sábado, 26 de março de 2022

O AMIGO DA SABEDORIA!






Aquele menino sentado na porta de sua casa, em uma fria tarde de março, olhando o vento fustigar a copa das árvores na praça, onde andorinhas se aninhavam em festivas valsas. Um menino magro, que alternava febris estripulias com horas intensas a cismar, a depender do clima e do horário. Fui ele. Triste na hora mais triste, quando o sol se estrangulava. Mas não muito. Ao meu lado estava o mundo. Tudo me pressionava e me atraia como se a alma também conhecesse uma lei da gravidade. Ou força similar. Triste mesmo ele é agora, quando, lá no túnel infinito e escuro do passado, sou por mim mesmo relembrado. Na lembrança não tem mais o mundo. A montanha quente com seu estalar de insetos, o telhado cheio de manchas espectrais, o cão vira-lata, quase na esquina, deitado. Havia meus amigos e meus pais atarefados em algum canto da casa, coisas que não vejo mais no entorno da criança inocente! Que dor pungente ao recordá-la. Como eu traí seus sonhos e suas fantasias! Como busquei, qual um insensato, as dores e os sofrimentos que ele não merecia! Como, por egoísmo, privei a mim mesmo dos amores para os quais seu coração delicado fora talhado! Quanto escuridão, Senhor, nessa lembrança da criança que eu fui! Em prantos sufocados para não acordá-la do seu triste e encantado cismar, para não comover a solene hipostasia das coisas sagradas, suplico que devolva a ela, no antro escuro da minha alma onde ela hoje repousa, os amigos, os pássaros, as cantigas e o calor da vida que já não possuo mais! Aviva-me a memória, Senhor, e cubra minhas recordações com o seu manto de imagens!

Encontrei uma velha amiga, quase parente que, ao ver uma foto minha quando criança, emocionou-se profundamente. Fora na mesma época da foto, ela me contou, que havia me conhecido durante uma visita à casa dos meus pais! Contou-me a impressão iniludível de profunda tristeza que ela percebeu "d'emblé", de imediato, no meu semblante! Nunca havia visto uma criança de olhar tão triste como o meu. Comentou isso à minha mãe que, por sua vez, contou para ela a história do meu nascimento. 

Como fora mesmo uma história rocambolesca e mirabolante a minha, e como somos todos sentimentaloides ao lidar com crianças, calhou a ela acreditar que a minha profunda tristeza tivesse algo a ver com fatos e circunstâncias do meu nascimento. 

De fato, me recordo de profundas melancolias durante a minha tenra infância, mas a causa fora completamente distinta, e espero que essa amiga, lendo isso, venha a entender. 

Entre os vários temperamentos da natureza humana, destaca-se o temperamento melancólico. Segundo as lendas - o próprio Galeno endossa-as -, a melancolia é o temperamento "par excellence" dos sábios. Não que eu o fosse ou que a qualquer outro melancólico seja sábio por ter tal compleição humoral. (Agora sou eu explicando a lenda). 

A melancolia é apenas o sentimento, o pathos, de quem está privado da sabedoria, mas que, ao mesmo tempo, tem uma natureza voltada para ela, um telos, um destino de "sophós". Afinal, nem toda criança ou adultos privados de toda e qualquer sabedoria, possui traços quaisquer de melancolia, ou tendo-os, os tem por motivos distintos. 

Resumindo: o melancólico é aquele que nasceu para buscar a sabedoria e sofre uma tristeza imensa por não a ter! Era essa a sede que minha amiga viu em meus olhos infantis e julgou que era algum trauma psicológico. 

Um dia, um discípulo perguntou a Sócrates o que era preciso para se ter a sabedoria. Sócrates não respondeu nada de imediato. Apanhou o jovem pelo pescoço e enfiou-lhe a cabeça nas águas do poço em cujas margens conversavam e o deixou sufocar. Quando o retirou da água, o jovem parecia querer engolir todo o ar mediterrâneo! Disse-lhe então o filósofo: "Quando você desejar a sabedoria com sua alma, como desejou agora o ar com seus pulmões, certamente você a encontrará!" 

Eu era essa criança sufocada. Minha melancolia era o ar da sabedoria da qual nasci absolutamente privado, mas também absolutamente a ela afeiçoado! Sofri muito mas hoje sou um homem de uma alegria profunda que até incomoda os meus pares! Não que eu tenha a posse da sabedoria de modo exclusivo. A sabedoria é como o amor de u'a mãe de incontáveis filhos. A todos ela ama com o mesmo e indivisível amor, mas nenhum filho pode se dizer possuidor do coração daquela mãe. A sabedoria participa sem ser possuída, como o poder de um prefeito se exerce na repartição sem que ali ele esteja, ou como a lua se revela inteira na água onde se espelha! 

Hoje tenho a sabedoria, ou penso tê-la  pois que de vez em quando a vida agita a água que dorme e foge de Endimião os raios da sua Selene amada, mas é só esperar as águas se acalmarem para de novo a alegria reinar no rosto desse seu humilde poeta enluarado!

Clique AQUI para ler mais textos sobre crianças!
Share this post

0 comentários :