quinta-feira, 14 de julho de 2016

O PESO DA MORTE ou Os Cadáveres Ultrajados de Drº Bandeira.




O médico diretor do Hospital Municipal de Itambé-Ba na década de sessenta do século passado, conhecido por todos como Drº Bandeira, alto, espadaúdo e fumante inveterado, estava naquela triste manhã de abril ouvindo no rádio as notícias da Intervenção Militar que destituiu o esculhambado governo do comunista João Goulart e com a mente ocupada por um problema bizarro e macabro da sua vida profissional.
Ele era o médico legista, responsável pelos atestados de óbito dos pacientes falecidos no seu hospital como também de pessoas mortas em todos os povoados próximos que enviavam seus habitantes mortos para serem enterrados no cemitério da cidade. Frequentemente, Drº Bandeira encontrava dificuldades em definir a causa-mortis por conta de uma quantidade imensa de hematomas, alguns até com rompimento de órgãos internos, apresentado pelos cadáveres após um tortuoso translado da zona rural até a única funerária providencialmente localizada ao lado do hospital. Não lhe fora difícil interrogar as pessoas envolvidas no translado dos corpos para descobrir a origem de tais hematomas e concussões, mesmo tendo que adivinhar parte da explicação por conta do espírito reservado e arredio dos matutos e de suas arraigadas superstições frente à um esquisito homem de ciência. 

Era costume, então, quando morria alguém nos povoados distantes, embrulhar o morto em uma colcha ou grossos lençóis, pendurá-lo feito uma rede ao longo de um tronco fino de madeira e trazê-lo até a cidade, em longas caminhadas pelas veredas e picadas, até às portas da funerária, que não podia assim postergar os serviços devidos a um morto na porta do estabelecimento, pois notória era a preguiça e o pouco caso do agente funerário em se locomover a lugares tão ermos, carregando uma urna vazia no fundo de uma carroça para trazer o falecido até a cidade. 

No caminho, diante do cansaço dos carregadores, era crença indiscutível que o peso crescente se devia aos pecados do morto que, recolhidos em alguma dimensão desconhecida do além, vinham todos convocados para ocupar seus lugares na alma do infeliz, para o momento de serem pesadas (que eu saiba, essa crença de um juízo final ser uma pesagem da alma era predominante no Antigo Egito e fora trazida para o Brasil pelos escravos, aqui permanecendo recalcada pelo modelo do Juízo Final cristão). Para aliviar esse peso medonho em que o morto, acometido pelo rigor-mortis, o enrijecimento dos músculos e nervos, em chumbo ia se transformando, os carregadores o colocavam no chão, apanhavam varas de marmelo ou a bainha do facão, e davam surras homéricas no cadáver, alegando que, agindo assim, os pecados eram tangidos do corpo, se não para sempre, pelo menos até a hora em que este voltasse a esfriar lá no seu túmulo confortável. 

Drº Bandeira tinha receios de emitir um atestado de óbito apontando causas naturais quando os corpos lhe eram apresentados com tantas escoriações e sequelas, coisas que bem poderiam ser atribuídas a uma briga, um assassinato premeditado ou mesmo uma queda e, dias depois, aparecer a verdadeira causa da morte a lhe causar complicações legais, principalmente diante daqueles matutos que permaneciam em silêncio quando questionados se algo acontecera com o cadáver durante a viagem! Como médico estudioso, ele sabia muito bem o que estava por detrás da aparente sensação de leveza que sucedia ao corpo do morto após essa sessão de pancadaria macabra: tudo não passava de um aquecimento nos músculos dos próprios carregadores que, após longos minutos descendo a porrada no cadáver, soltando gritos bestiais para conjurar o horror da cena, findavam por esquentar as juntas e a musculatura, o que respondia pela aparente leveza do morto quando eles retomavam o fardo e a caminhada. 

Naquela fria manhã de abril, como dizíamos, após recusar o almoço também frio e sem sal servido no hospital, ele almoçou em uma casa ali perto e se recolheu para uma hora de descanso em sua sala, resolvido a escrever um comunicado explicando esse costume perverso do povo da zona rural e exigindo que o Delegado Crispim Douglas Corcoran Júnior tomasse medidas cautelares e admoestasse a população para o crime de ultraje ao cadáver que esta prática significava! Recostou-se na sua confortável poltrona verde e começou a redigir uma nota sobre o tema, quando a força do hábito lhe fez cochilar e dormir como sempre fazia após o almoço no hospital. Dormiu e teve um sonho muito estranho. Sonhou que andava pela rua de terra batida, de casas cada vez mais esparsas, até findar no cemitério, nos limites da zona urbana da pequena cidade. Na verdade, flutuava, como uma folha seca levada pelo vento. Na porta do cemitério, onde sempre imperava o eloquente silêncio da morte, ele viu uma azáfama de seres pálidos, magros e envoltos em túnicas estioladas, pendurados nos muros, sobre os túmulos e esperando ansiosos por algo do outro lado da estrada, onde o calçamento terminava e descortinava-se o outrora caudaloso e barrento Rio Pardo. Sentiu um calafrio lhe subir pelas pernas ao intuir todos aqueles seres carcomidos, alguns faltando um olho ou com buracos imensos no rosto, como os mortos do cemitério, a maioria deles, seus conhecidos, alguns parentes e muitos ex-pacientes. Mas não teve tempo de gritar, pois um outro terror veio sobrepor ao primeiro como um coice após uma queda: Ele também estava morto! Percebeu isso quando, ao tentar segurar no muro do cemitério para onde o vento o levava, atravessou a parede de fora a fora, até ser segurado por uma mão gelada cuja proprietária ele logo reconheceu como sua velha babá, de nome França, que lhe havia limpado os cueiros e cuidado dele até ele ir estudar em Salvador, morrendo ela logo depois. Ela lhe fez segurar em uma corrente para se equilibrar. Essa corrente findava em uma bola pesada de metal luzidio onde podia se ver a imagem movente do que seria os pecados de todos os mortos, ali à espera do dia do Juízo Final. “E a minha bola, porque não a tenho? Eu não tenho pecados? ”, perguntou-lhe meio que receoso de falar com u’a morta de cabelos imensos, esfiapados ao vento e adornando um rosto já quase todo carcomido. “Claro que os tem, Sinhozinho! Mas eles ainda precisam se ajuntar ao redor do seu corpo até formarem uma bola de metal que lhe manterá preso aqui junto ao seu corpo”! “Mas onde então está meu corpo? ” Bandeira perguntou procurando em vão por algo mais sólido do que aquela sombra de mão empestada de nicotina e braços ossudos. “Lá no povoado da Jussara, onde você havia ido atender um rico fazendeiro adoentado e perto de morrer. Não deu tempo. Você morreu perto de chegar na sede, teve um enfarto fulminante bem embaixo da cancela! Seu corpo está vindo para a Cidade. Serás velado lá na prefeitura, pelo que ouço falar. Gente muito importante!” A velha defunta, alisando uma invisível poeira no jaleco dele que mais parecia uma mortalha, demonstrava ter orgulho do seu garotinho que se tornara um médico tão importante, mesmo estando agora morto e perto de ser enterrado. “Meu corpo está vindo para cá? Preciso vê-lo! Me leve até lá”. “Depois. Agora é hora de todos beberem a água. Estamos sedentos. Venha comigo que eu lhe explico”. A velha o abraçou e juntos eles se aproximaram do muro do cemitério para onde os mortos todos se arrastavam em um macabro cortejo de rostos exasperados e torturados por sofrimentos indescritíveis. Uns rastejavam com suas correntes imensas e pesadas, outros mancavam na falta de uma perna ou braço, peles e cabelos mal cobrindo os ossos ocos por onde o vento soprava uma melodia triste. “ Veja lá longe”, apontou a velha para seu enteado. “Aquele é o Irênio, o marceneiro que faleceu há três meses atrás. Você mesmo quem o atendeu, quem lhe tratou da sífilis, mas ele acabou não resistindo e bateu a caçuleta. Foi o último a ser enterrado aqui e - essa é uma tradição nossa desde que esse cemitério foi criado – todo aquele que chega por último, fica encarregado de ir ao rio Pardo toda tarde buscar baldes de água para matar a sede nossa, pois as chamas do inferno já começam a nos lamber assim que a terra nos cobre no túmulo e vai nos lamber até o dia do Juízo! Haja água! O coitado tem que dar dezenas de viagens até o dia que morrer alguém também condenado ao fogo eterno para assumir o seu papel e ele poder descansar na sua gaveta!” Drº Bandeira voou em direção ao fim da rua e pode acompanhar de perto os gemidos da alma penada, sob um céu nublado e eternamente crepuscular (e que bem poderia ser as paredes do seu sonho) a arrastar os baldes pesados da água barrenta do Rio Pardo para dar de beber, com uma concha pendurada na alça, aos seus colegas sofrendo antecipadamente a convecção diabólica das labaredas, nas antecâmaras do inferno. Irênio imediatamente o reconheceu e o cumprimentou. “ Graças a Deus, alguém veio me substituir nessa jornada dolorosa! E que bom que seja o médico que me tratou em vida!”. Drº Bandeira, ainda tomado do seu fleumático senso profissional e tentando não perder o controle da medonha situação, o interpelou: “ Você por acaso tomou os medicamentos que eu lhe prescrevi? ” “Tomei, e, como o Sr. pode bem perceber, acabei batendo as botas!” Irênio, gozando agora do estatuto de morto bem morrido e já apodrecido que iguala a todos, tentava zombar do médico a quem antes reverenciava como um ser superior, mas, diante do olhar austero do doutor, acabou por se constranger novamente e tentou uma emenda ao dito insolente: “MAS ANTES DE MORRER, DRº BANDEIRA, DEI UMA MELHORAAAADA!... A defunta França interveio no diálogo e deu pressa ao Creonte do sertão. Os mortos estavam gemendo de sede. Pediu que Bandeira ajudasse a arrastar os baldes, para ir se acostumando com sua missão pois, assim que seu corpo fosse depositado no túmulo, essa tarefa de apanhar água seria dele até que outro viesse tomar o seu lugar. 

Por um golpe de sorte, entretanto, como uma milagrosa intervenção no monótono e abandonado reino dos mortos, uma azáfama se fez notar nas portas do desolado cemitério: um outro morto, outra alma desorientada por lá apareceu. Quase no mesmo momento em que Bandeira morria – ou adormecia lá no hospital – um outro morador da cidade, também havia falecido, o ilustre Drº Galo, um renomado e eloquente advogado mais honesto do que um rato de banhado. A defunta lhe avisou então que, aquele que fosse enterrado primeiro, ficaria livre do encargo de buscar água, pois o último a chegar é que herdaria esse castigo, uma espécie de estágio na profissão de penar nos reinos infernais que os esperava! “Então! – Bandeira quase gritava – “Mais um motivo para eu ir ver o meu corpo! Tenho que dar pressa aos carregadores! Esse povo da roça é muito lerdo! Me leva até lá, minha vozinha!” O esqueleto do que fora outrora uma gorda e bonachona ama-de-leite o apanhou pela cintura, compartilhou com ele o peso da bola e da corrente, e zarparam pelos ares viscosos de angústia, parcialmente invisíveis exceto por suas vertiginosas sombras a deslizar sobre a relva seca, velozes como o próprio transcorrer de suas vidas efêmeras e miseráveis. Em poucos instantes chegaram até uma picada próxima a rodovia, onde, em um cortejo indiano e se arrastando lentamente, dois homens carregavam o corpo de Drº Bandeira, envolto em um fino lençol de cambraia e forrado com uma colcha colorida de filó, algo que destoava profundamente da depressão que era a tônica do sonho e que se devia a uma buchada estragada com o qual ele havia se refestelado no almoço, na casa de uma prostituta no fundo do hospital! Bandeira, ao ver com que morosidade e lentidão os capiaus carregavam o seu corpo, tremeu de medo ao imaginar que o ilustre Drº Galo, que há essa hora já entrava no salão paroquial da Maçonaria para ser velado, pudesse ser enterrado primeiro que ele e a missão de carregar água o dia inteiro para os mortos ficasse a seu encargo até que um outro resolvesse morrer por aquelas bandas! “Fala com ele, Vozinha! Mande eles baterem nesse corpo para aliviar o peso dos meus pecados! Veja ali em cima do meu cadáver o tanto de coisa estranha se agrupando! É isso que está pesando! É por isso que eles demoram tanto!” E assim desesperado, Bandeira circundava os pobres campesinos de pés descalços conduzindo seu cadáver pelo vale das sombras. 


Em vão tentava retirar do corpo enrolado as mantas pesadas de seus crimes, torpezas e segredinhos sujos em anos acumulados, a quantidade sinistra de abortos que ele sistematicamente praticava e que lhe conferiu o sórdido apelido, sussurrado em suas costas, de “fazedor de anjo”, com o qual era conhecido por todos em Itambé naquele tempo que não volta mais. Era só lembrar a expressão de dor do Irênio arrastando, além da pesada corrente de alma penada, os baldes de água e servindo com uma concha de osso o líquido pelas bocas furadas dos defuntos podres, vendo a água escorrer como a pedra de Sísifo, imaginando sua dor sem descanso para se desesperar e implorar, sem ser visto ou ouvido, aos carregadores que dessem uma baita sova no seu corpo, como era o costume por aquelas bandas, e o aliviasse do peso insano! Nesse afã, deu um grito de horror e acordou dentro da sala do Hospital onde havia adormecido. Suava feito um convulso em crise de dispepsia. Sua barriga doía e ele correu imediatamente até o vaso onde pode se aliviar do almoço indigesto e das imagens vívidas do pesadelo. Logo em seguida, alguém bateu na porta e lhe comunicou que o ilustre Drº Galo havia sofrido um ataque do coração do outro lado da cidade, na venda de Santão, onde costumava parar para tomar um trago entre pilhas de papelada e muita prosa fiada! Drº Bandeira tomou um segundo susto, pois seu sonho mal-assombrado parecia agora, com essa notícia, ganhar sintomas de premonição e fatalidade. Parece que ele rasgou o rascunho que havia redigido sobre a necessidade de combater o costume da zona rural de bater nos cadáveres. 

Parece que quando morreu ele fora mesmo para o inferno, embora minhas preces seja para que Deus o tenha perdoado e salvo a sua alma do fogo e desse castigo dantesco de eternamente carregar água do Rio pardo para matar a sede dos condenados, até porque, em Itambé, naquela época, só morriam anjinhos e bem-aventurados, os ruins ficando para semente e, até hoje, por lá encruados. Amém! 







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