor, casar... Tudo isso ficava no plano das fantasias, para as quais sua
imaginação muito pobre e corrompida pelo vício ressentia-se incapaz! Queria
vê-la! Ouvi sua voz! Contemplar os efeitos do tempo e, nestes, o efeito
transitivo sobre o amor! Tomada essa decisão, restava-lhe voltar a exercitar o
seu dom e meditar como fazia na infância, suplicando pela presença da sua
amada, mas para isso deveria deixar o amor renascer e não apenas ser movido
pela curiosidade que tudo mata. Voltou a pensar sistematicamente em Lana
Bittencourt. Como uma fera aprisionada que reluta em sair no dia que lhe
abrimos a porta da jaula, demorou um pouco para ele sentir a existência de sua
amada como um nó na escuridão da sua mente, algo que lhe parecia pressionar os
limites dos seus sentidos e que possuía uma marca absolutamente idêntica aos
antigos toques de suas mãos delicadas, dos seus beijos na sua face, do seu
sorriso infantil e gargalhada de anjos peraltas, sem, contudo, ser nada disso!
Bastou-lhe duas noites bebendo e ouvindo boleros na madrugada fria do seu
quarto, para sentir a direção exata e a distância precisa da sua localização,
feito essas aves migratórias que nunca esquecem o caminho de casa. Abriu um
estiolado mapa sobre a cama, iluminado apenas pela baça luz do luar que entrava
de contrabando por uma gelosia na janela do quarto. Seu dedo parecia o dedo de
um médium em transe a correr sobre o mapa até parar sobre uma pequena cidade no
extremo sul da Bahia. Abriu os olhos e confirmou o lugar. Tão perto dele! Esse
tempo todo ela estava logo ali! Imediatamente, como se também teleguiado, seu
olho subiu até o alto do seu guarda-roupas onde uma velha mala repousava e
parecia querer cair sobre o assoalho do quarto, desesperada para viajar! Era de
se esperar que um dom dessa natureza lhe fizesse voltar para as coisas do
espírito, do desconhecido e misterioso, mas justamente para se poupar da ferida
viva de um amor interrompido é que ele fechara todas as possibilidades para
tais aventuras. Era um cético, um ateu empedernido e se teve a delicadeza de
visitar o túmulo de sua esposa antes da viagem, foi apenas para aliviar o
sentimento de culpa por nunca ter correspondido ao amar que ela lhe dedicara,
simplesmente por não poder amar mais ninguém após Lana Bittencourt, e não por
ser o homem rude e insensível que se transformara fazendo da estupidez uma
couraça ou, como se diz no popular, das tripas, coração! No cemitério, em
frente ao túmulo de Maria Honorata, sua distinta esposa, ao ver u’a mulher
pondo flores no túmulo do marido e, ao cruzar com ele, exibir nos olhos
marejados a saudade e o amor que ainda nutria pelo esposo falecido, Albano
fraquejou e quase chorou, pois aquele amor ele também poderia ter tido e tal
amor certamente teria dado calor e sentido a sua vida, mas ela, a vampira, por
assim dizer, a pobre Lana Bittencourt, não lhe permitia mais amar alguém senão
ela! Tomado de remorsos, mágoas e amores confusos, ele embarcou para a Cidade
de Alcobaça, no Sul da Bahia e, muito provavelmente, usando nessa monótona
viagem de ônibus essa panóplia de sentimentos acima descritos como uma
estratégia para administrar seu propósito insólito e a loucura da sua viagem
sentimental. Levava no bolso uma garrafa de uísque e tomava um gole de quando em
vez, ocasião em que entrava “em alpha” (gíria pseudocientífica para um estado
mais elevado de meditação) e confirmava nesse instante a presença de Lana cada
vez mais forte à medida que o ônibus se aproximava! Não fazia a menor ideia do
que iria falar com ela, talvez nem falasse nada, se contentando em olhar,
segui-la pelas ruas, ou mesmo trocar uma rápida palavra cordial sem se
identificar. Pensava assim provavelmente para administrar seu delírio etílico,
pois, muito provavelmente, ela viesse a identificá-lo e até pressentir sua
presença, supondo que ela houvesse de alguma forma permitido que aquele dom
secreto entre os dois viesse a evoluir! As mulheres são capazes de tudo, no
amor, na guerra e até mesmo nos mistérios da para-normalidade. Era meio dia quando
ele viu o ônibus estacionar na rodoviária pachorrenta de Alcobaça. Devido ao
verão em curso, havia certo movimento de turistas, hippies artesãos e guias
oferecendo pousadas paradisíacas em cartazes. Ele preferiu caminhar até o
centro e escolher um hotel barato, destes onde se hospedam caixeiros viajantes.
Podia, se quisesse, ir direto até o local onde sabia estar o seu primeiro amor,
ou pedir que ela viesse, mas só o fato de estar vivendo essa possibilidade, 35
anos transcorridos, enchia de glamour e colorido sentimental sua anódina vida
de bancário aposentado. Por enquanto, ia curtir um pouco essa estranha e
deliciosa sensação. Encontrou um hotel barato no Centro da Cidade e subiu para
tomar um banho. Devido ao horário, não havia mais serviço de quarto, e ele teve
que descer para almoçar em um escuro refeitório nos fundos do hotel. Um
resfriado renitente havia lhe roubado todo o olfato e ele quase não sentiu o
sabor dos pratos picantes e dos frutos do mar servidos generosamente, apenas e
muito vagamente, o cheiro da maresia que varria o fim da tarde. Deixou uma boa
gorjeta e se estranhou da sua generosidade. Dali foi andando sem destino pelos
becos da pequena cidade, procurando não chamar muito a atenção de seus
desocupados moradores.
Em uma esquina próxima ao mar, um
aprazível bar avarandado convidava-o para um trago. Ali ele sentou-se e pediu
uma cerveja. Sentia a presença de Lana Bittencourt quase como sentimos a
presença de alguém em nossas costas dentro de um ônibus. Mais uns tragos e
tomaria coragem de ir até ela, se render ao irracional e sentir a força daquela
quimera que parecia agora a única coisa relevante e extraordinária, coisa esta
que, mesmo adormecida, lhe deu coragem para viver toda uma vida modorrenta, sem
nenhum objetivo ou propósito. A portas do misticismo e da sobrenaturalidade
nunca fora definitivamente fechada e ele iria agora abrir. No fundo do bar
alguns homens jogavam cartas e o convidaram. Ele relutou um pouco, mas quis ser
cordial e fazer amigos no lugar. Em poucas rodadas, com cerveja e conhaque
servidos com liberalidade, estava bastante animado, conversador e perdendo
quase todo o dinheiro que havia trazido consigo. Quase havia se esquecido da
sua efêmera namorada perdida no tempo, desbotada lembrança de um sentimento
quase evanescente, feito um cadáver exumado de um parente prestes a se tornar
irreconhecível, mas ainda identificável por um queixo saliente, uma testa
redonda ou uma deformação discreta no osso de uma perna... Conseguindo ganhar
algumas rodadas no jogo e recuperando o suficiente para tornar apostar e tornar
a perder tudo, Albano Leais esticou a diversão até noite adentro, já com um bom
público ao redor da mesa esperando para ver o resultado de tal empreitada. Em
certo momento, não tendo mais nada para apostar e querendo recuperar o dinheiro
perdido, teve uma ideia espetacular, ou pelo menos assim a julgou, bêbado que
estava: Lembrou-se da noite trágica e das circunstâncias em que vira sua amada
pela última vez. Sabia e sentia que poderia fazer de novo e desta vez, adultos,
ninguém poderia censurá-los, nem a ele nem a Lana. No máximo, ela iria achar o
contexto sordidamente anti-romântico, mas quem disse que ele havia perdido o
medo de amar? Talvez até quisesse causar um novo escândalo, afinal, “Every man
killed that’s love”, cantava em sua menta bêbada a divina Jean Moreau dos seus
discos de vinil!! Desafiou os jogadores da mesa com uma aposta: Seria capaz de,
usando apenas a força do seu pensamento, fazer com que uma mulher da cidade,
provavelmente muito conhecida de todos ou de alguns, entrasse pela porta do
bar, sonolenta ou acordada, mas vindo diretamente ao seu encontro como se
hipnotizada e se sentaria ao seu lado. Com um certo estupor e ceticismo, os
jogadores concordaram, desde que fosse alguém conhecida deles, alguém que não
deixassem nenhuma margem de suspeita para uma eventual farsa! Foi o peteleco
que Albano precisava. Pôs os braços sobre a mesa, a cabeça sobre os braços e
começou a pensar fixamente em seu doce fantasma do passado! Quem dera fosse eu
um Malcolm Lowry para falar sobre o amor no coração de um bêbado, como o Consul
inglês apaixonado por sua ex-esposa que o traíra, não podendo viver sem ela,
mas também não podendo perdoar a traição, e enterrando na bebida o paroxismo do
seu coração.
Em páginas memoráveis do romance A
Sombra do Vulcão, o cônsul vaga pelo México, no feriado festivo do Dia de
Finados, bebendo tudo que encontra e morrendo de amores por sua esposa Ivone, à
sombra do vulcão Popocatépetl que ameaça a todo instante entrar em erupção. O
vulcão vem a ser o coração do pobre alcoólatra e o seu coração entra em uma
erupção de amor e morte e desolação, com as caveiras macabras e histriônicas da
festa popular mexicana servindo de alegoria para o sofrimento do pobre esposo
traído. Felizmente não há vulcões na Bahia e o nosso Albano Leais, com a
platitude de uma praia e a alma rasa como uma piscina natural, vivia aquele
momento quase como uma brincadeira surrealista. Mesmo assim, com a seriedade de
uma criança brincando, entregou-se com fervor à evocação do seu simulacro de
amor shakespeareano. Chamou pelo seu amor como quem grita com a alma na
escuridão de uma mônada sem janelas. Providencialmente, a vitrola do lupanar
tocava uma doce canção do Steve Wander, “I Just Called to Say I Love You!” e
isso o inflamava com a inocência de outrora e a esperança de quem morre
suspirando por um anjo. Sentiu que ela ouviu seu chamado. Sentiu que ela
tentava se mover! Aquilo fez seu coração disparar. As pessoas ao redor
perceberam seu tremelique e lhe ofereceu um gole de conhaque que ele bebeu de
olhos fechados, pelo lado da boca e com a cabeça virada sobre os braços como se
possuído por alguma entidade! Sua dificuldade estava mesmo em fazê-la se mover
do local onde se encontrava, talvez um jardim, pois sentia a presença de flores
e ambiente silencioso. Talvez o intervalo gigantesco desde a última vez que
fizeram esse tipo de contato tenha enferrujado alguma portinhola nos vestíbulos
de suas almas, ou ela estivesse sedada por algum calmante tão comum nos dias
hodiernos. Mas enfim... conseguiu! Sentiu o exato instante em que ela se moveu
com o firme propósito de vir ao seu encontro. O rosto de Albano esboçou um leve
sorriso e ele murmurou seu nome baixinho, como se ainda fossem as crianças
dedicadas ao amor sempiterno, como se ainda houvesse a rivalidade entre suas
famílias que este escritor, relapso e apressadinho, findou por não descrever no
início desta breve narrativa. Agora era só entre eles. O tempo fora expulso e
com ele todas a crueldade da separação, todas as degradações físicas e morais.
Eram novamente anjos se amando com a pureza espiritual que só o paraíso pode
conhecer de fato! Lana Bittencourt se movia cada vez mais rápido. Vinha quase
feliz se é que podemos acomodar a felicidade e alegria no lombo inquietante da
curiosidade que lhe galopava! Ele sentia todos os sentimentos dela ainda vivos
e pulsantes, mas como havia crescido seu amor e veneração! Como o tempo, para o
verdadeiro amor é ventania que alimenta as chamas e não a brisa que apaga as
paixonites! Por falar em ventania, foi justamente uma delas, vindo do
misterioso oceano quem precedeu e anunciou Alba Bittencourt, fazendo as janelas
destrambelharem, derrubando copos, salpicando areia nos olhos dos curiosos ao
redor como se ninguém tivesse o direito de ver tão divina cena preanunciada. Um
vento tão furioso que, ao girar dentro do salão ao redor da mesa, onde Albano
em transe chamava seu nome, desta vez em voz alta, quase gritando, conseguiu
distorcer os gritos dos jogadores e pessoas presentes, transformando-os em
gritos de espanto e terror o que certamente era pura e arrebatadora admiração.
Para seu espanto, Albano não conseguiu mais abrir os olhos, pois, como sempre
desconfiou, o dom era mesmo dela que, na época, inconsciente, não sabia possuir
o poder de rastreá-lo sempre que este pensava nela! Agora, certamente, ela
estava ciente do seu poder e o manipulava com primor! Como deve ter sofrido sua
amada ao tentar usar esse dom e ele ter bloqueado todas as tentativas, se
proibindo de pensar nela desse modo tão meditativo e singular, mas que
importância teria isso nessa hora encantada em que ela estava quase roçando
seus cabelos dourados no seu ombro? Sentiu que ela se sentara no braço da
poltrona onde ele estava. Ele teve confiança absoluta e nenhuma agonia por
estar imobilizado e sem poder abrir os olhos. Conhecia a força do amor e de
suas inúmeras formas de se manifestar. Estava subjugado e entregue a esse
momento que justificava toda uma vida estiolada e até mesmo afugentava o medo
da morte! Esperou que a mão dela tocasse seus cabelos a qualquer momento. Nem
se lembrava mais do jogo, das pessoas provavelmente afastadas dali por algum
encantamento adjutório. Ouviu ela chamar seu nome com a mesma voz e, apesar do
resfriado e da noite inteira bebendo, conseguiu também sentir um cheiro acre e
desagradável. Foi lhe dado autorização para abrir os olhos, ou fora o cheiro
horripilante que quebrara o encanto. Abriu os olhos e viu ao seu lado o
esqueleto fétido e em andrajos de um cadáver sentado no braço da sua poltrona e
tentando, de modo histriônico, pronunciar seu nome entre os ossos da mandíbula
e dentes amarelados pelo tempo. Desmaiou incontinenti sobre o piso de cimento
vermelho do sórdido lupanar ao tempo que uma nuvem negra encobria o vigoroso
luar sobre o mar amaldiçoado do lado de fora! Lana Bittencourt, tão logo se
mudara para Alcobaça-Ba, para casa de uma tia e após aquela cena patética do
hipnotismo, entrara em profunda depressão e se suicidara seis meses depois do
ocorrido. Sua alma, como toda alma de suicidas, proibida de ascender aos céus e
tendo que penar aqui na terra, passou décadas esperando dentro do caixão a
vinda do seu príncipe encantado! Dizem os moradores do lugar que Albano
enlouquecera, virou um mendigo e vivia na periferia da cidade, vivendo como um
selvagem e ermitão. Em noites de lua-cheia, turistas que ali aportam para
contemplar o espetáculo das baleias jubarte próximas do arquipélago de
abrolhos, ouvem um canto lancinante vindo do mar que julgam ser o canto
voluptuoso das baleias se acasalando, enquanto alguns, mais supersticiosos,
falam que são os gritos de amor da alma de Lana Bittencourt suspirando pelo seu
condutor, o psicopompo Albano Leais!
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