A
mitologia grega se utiliza de dois titãs para explicar a origem do homem, os
irmãos Epimetheu e Prometheu.
O primeiro, muito esquecido e displicente, o
segundo, célere e visionário. Ao primeiro foi dado a tarefa de prover os
animais com recursos capazes de adaptá-los e favorecê-los na luta pela
existência, e assim Epimetheu o fez. Deu asas aos pássaros, unhas e pelos aos
ursos, cascos aos quelônios, dentes graúdos aos felinos, chifres aos búfalos...
E nesse arremedo de criação, empolgado, o titã acabou por se esquecer do homem,
miserável implume, nu com a mão no bolso, digno da mais profunda piedade. Sem
mais nenhum recurso biotecnológico par lhe ofertar, Epimetheu pediu socorro ao
seu irmão que teve então uma perniciosa ideia para corrigir a injustiça e a displicência
do seu irmão: roubar o fogo dos Deuses no Olimpo e doar ao homem. De fato, com
a posse desse magnífico elemento, o homem rapidamente sobrepujou seus
concorrentes e compensou sua corpórea miserabilidade. Aqueceu o seu lar e
amoleceu os alimentos, espantou as feras e venceu as espinhosas florestas,
forjou metais e iluminou s trevas. Nenhum outro elemento ou força da natureza
simbolizou com tamanha perfeição o progresso e a evolução da sociedade humana.
Tornou-se um deus entre os outros invejosos deuses do Olimpo, fato pelo qual
Prometheu foi antecipadamente condenado e castigado. O problema começa quando
percebemos que, até hoje, nenhum mitólogo ou estudioso tenha percebido a
dimensão profunda desse mito em sua secreta polissemia: o fogo roubado dos deuses
não é apenas o fogo físico, a técnica de saber produzir e transportar as
brasas, a arte de controlar a combustão química. O fogo roubado trata também,
em um sentido mais etéreo e profundo, da inquietação e do desassossego que
acompanha o homem desde sua origem (podemos evocar também o mito hebraico de
Deus criando o homem e insuflando no barro o hálito divino que sabemos bem ser
um FOGO VIVO, o sopro que Jeovah infunde no corpo de Adão pelas narinas). Toda
a engenhosidade e as transformações na face da terra promovidas pelo homem,
seus zigurats e seus foguetes, suas bombas e seus transgênicos, suas telas e
seus livros de mil páginas, até hoje o inquieto e desassossegado homem não para
de inventar e transformar, de lamber a superfície do mundo como sua língua de
fogo redesenhando a face, as entranhas e, muito em breve, o forro celestial do
nosso pequeno rochedo chamado de planeta. Talvez o que mais admiramos nos
outros animais, para além de sua beleza e singularidade, seja o fato do animal
ser naturalmente sossegado, tranquilo como a água de um lago que dorme,
absolutamente confortável com seu ambiente e espaço natural. Não há, nos
bichos, nenhum fogo a lhes consumir a alma, nenhuma necessidade de futucar, de
refazer, de inventar ou de se lançar em aventuras para além do que lhe é
biologicamente determinado. Charles Darwin pode muito bem ter criado sua fábula
de uma evolução mecânica, aleatória e forânea observando os animais e como eles
são passivos, joguetes do meio-ambiente e das forças moduladoras de suas
entourages. Fosse ele um psicólogo e observador da alma humana, jamais
acreditaria em evolução que não viesse de dentro (nesse sentido o Lamarck e os
vitalistas foram muito mais intuitivos). Os vitalistas, de Buffon, Saint
Hilaire, passando por Lamarck, Weissman e chegando até o filósofo Bergson,
gostavam de pensar um “plasma Germinativo”, um élãn, um elastério, uma força
vital que outra coisa não seria senão esse fogo a consumir o mundo e nos
auto-cozinhar, nos moldando como espécie e civilização a partir da nossa
própria inquietude e desassossego. De origem mística ou divina, essa energia
plasmadora penetra na primeira célula, no primeiro infuso vivo nos lagos
oceânicos e vai desenhando formas de vida cada vez mais diferenciadas, como se
escavasse a matéria, abandonando cada espécie ao seu fixismo e seguindo em
frente até desembocar no homem, quando então atinge a auto consciência e se
descobre fogo resplendecendo nos espelhos da linguagem! É quando surge as
míticas narrativas, a explicação poética e encantada dos primeiros reflexos, o
espírito vendo a si mesmo, para depois, no embaço e fumo que tal fogo impregna
no espelho da linguagem, se transformar em obscuras teorias científicas,
imagens carbonizadas e sem profundidade de um mundo consumido pela técnica e já
sem a rosácea luminosidade das primeiras auroras!
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