quarta-feira, 10 de junho de 2015

O AMULETO


Morávamos em um velho e imponente casarão que pertencera à família da minha esposa, o Solar da Castanheira, a dois quilômetros da pequena cidade de Liberdade-Ba, de onde podíamos ver suas chaminés tremeluzindo durante as manhãs e as andorinhas bailando em seus telhados ao por do sol. Um impreciso pomar que começava ao lado da casa e ia se prolongando sem ordem e limites até a margem de um rio, a ponte sobre ele e um cemitério era tudo o que nos separava da cidade. Muitas vezes fiz esse percurso a pé, do Solar até a feira no fundo do mercado municipal, quando era um simples jardineiro e encarregado de serviços da família Rigoletto. Hoje, após ter me casado com a única filha deles e me tornado dono de todas as terras e propriedades, quase não vou à cidade e, quando o faço, uso um dos três automóveis que possuímos. Dono de tudo não é exatamente o termo correto, pois somos casados com separação de bens e só em caso de morte de minha esposa é que eu seria mesmo o verdadeiro proprietário. Ela me amava nessa época. Eu era belo, rude e de uma inabalável autoconfiança, como um intuitivo estudante ciente do seu sucesso com as garotas do colégio. Seu amor por mim durou toda a sua vida e eu aprendi a conviver e ser amado sem arroubos ou grandes desavenças. Confesso que não a amava e que o sonho torpe de ser o dono de tudo aquilo, das terras em que minha família fora serva durante décadas, era o motivo maior de estar casado. Não que ela me desagradasse... Mas não saberia falar com honestidade de meus sentimentos em relação a um ser tão mutante e imprevisível como as mulheres. Além do mais, não é um romance o que tento escrever, e sim o registro de um episódio que, a cada dia que passa, ganha mais relevância em minhas recordações, ainda que eu não o tenha levado muito a sério quando ele ocorreu. 

Corria o mês de junho e estávamos todos envolvidos com os festejos tradicionais dessa época, quando ela teve que viajar às pressas a visitar uma tia moribunda em Salvador, deixando em suspenso se iria voltar a tempo para as festas juninas. Levei-a ao aeroporto de uma cidade vizinha e me despedi lhe prometendo que tudo estaria pronto para quando ela retornasse. Voltei para casa e assim o fiz. O arraial ficou uma belezura, mas ela não pode voltar a tempo. Festejei mesmo assim e me esbaldei nessa festa. Era aproximadamente cinco horas da manhã quando me despedi do último convidado e voltei da porteira para apagar as luzes. Era solstício de inverno e tão cedo não iria clarear. Mal passei perto da fogueira e tomei um susto medonho ao ver uma senhora tentando se aquecer na brasa adormecida sob as cinzas da fogueira, onde há pouco, crianças se divertiam soltando fogos. Mesmo encurvada, parecia ter quase dois metros de altura e seu dorso giboso, coberto por um longo manto encarnado, tremia, apesar de não haver vento algum. Antes que lhe dirigisse a palavra, ela segurou em meu braço e me pediu algo para comer. Não tive como negar. Nem cogitei. Embora bastante embriagado, senti a lucidez que acompanha os fenômenos sobrenaturais me assaltar. Fui até a sala e apanhei uma bandeja de comida típica junina e lhe ofertei. Ela pôs tudo dentro de um embornal. Eu não ousei fazer nenhuma pergunta. Ela me olhou com os mais tristes olhos do mundo e, estendendo sua cadavérica mão, me ofereceu um pequeno chifre de caititu, com três cortes laterais e preso a um cordão de prata. Disse-me para fazer três pedidos quaisquer segurando aquele amuleto que seriam eles prontamente atendidos. Tomei aquela superstição como um bom sinal de que ela estava indo embora e a acompanhei com os olhos hipnotizados no seu vulto pela estrada onde a noite persistia em reinar embora o dia já raiasse nas laterais da estrada. Dormi ali mesmo na varanda, em uma rede perto do calor e acordei meio dia com o sol queimando-me o rosto. O amuleto estava no bolso, mas só atinei para ele muito mais tarde e considerei o estranhamento daquela visita e do amuleto como efeitos da bebida que ingeri a noite inteira. 

Os dias se passaram. Acostumei-me ao “dulce far niente” sem a minha esposa fleumática a organizar a minha vida e os afazeres da propriedade. Mas ela enfim, após uma sensível recuperação da tia adoentada, resolver voltar para casa. Dessa vez de ônibus; e na véspera da sua chegada, após confirmar seu embarque, resolvi dormir mais cedo para ir apanhá-la logo de manhã na pequena rodoviária a cinco quilômetros da nossa casa. Não consegui dormir. Um estranho frenesi agitava-me a alma. Fora preciso ficar quase um mês distante da minha esposa para descobrir o que eu realmente queria. Desculpem meu cinismo em contar assim, de modo tão íntimo, o meu torpe desejo: queria, ou pelo menos foi o que pensei na hora, ficar livre dela, sozinho como um misantropo monarca, dono de todas aquelas terras sem fim! Não me recordo que pretexto eu usei para apanhar no fundo da gaveta o amuleto da estranha e segurá-lo crispado entre meus dedos. Olhava para a ponta de marfim da presa entre meus dedos gordos e suados e mentalizava, sem coragem de articular, sequer labialmente, a minha súplica:



_ EU QUERO QUE LUBIANA MORRA! EU QUERO QUE LUBIANA MORRA! EU QUERO QUE LUBIANA MORRA!

- Com esse pensamento obsessivo se espalhando no espaço como ondas em um lago, adormeci mergulhado em um sono lorpa e pestilento onde animais selvagens copulavam na mata virgem em guinchos guturais! Acordei com o telefone se sobressaindo aos estrídulos insanos do sonho. Atendi com um pressentimento e quase desmaiei com a notícia: O Ônibus havia sido assaltado! Houve pânico e, entre as três vitimas fatais de um tiroteio, estava a minha esposa, cujo corpo me esperava em um hospital próximo ao trágico incidente. Saí em disparada, sem trocar sequer a camisa do pijama e viajei ao seu encontro com a alma dilacerada. A dor e o remorso intercambiavam em meu peito seus trapos pontiagudos de crua realidade. Ora o acidente não passava de um trote, um engano, e a culpa por desejar a morte dela me angustiavam, ora ela estava mesmo morta e não haveria espaço para superstições ou crendices nesta aziaga coincidência em torno daquela fatalidade! Peço desculpas para saltar a descrição do enterro e da melancolia que se apoderou de mim nos meses que se seguiram à minha estúpida viuvez. As paixões tristes, mesmo quando apenas rememoradas, seqüestram meu discernimento e me deixam confuso. Sei que sofri muito, e o arrependimento calcado na superstição daquele amuleto começou a me torturar cada dia mais. Com o tempo passei a acreditar que eu a amava de fato, talvez uma forma inconsciente de atenuar o remorso, aceitando minha participação criminosa no ato e me tornando um crédulo em obscurantismo e malefícios. Chego inopinadamente ao desfecho desse breve e doloroso relato. 
Era o dia do seu aniversário e durante toda a manhã não parei de pensar em Lubiana. Nuvens escuras escorriam vertiginosas pelo céu de abril. A fazenda estava deserta, pois era domingo e os funcionários folgavam junto aos seus familiares. Esquentei meu almoço no microondas mas não comi quase nada e após um sono inquieto na rede, tomei um banho e fui visitar seu túmulo no cemitério. Quatro anos que ela havia morrido no trágico assalto, mas Pistolin, seu cão, ainda se lembrava dela e foi comigo no carro, com expressão condoída na cara, assim imaginei. Os poucos minutos em silêncio que passei ao lado do seu túmulo me fizeram descobrir o quanto eu a amava, e o quanto tentei esconder isso de mim mesmo sob a fácil máscara de um avarento. De volta para casa, passei o resto da tarde na janela, sob a luz que agonizava, fitando o túmulo de Lubiana com uma luneta. Não sei bem por que, mas suspeitava de que ela houvesse me traído e que, no dia de seu aniversário, algum ex-amante pudesse aparecer discretamente para lhe oferecer flores e saudades. Ninguém apareceu, como era de se esperar. Apenas o vento castigando as pétalas da coroa de flores que lá deixei. Uma tempestade veio confirmar o mau tempo e a chuva começou a cair antecipando a escuridão da noite iminente. Preparei o meu jantar, assisti um pouco de TV e subi para o nosso quarto onde agora eu ocupava sozinho o leito nupcial. Insone e cada vez mais possuído pelas lembranças de Lubiana animando a nossa casa, então deserta e fustigada pela chuva, pensei no amuleto e o apanhei no fundo da gaveta. Logo após a morte dela, eu o havia lançado fora em uma barroca pedregosa e coberta de espinhos, mas não é que Pistolin encontrou o maldito e, com um esquisito rosnar, me trouxe entre os dentes algumas semanas depois? Mal apanhei o chifre e um raio, caindo em algum ponto da rede elétrica, mergulhou a casa em lúgubre escuridão. Tomei coragem de assumir para mim mesmo a falta que sentia, chorei copiosas lágrimas e, apertando o amuleto entre os dedos, supliquei que ela voltasse e que se erguesse daquele túmulo miserável, voltando para aquecer o meu solitario coração! Mal terminei de formular o meu desesperado e irrefletido desejo para que o vento batesse com força inaudita a porta dos fundos, na cozinha, que imaginei ter fechado bem e passado a tranca de madeira. A vela na cabeceira tremeluziu espargindo sombras trêmulas na parede e no teto. Em seguida, me pareceu ouvir ruídos de ossos estalando e um fino gemido de dor. A impressão ficou mais forte quando Pistolin, todo arrepiado, abriu a porta do quarto e pulou sobre a minha cama ganindo. 

Nunca fui muito imaginativo e acho que isso me deu forças para continuar ouvindo com redobrada atenção os ruídos engendrados no seio da escuridão sem tirar muitas conclusões. Não consegui, entretanto, manter-me calmo ao ouvir nitidamente um som semelhante a passos nos degraus de madeira em direção ao meu escuro quarto. Era nítido, pelo ritmo impresso e por outras coisas inefáveis que sabemos de alguém com quem compartilhamos muito, que Lubiana estava rediviva, ressurreta e subia as escadas em direção ao nosso leito de amor. Imaginei em uma fração de segundo toda a nossa vida conjugal restaurada: seus caprichos, sua fleuma irascível, suas regras domésticas, suas birras e seus queixumes de amor. Vi escapar de minhas mãos as rédeas da fazenda e dos negócios que iam de vento em popa (minha conta no banco engordando que era uma belezura só!). Não me contive. Havia mais um desejo a ser atendido pelo chifre macabro. Poderia pressentir os ossos gelados de Lubiana se aproximar da maçaneta. Agarrei o chifre e supliquei:



_ EU QUERO QUE LUBIANA VOLTE DEFINITIVAMENTE PARA SUA COVA, E LÁ PERMANEÇA ATÉ O DIA DO JUÍZO FINAL!



Mal formulei pela terceira vez minha condoída súplica e a luz elétrica voltou. A tempestade subitamente se amainou, mal restando um chuvisco na janela por onde o vento trazia um cheiro doce de jardins molhados a expulsar uma voluta de miasmas cadavéricos que imaginei flutuar na porta entreaberta do meu quarto.

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