quarta-feira, 8 de julho de 2015

ABIGAIL NÃO MORA MAIS AQUI!



Após uma tarde inútil tentando cobrar um maço de promissórias dos endividados comerciantes de Itambé-Ba, a maioria misteriosamente ausentes de seus estabelecimentos, calhou-me ir visitar minha tia Branca, a última moradora do nosso clã familiar, cujo casarão, próximo ao cemitério, parecia cada dia mais próximo dos muros melancólicos e caiados, como se o cemitério estivesse aos poucos tragando o lar dos nossos antepassados – Quando crianças, as distâncias são imensas, o cemitério parecia infinitamente distante no espaço e no tempo, mas crescemos e uma larga avenida não passa mais de uma vereda apertada, o mundo vai se tornando um claustro constrangendo cada vez mais a nossa alma. E foi mesmo com o coração apertado que saltei para visitar minha tia, cruzando o velho jardim mal cuidado onde ferros retorcidos de caramanchões e arbustos ressequidos mal lembravam o palco de minhas reinações infantis ali encenadas. Minha tia sofria de Alzheimer e temi que ela não me reconhecesse, mas surpreendeu-me a vivacidade do seu acolhimento (essa doença parece ter fases, como um corpo afogado que sobe várias vezes à superfície para depois afundar de uma vez para sempre). Tomamos café e eu aproveitei sua passageira melhora para avivar nossas lembranças e falar dos bons tempos. Todas as suas lembranças e conversações gravitavam em torno de sua filha única e falecida há muitos anos atrás, Abigail, a prima com quem eu quase me casei e por quem guardei um luto de muitos anos. Surpreendentemente, minha tia afirmava categoricamente que Abigail havia estado lá esta mesma tarde e havia sido ela justamente quem lhe avivara a perdida memória de todas essas coisas que ela agora se danava a falar. Fiquei ruminando, enquanto sorvia o chá, em como era caprichosa essa doença: minha tia Branca lembrava-se perfeitamente de sua filha, de praticamente tudo vivido ao lado dela – não sei até que ponto a minha visita tenha sido causa disso, pois éramos noivos apaixonados -, exceto de um fato traumático e profundamente doloroso: o suicídio de Abigail! Disso ela era incapaz de se recordar. E como não poderia entender como todas essas lembranças perdidas caprichosamente vieram à tona em seus envelhecidos miolos, deu-lhe de acreditar que Abigail estivesse lhe visitado há poucas horas, passeado pela casa e conversado com ela como nos velhos tempos de outrora. Entendendo isso, preferi não quebrar-lhe a ilusão e até conversei mais com ela sobre a minha saudosa prima, no intuito de testar o quanto de memória lhe fora temporariamente devolvida pela doença medonha. Abigail estava linda como sempre, segundo ela, enchera os vasos da casa com flores colhidas no jardim, trocara as cortinas e fizera um rápido almoço cujo cheiro parecia ainda evolar da cozinha de brancos azulejos onde tantos beijos dela roubei sem nenhuma cerimônia! De fato, a casa estava um primor e imaginei como a necessidade de higiene e conforto está ligado às nossas lembranças e hábitos que o Alzheimer arrasta junto consigo, ao arrastar as recordações que estão na base destes hábitos. Era compreensível que um brusco retorno de lembranças trouxesse com elas o desejo de por a vida em ordem novamente, como estas flores colhidas que a simples justaposição nos braços da florista já pede um laço e um ramalhete. Fiquei até a dar asas à imaginação e imaginar Abigail sorrindo e andando pela casa, atarefada em cuidar da sua querida mãe, com seu sorriso cristalino a reluzir e dar brilho a todos os cristais e à prata da casa. Evidente que eu não podia ir muito longe nesses devaneios, pois o amor cicatrizado e enterrado no fundo do meu peito poderia também ressuscitar e tudo que eu desejava na vida era que existisse um mal semelhante ao Alzheimer capaz de destruir para sempre os amores, ou melhor, o cadáver dos amores que a morte leva e nos deixa os ossos pontudos e ressequidos a ferir eternamente a nossa alma. Era preciso, de vez em quando, mudar de assunto, falar dos negócios, da saúde e da vida dos antigos moradores. Resolvi pernoitar ali, pois já escurecia e eu ainda tinha esperanças de, no outro dia pela manhã, encontrar os pequenos comerciantes em suas lojas e cobrar minhas promissórias. 

O espetáculo do sol se pondo logo atrás do cemitério dava uma nota sublime e pungente com o fogo morrendo e sendo enterrado ao lado dos nossos entes queridos e lançando ao céu suas violáceas rajadas de luz como as almas do dia findo a se despedirem entre voleios de andorinhas e nuvens de ouro em pó. Sabia eu, instintivamente, onde ficava o túmulo de Abigail, pela janela da copa dava pra ver a ponta do seu mausoléu assomando sobre os muros limosos, e era inevitável que ela voltasse ao centro da conversa durante o breve tempo em que vimos televisão na sala. Minha tia logo se sentiu sonolenta e decidiu ir dormir. Eu iria ver o primeiro tempo de um jogo de futebol na TV e subiria depois. O quarto de hóspedes estava pronto, Abigail mesmo que havia arrumado ele, disse a minha debilitada tia. Imaginei o velho quarto onde eu costumava dormir nas férias e da embriaguez romântica que vivia ao dormir ao lado do quarto de Abigail, as portas quase uma em frente à outra e em quantas noites fiquei acordado sonhando que ela pudesse cruzar os poucos passos que nos separavam do paraíso e viesse deitar-se comigo, coisa que nunca acontecera. Ao voltar da cozinha, minha tia Branca trouxe consigo um jarro d’água, colocando-o sobre o centro em frente ao sofá. Disse-me que estava muito cansada para subir as escadas. Que eu levasse essa jarra para Abigail quando eu subisse para o meu quarto, pois Abigail gostava de ficar em sua cama lendo até tarde da noite e o calor do verão em Itambé, como fantasmas de um dia já morto e frio, persiste por longas horas da madrugada. Senti piedade da minha tia e da sua solidão, acompanhei-a até o seu quarto, tomei-lhe a benção e voltei a ver TV. O jogo começara, mas eu não conseguia me concentrar. A todo instante olhava para aquele jarro de água e parecia ver o rosto lindo de Abigail, seus olhos de cor violeta e seu cabelo ruivo a sorrir dentro do cristal. Lembranças vertiginosas que julgava perdidas para sempre, feito um hálito vaporoso em torno da jarra, iam se impregnando na minha mente como se eu tivesse dado, sem perceber, um pulo no tempo e voltado aos anos em que ali vivi o mais intenso amor que não se repete jamais. Desisti do futebol e resolvi subir para o meu quarto. 

Desliguei a TV e apaguei as luzes da sala. Com u’a mão segurava minha pasta de negócios e pertences pessoais, com a outra, para aliviar o calor das noites tórridas, o jarro com a água ainda e inexplicavelmente gelada. Duas claraboias de vidro ao longo do corredor enchiam-no com a luz prateada do luar e decidi não ligar o interruptor. Caminhei com passos lentos. Ao passar pela porta do quarto de Abigail – eu demorei em subir justamente esperando estar bem cansado para alimentar os delírios da minha Tia -, parei e senti algo inusitado que me arrepiou os pelos do braço. Uma luz brilhava sobre a porta! Recompus-me. Minha tia certamente ali estivera e deixara a luz acesa, não me cabendo outra obrigação a não ser entrar e apagá-la. A porta estava trancada por dentro e pareceu-me ouvir algo se mexer na antiga cama de molas. Curvei-me e olhei pelo buraco da fechadura onde a luz jorrava copiosa. Não consigo dizer exatamente o que vi, sem temer pela minha reputação, pois qualquer mancha na credibilidade e no juízo de um agiota é motivo de sobra para seus clientes contestarem as dívidas e dar calote nas promissórias. O jarro d’água caiu da minha mão e o som do cristal partido se confundiu com o grito que dei ao acordar no escuro do meu quarto. Sentei-me na cama e, pelo barulho das molas logo percebi que estava dormindo na casa de minha tia Branca. O dia raiava e o sonho esquisito ainda fervia em minha cabeça. Não me recordo do que havia visto pelo buraco da fechadura, mas a consciência de que fora algo tão assombroso a me causar um grito tão medonho, deu-me a certeza de ser qualquer coisa que minha imaginação ou meu juízo não poderia suportar, meu grito fora como a sombra de algo abominável e tão insuportável que minha memória não poderia registrar. Um trauma, diria qualquer psicólogo de plantão, e esse pensamento mantinha o terror me corroendo feito um eco a se perder nas montanhas. Acendi todas as luzes, apesar de já ser dia. Saltei-me em direção ao banheiro dentro do quarto, onde me barbeei sem parar de pensar no que havia ocorrido lá fora, no corredor, quando subi cansado para dormir. Ao abrir a porta do quarto, tudo estava em ordem, a porta do quarto de Abigail estava levemente encostada e, ao abri-la, pude ver os lençóis compostos e seus tristes bibelôs arrumados na estante, nos armários e nas gavetas que não fui capaz de abrir. Era um memorial sagrado para a minha tia (e para mim também, logo senti). Curiosamente, na porta do quarto, ainda havia uma pálida mancha que parecia a água da jarra derramada e, dois fragmentos diferentes e pequenos da jarra de cristal estiolada com a queda. Minha tia acordara normal, outra vez. Normal significava que não se lembrava de quase nada da noite anterior. Jurou não ter me dado nenhuma jarra nem limpado nada no corredor nem na porta dos nossos quartos. Não se lembrava, quero crer. Despedi-me dela prometendo lhe enviar em breve uma profissional para lhe ajudar com as tarefas da casa, embora sabendo como ela relutava a aceitar o seu mal ou qualquer tipo de ajuda. Nem toquei no nome de Abigail. 

Após o café, saí para trabalhar, resgatei algumas promissórias com muita dificuldade e retornei para Vitória da Conquista onde pratico a sublime arte da agiotagem. Sobre a minha cabeceira estão os dois cacos de cristal da jarra que trouxe comigo e que nunca consegui explicar como de fato tudo aquilo ocorrera. O certo é que, tão logo o rádio toca uma pungente canção do passado, uma inesquecível “oldie”,eu me pego a delirar olhando contra a luz o interior do fragmento em u’a mísera esperança de ver, bailando no fundo do tempo e do cristal, o fantasma de Abigail, a minha noiva morta, eterna e inolvidável.

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