O médico diretor do Hospital
Municipal de Itambé-Ba na década de sessenta do século passado, conhecido por
todos como Drº Bandeira, alto, espadaúdo e fumante inveterado, estava naquela
triste manhã de abril ouvindo no rádio as notícias da Intervenção Militar que
destituiu o esculhambado governo do comunista João Goulart e com a mente
ocupada por um problema bizarro e macabro da sua vida profissional.
Ele era o médico legista, responsável pelos
atestados de óbito dos pacientes falecidos no seu hospital como também de
pessoas mortas em todos os povoados próximos que enviavam seus habitantes
mortos para serem enterrados no cemitério da cidade. Frequentemente, Drº
Bandeira encontrava dificuldades em definir a causa-mortis por conta de uma
quantidade imensa de hematomas, alguns até com rompimento de órgãos internos,
apresentado pelos cadáveres após um tortuoso translado da zona rural até a
única funerária providencialmente localizada ao lado do hospital. Não lhe fora
difícil interrogar as pessoas envolvidas no translado dos corpos para descobrir
a origem de tais hematomas e concussões, mesmo tendo que adivinhar parte da explicação
por conta do espírito reservado e arredio dos matutos e de suas arraigadas
superstições frente à um esquisito homem de ciência.
Era costume, então, quando morria alguém nos
povoados distantes, embrulhar o morto em uma colcha ou grossos lençóis,
pendurá-lo feito uma rede ao longo de um tronco fino de madeira e trazê-lo até
a cidade, em longas caminhadas pelas veredas e picadas, até às portas da
funerária, que não podia assim postergar os serviços devidos a um morto na
porta do estabelecimento, pois notória era a preguiça e o pouco caso do agente
funerário em se locomover a lugares tão ermos, carregando uma urna vazia no
fundo de uma carroça para trazer o falecido até a cidade.
No caminho, diante do cansaço dos carregadores, era
crença indiscutível que o peso crescente se devia aos pecados do morto que,
recolhidos em alguma dimensão desconhecida do além, vinham todos convocados
para ocupar seus lugares na alma do infeliz, para o momento de serem pesadas
(que eu saiba, essa crença de um juízo final ser uma pesagem da alma era
predominante no Antigo Egito e fora trazida para o Brasil pelos escravos, aqui
permanecendo recalcada pelo modelo do Juízo Final cristão). Para aliviar esse
peso medonho em que o morto, acometido pelo rigor-mortis, o enrijecimento dos
músculos e nervos, em chumbo ia se transformando, os carregadores o colocavam
no chão, apanhavam varas de marmelo ou a bainha do facão, e davam surras
homéricas no cadáver, alegando que, agindo assim, os pecados eram tangidos do
corpo, se não para sempre, pelo menos até a hora em que este voltasse a esfriar
lá no seu túmulo confortável.
Drº Bandeira tinha receios de emitir um atestado de
óbito apontando causas naturais quando os corpos lhe eram apresentados com
tantas escoriações e sequelas, coisas que bem poderiam ser atribuídas a uma
briga, um assassinato premeditado ou mesmo uma queda e, dias depois, aparecer a
verdadeira causa da morte a lhe causar complicações legais, principalmente
diante daqueles matutos que permaneciam em silêncio quando questionados se algo
acontecera com o cadáver durante a viagem! Como médico estudioso, ele sabia
muito bem o que estava por detrás da aparente sensação de leveza que sucedia ao
corpo do morto após essa sessão de pancadaria macabra: tudo não passava de um aquecimento
nos músculos dos próprios carregadores que, após longos minutos descendo a
porrada no cadáver, soltando gritos bestiais para conjurar o horror da cena,
findavam por esquentar as juntas e a musculatura, o que respondia pela aparente
leveza do morto quando eles retomavam o fardo e a caminhada.
Naquela fria manhã de abril, como dizíamos, após
recusar o almoço também frio e sem sal servido no hospital, ele almoçou em uma
casa ali perto e se recolheu para uma hora de descanso em sua sala, resolvido a
escrever um comunicado explicando esse costume perverso do povo da zona rural e
exigindo que o Delegado Crispim Douglas Corcoran Júnior tomasse medidas
cautelares e admoestasse a população para o crime de ultraje ao cadáver que
esta prática significava! Recostou-se na sua confortável poltrona verde e
começou a redigir uma nota sobre o tema, quando a força do hábito lhe fez
cochilar e dormir como sempre fazia após o almoço no hospital. Dormiu e teve um
sonho muito estranho. Sonhou que andava pela rua de terra batida, de casas cada
vez mais esparsas, até findar no cemitério, nos limites da zona urbana da
pequena cidade. Na verdade, flutuava, como uma folha seca levada pelo vento. Na
porta do cemitério, onde sempre imperava o eloquente silêncio da morte, ele viu
uma azáfama de seres pálidos, magros e envoltos em túnicas estioladas,
pendurados nos muros, sobre os túmulos e esperando ansiosos por algo do outro
lado da estrada, onde o calçamento terminava e descortinava-se o outrora
caudaloso e barrento Rio Pardo. Sentiu um calafrio lhe subir pelas pernas ao
intuir todos aqueles seres carcomidos, alguns faltando um olho ou com buracos
imensos no rosto, como os mortos do cemitério, a maioria deles, seus
conhecidos, alguns parentes e muitos ex-pacientes. Mas não teve tempo de
gritar, pois um outro terror veio sobrepor ao primeiro como um coice após uma
queda: Ele também estava morto! Percebeu isso quando, ao tentar segurar no muro
do cemitério para onde o vento o levava, atravessou a parede de fora a fora,
até ser segurado por uma mão gelada cuja proprietária ele logo reconheceu como
sua velha babá, de nome França, que lhe havia limpado os cueiros e cuidado dele
até ele ir estudar em Salvador, morrendo ela logo depois. Ela lhe fez segurar
em uma corrente para se equilibrar. Essa corrente findava em uma bola pesada de
metal luzidio onde podia se ver a imagem movente do que seria os pecados de
todos os mortos, ali à espera do dia do Juízo Final. “E a minha bola, porque
não a tenho? Eu não tenho pecados? ”, perguntou-lhe meio que receoso de falar
com u’a morta de cabelos imensos, esfiapados ao vento e adornando um rosto já
quase todo carcomido. “Claro que os tem, Sinhozinho! Mas eles ainda precisam se
ajuntar ao redor do seu corpo até formarem uma bola de metal que lhe manterá
preso aqui junto ao seu corpo”! “Mas onde então está meu corpo? ” Bandeira
perguntou procurando em vão por algo mais sólido do que aquela sombra de mão
empestada de nicotina e braços ossudos. “Lá no povoado da Jussara, onde você
havia ido atender um rico fazendeiro adoentado e perto de morrer. Não deu
tempo. Você morreu perto de chegar na sede, teve um enfarto fulminante bem
embaixo da cancela! Seu corpo está vindo para a Cidade. Serás velado lá na
prefeitura, pelo que ouço falar. Gente muito importante!” A velha defunta,
alisando uma invisível poeira no jaleco dele que mais parecia uma mortalha,
demonstrava ter orgulho do seu garotinho que se tornara um médico tão
importante, mesmo estando agora morto e perto de ser enterrado. “Meu corpo está
vindo para cá? Preciso vê-lo! Me leve até lá”. “Depois. Agora é hora de todos
beberem a água. Estamos sedentos. Venha comigo que eu lhe explico”. A velha o
abraçou e juntos eles se aproximaram do muro do cemitério para onde os mortos
todos se arrastavam em um macabro cortejo de rostos exasperados e torturados
por sofrimentos indescritíveis. Uns rastejavam com suas correntes imensas e
pesadas, outros mancavam na falta de uma perna ou braço, peles e cabelos mal
cobrindo os ossos ocos por onde o vento soprava uma melodia triste. “ Veja lá
longe”, apontou a velha para seu enteado. “Aquele é o Irênio, o marceneiro que
faleceu há três meses atrás. Você mesmo quem o atendeu, quem lhe tratou da
sífilis, mas ele acabou não resistindo e bateu a caçuleta. Foi o último a ser enterrado
aqui e - essa é uma tradição nossa desde que esse cemitério foi criado – todo
aquele que chega por último, fica encarregado de ir ao rio Pardo toda tarde
buscar baldes de água para matar a sede nossa, pois as chamas do inferno já
começam a nos lamber assim que a terra nos cobre no túmulo e vai nos lamber até
o dia do Juízo! Haja água! O coitado tem que dar dezenas de viagens até o dia
que morrer alguém também condenado ao fogo eterno para assumir o seu papel e
ele poder descansar na sua gaveta!” Drº Bandeira voou em direção ao fim da rua
e pode acompanhar de perto os gemidos da alma penada, sob um céu nublado e
eternamente crepuscular (e que bem poderia ser as paredes do seu sonho) a
arrastar os baldes pesados da água barrenta do Rio Pardo para dar de beber, com
uma concha pendurada na alça, aos seus colegas sofrendo antecipadamente a
convecção diabólica das labaredas, nas antecâmaras do inferno. Irênio
imediatamente o reconheceu e o cumprimentou. “ Graças a Deus, alguém veio me
substituir nessa jornada dolorosa! E que bom que seja o médico que me tratou em
vida!”. Drº Bandeira, ainda tomado do seu fleumático senso profissional e
tentando não perder o controle da medonha situação, o interpelou: “ Você por
acaso tomou os medicamentos que eu lhe prescrevi? ” “Tomei, e, como o Sr. pode
bem perceber, acabei batendo as botas!” Irênio, gozando agora do estatuto de
morto bem morrido e já apodrecido que iguala a todos, tentava zombar do médico
a quem antes reverenciava como um ser superior, mas, diante do olhar austero do
doutor, acabou por se constranger novamente e tentou uma emenda ao dito
insolente: “MAS ANTES DE MORRER, DRº BANDEIRA, DEI UMA MELHORAAAADA!... A
defunta França interveio no diálogo e deu pressa ao Creonte do sertão. Os
mortos estavam gemendo de sede. Pediu que Bandeira ajudasse a arrastar os
baldes, para ir se acostumando com sua missão pois, assim que seu corpo fosse
depositado no túmulo, essa tarefa de apanhar água seria dele até que outro
viesse tomar o seu lugar.
Por um golpe de sorte, entretanto, como uma
milagrosa intervenção no monótono e abandonado reino dos mortos, uma azáfama se
fez notar nas portas do desolado cemitério: um outro morto, outra alma
desorientada por lá apareceu. Quase no mesmo momento em que Bandeira morria –
ou adormecia lá no hospital – um outro morador da cidade, também havia
falecido, o ilustre Drº Galo, um renomado e eloquente advogado mais honesto do
que um rato de banhado. A defunta lhe avisou então que, aquele que fosse
enterrado primeiro, ficaria livre do encargo de buscar água, pois o último a
chegar é que herdaria esse castigo, uma espécie de estágio na profissão de
penar nos reinos infernais que os esperava! “Então! – Bandeira quase gritava –
“Mais um motivo para eu ir ver o meu corpo! Tenho que dar pressa aos
carregadores! Esse povo da roça é muito lerdo! Me leva até lá, minha vozinha!”
O esqueleto do que fora outrora uma gorda e bonachona ama-de-leite o apanhou
pela cintura, compartilhou com ele o peso da bola e da corrente, e zarparam
pelos ares viscosos de angústia, parcialmente invisíveis exceto por suas
vertiginosas sombras a deslizar sobre a relva seca, velozes como o próprio
transcorrer de suas vidas efêmeras e miseráveis. Em poucos instantes chegaram
até uma picada próxima a rodovia, onde, em um cortejo indiano e se arrastando
lentamente, dois homens carregavam o corpo de Drº Bandeira, envolto em um fino
lençol de cambraia e forrado com uma colcha colorida de filó, algo que destoava
profundamente da depressão que era a tônica do sonho e que se devia a uma
buchada estragada com o qual ele havia se refestelado no almoço, na casa de uma
prostituta no fundo do hospital! Bandeira, ao ver com que morosidade e lentidão
os capiaus carregavam o seu corpo, tremeu de medo ao imaginar que o ilustre Drº
Galo, que há essa hora já entrava no salão paroquial da Maçonaria para ser
velado, pudesse ser enterrado primeiro que ele e a missão de carregar água o
dia inteiro para os mortos ficasse a seu encargo até que um outro resolvesse
morrer por aquelas bandas! “Fala com ele, Vozinha! Mande eles baterem nesse
corpo para aliviar o peso dos meus pecados! Veja ali em cima do meu cadáver o
tanto de coisa estranha se agrupando! É isso que está pesando! É por isso que
eles demoram tanto!” E assim desesperado, Bandeira circundava os pobres
campesinos de pés descalços conduzindo seu cadáver pelo vale das sombras.
Em vão tentava retirar do corpo enrolado as mantas
pesadas de seus crimes, torpezas e segredinhos sujos em anos acumulados, a
quantidade sinistra de abortos que ele sistematicamente praticava e que lhe
conferiu o sórdido apelido, sussurrado em suas costas, de “fazedor de anjo”,
com o qual era conhecido por todos em Itambé naquele tempo que não volta mais.
Era só lembrar a expressão de dor do Irênio arrastando, além da pesada corrente
de alma penada, os baldes de água e servindo com uma concha de osso o líquido
pelas bocas furadas dos defuntos podres, vendo a água escorrer como a pedra de
Sísifo, imaginando sua dor sem descanso para se desesperar e implorar, sem ser
visto ou ouvido, aos carregadores que dessem uma baita sova no seu corpo, como
era o costume por aquelas bandas, e o aliviasse do peso insano! Nesse afã, deu
um grito de horror e acordou dentro da sala do Hospital onde havia adormecido.
Suava feito um convulso em crise de dispepsia. Sua barriga doía e ele correu
imediatamente até o vaso onde pode se aliviar do almoço indigesto e das imagens
vívidas do pesadelo. Logo em seguida, alguém bateu na porta e lhe comunicou que
o ilustre Drº Galo havia sofrido um ataque do coração do outro lado da cidade,
na venda de Santão, onde costumava parar para tomar um trago entre pilhas de
papelada e muita prosa fiada! Drº Bandeira tomou um segundo susto, pois seu
sonho mal-assombrado parecia agora, com essa notícia, ganhar sintomas de
premonição e fatalidade. Parece que ele rasgou o rascunho que havia redigido
sobre a necessidade de combater o costume da zona rural de bater nos
cadáveres.
Parece que quando morreu ele fora mesmo para o
inferno, embora minhas preces seja para que Deus o tenha perdoado e salvo a sua
alma do fogo e desse castigo dantesco de eternamente carregar água do Rio pardo
para matar a sede dos condenados, até porque, em Itambé, naquela época, só
morriam anjinhos e bem-aventurados, os ruins ficando para semente e, até hoje,
por lá encruados. Amém!
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