segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

UM CORNO NO ALÉM!



Borjala da Fármacia era como o próprio nome sugere, o farmacêutico oficial de Itambé. Viúvo havia três anos, não voltara a se casar tanto nele persistia o amor que devotava à esposa de outrora, Aninha Gusman. Sua casa e farmácia ficava perto do cemitério municipal, simbolicamente, o último remédio antes do caixão, em frente ao bar de Tranchinxin, O Último Trago! Dizem as más línguas que ele morava ali para ficar perto da sua amada, o certo é que, nos fundos da casa passava uma trilha de terra nua e mamoneiras que findava no ossário do cemitério, por onde passava eventualmente os coveiros com sacos sabe-se lá de quê! Na janela, de frente para essa vereda, em um frio entardecer, ele tomava o seu mingau quando viu passar a sua finada esposa, Aninha. Ele larga a colher e corre pela vereda entre os entulhos. Ela veste um corpete de imaculado linho e mantém o rosto semi coberto.
_ Não estás morta a três anos? - Consegue falar como se estivesse sonhando.
Sua esposa balança a cabeça, em silêncio. Ao seu lado está o antigo médico da cidade, Drº Roderick. Este parece muito mais jovem do que ela embora tivesse morrido nove anos antes dela e fosse mais velho. Seu manto é de linho amarelo e seu semblante é grave, tenso até. Segura e arrasta uma longa bengala de ferro e geme ao se sentar sobre uma pedra ao luar. Os dois são sobrenaturalmente belos apesar das bochechas murchas e brancas. Roderick havia sido o primeiro namorado de Aninha e Borjala sentiu um laço profundo entre os dois:
_ Na verdade, não amaste aqueles que amaste depois deste? –
Apontando temerariamente com o queixo para o defunto austero.
_ Não!
_ Não me amaste?
_ Não!
_ Sempre preferiste um morto à um vivo, mesmo quando viva?
_Sim!
_ Porquê?
Aninha se cala. Seu viúvo insiste, mas a defunta lhe da as costas e toma o caminho do cemitério. Seu rosto está extraordinariamente radiante. O médico se levanta apoiado na bengala e a segue. Parecem deslizar como um vapor sobre os tufos de mato seco. O farmacêutico se precipita e corre até conseguir fechar o caminho entre o muro e um barranco, pondo-se na frente do casal. Ergue os punhos, chora, sente uma inveja profunda do silencioso médico, misturada com um medo instintivo de dele se aproximar. A lua se esconde e uma coruja pia providencial. Ele impede sua esposa morta de passar. Reúne forças e lhe faz a última pergunta:
_Me explica porque nunca me amaste como amaste ao Roderick, e eu lhe deixo passar!
Ela o encara e seu olhar focado pela perspectiva da morte é coisa que ninguém poderia suportar. Borjala treme até os ossos mas não cede!
_ Me diga, meu amor! Porque não me ama mais?
O rosto de Aninha se esconde mais ainda sob o manto como se falar com os vivos fosse algo proibido e perigoso. Sua voz é mais fria que água de moringa, sem, contudo, refrescar quem a ouve:
_ Eu tinha mais prazer na companhia desse morto, mesmo por um minuto, mesmo que em pensamento, mesmo mastigando sem fim em minha boca o segredo deste nome, do que por dez anos nos teus braços, mesmo quando eu era feliz nos teus braços!
Borjala soltou um quase miado de dor e sentou-se no chão frio. Aninha tomou a mão do soturno espectro ao seu lado e juntos atravessaram o muro caiado. A coruja teve medo de piar e ele ali ficou por um tempo incontável. Seu sofrimento agora não era mais por ela, sua esposa adorada, estar morta, mas sim por ela estar morta de amor por outro morto a quem ela se entregara antes de conhecê-lo. O ciúme, sentimento naturalmente mórbido, agora franzia as bordas do sobrenatural. Tornou-se por isso um homem de uma tristeza macabra. Não queria mais viver, sempre nunca quisera, mas, a partir dessa noite, também não queira mais morrer, pois sabia que iria eternamente presenciar o amor dos dois defuntos invejáveis! Seu último e desesperado gesto fora dormir, dormir para sempre um sono pesado e sem sonhar. Sua rotina a partir dessa data até os dias de hoje consiste em acordar, tomar umas breves e rotineiras providências, em seguida, na farmácia que sua filha administra, preparar um coquetel de soporíferos que lhe faz dormir pesado o dia inteiro, de onze horas da manha até as seis do dia seguinte. O cretense Epimênides passou quarenta anos dormindo dentro de uma gruta, na Grécia arcaica, falando com uma deusa, e, ao sair de lá, tornou-se um poeta memorável. Temos o direito de esperar pelos versos melancólicos e penados de Borjala da Farmácia! 

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