segunda-feira, 23 de abril de 2018

A MADEIRA MÁGICA DE ITAMBÉ-BA

A MADEIRA MÁGICA DE ITAMBÉ-BA


ARGUMENTO PARA UM ROTEIRO DE ANIMAÇÃO

Por conta de uma imaginação extremamente vivaz e inflamada, tive uma infância sobressaltada por sonhos encantados e também por pesadelos indescritíveis, embora esse que narro agora tenha sido mais real e concreto do que as contas que nos chegam no fim do mês. Quando os pesadelos me atormentavam, eu levantava da cama, de pijamas, saía silenciosamente de casa, levando a chave comigo e ia andar pelas ruas desertas de Itambé, sem importar com o sereno e o frio das madrugadas - o que o mundo poderia me apresentar que fosse mais assustador do que os meus pesadelos de então? Caminhava sem destino à procura de alguém acordado, um vigilante do Banco do Brasil ou da prefeitura, um padeiro preparando as massas de pão para logo mais ou mesmo um mendigo dormindo na praça, alguém acordado com quem eu pudesse conversar e recuperar o senso de realidade roído pelos monstros insanos de um pesadelo. Quem não julgaria uma perversidade do destino se, em um contexto destes, essa pobre criança fosse brindada com outro pesadelo, desta vez cru e acordado, tão sinistro como aqueles que lha fizera pular da cama e andar ao luar feito um sonâmbulo esquizofrênico? Pois fora o que me aconteceu certa noite de verão em 1973. Hoje posso contar o ocorrido, disfarçado sob o manto da ficção, posso até me envaidecer de ter uma imaginação privilegiada, mas, aceitar o fato como aconteceu, foi uma das experiências mais difíceis que me aconteceu em toda a minha vida. Eu andava pela rua solitária passando a mão pelas paredes - hábito que minha babá censurava dizendo que pessoas cuspiam nas paredes ali depositando seus germes imundos, mas, sozinho, andar com as mãos deslizando na parede era uma forma de sentir que estava acordado e descarregar ali também os germes de meus pesadelos (quem sabe os dormentes do lado de dentro das casas não pudessem ficar com eles e me devolver o sono perdido?); e foi assim, perto de uma esquina onde a luz de um luar vigoroso brigava com os raios sépia das velhas lâmpadas amarelas dos postes elétricos, que vi passar a poucos metros de meus olhos, um medonho cortejo de móveis cujas pernas animadas e vivas deslizavam sobre as pedras do calçamento! Armários, mesas, cadeiras. prateleiras, camas, algo em torno de vinte móveis, alguns ainda arrastando uma toalha ou derramando o conteúdo de suas gavetas, passaram diante dos meus olhos, descendo a rua da Igreja em direção a um beco que findava em um terreno baldio para, enfim, se perderem nas margens do Rio Verruga. Não acompanhei, óbvio, o destino final daquela assombração. Voltei correndo e alucinado para casa, me joguei dentro das cobertas de minha cama e "rebucei" pé e cabeça, tremendo de medo, de todos os pesadelos esquecidos e voltei a dormir agora que o medo estava do lado de fora do sono. Quando acordei, não tive coragem de contar para ninguém a livusia da noite anterior, e passei o dia inteiro torturado com o que havia presenciado. Sabia que passaria por maluco ou zombeteiro se contasse para alguém. Busquei refúgio na fantasia: minha babá costumava dizer que, à noite, todos os animais saíam da floresta (nossa cidade era cercada de "matinhas" que para mim eram tão densas e grandiosas como as florestas dos gibis e do cinema) e vinham todos andar pelas ruas da cidade, farejando as portas e janelas em busca de restos de comida ou de alguma criança desobediente que os pais abandonavam do lado de fora para que os animais as levassem consigo para viver na floresta! Com isso ela pedia para que ficássemos em silêncio, atentos para os barridos distantes de um javali, miados de uma onça ou o deslizar sorrateiro das patas de um jacaré. Tal silêncio e concentração, misturados com a emoção de sentir o desfile das feras do lado de fora do meu quarto, era uma estratégia perfeita para nos fazer dormir, eu e meus irmãos mais novos. Mesmo não acreditando mais nisso, pois tinha então dez anos completos e uma alma de jovem cientista, passei a noite seguinte a acreditar nessa fábula da minha babá, ou pelo menos tentar, para esquecer a visão fantasmagórica que vi na noite anterior. Não dera certo. Eu penava imaginando os animais andando sorrateiros pela rua, mas logo o nariz de um macaco virava uma maçaneta, o casco de uma tartaruga se achatava feito um tamborete, uma zebra revelava entre as listras negras o interior de uma cristaleira... E logo minha casa estava cercada de móveis mal assombrados, dançando uma dança macabra esperando que eu saísse para me doparem de naftalina e me levarem para algum galpão de antiquário, o inferno dos móveis, onde quer que fosse isso! Não consegui dormir direito. Acordei bem cedo disposto a contar tudo para minha mãe, mesmo que sofresse por isso um baita de um castigo, ou mesmo que eu fosse internado no colégio dos padres para curar meus pesadelos e visões endemoniadas! Estava já na porta da cozinha, com os olhos sonolentos e ensaiando como contar tudo, quando ouvi uma vizinha conversando com minha mãe e lhe dizendo que algo muito estranho havia ocorrido no dia anterior, na casa de uma senhora que morava do outro lado da cidade. Segundo ouvi ela contar, durante a noite, todos os móveis da casa dessa senhora, assim como os de duas outras na mesma rua, haviam desaparecido completamente! Sem deixar rastro nenhum! Sumiram! O delegado fora avisado e a essa altura já estava interrogando todo mundo no local em busca de pistas sobre o misterioso e habilidoso ladrão! Que alívio! E que emoção! Aquilo então fora real, ou pelo menos poderia ter sido! Me agarrei com todas as forças naquela possibilidade, no vínculo entre a assombração que vira e o roubo misterioso dos móveis. Eu não era louco e iria fazer tudo para provar que o desaparecimento dos móveis tinha se dado daquele modo absolutamente surreal e tenebroso! O mundo mágico da infância seria finalmente suplantado pelo espírito científico da investigação policial a que eu iria me entregar apaixonada e desesperadamente. Foi esse o meu rito de passagem, a cruel experiência que me fez amadurecer e me tornar um rapazinho no período de um inesquecível verão! 


Naquele mesmo dia, cabulei as duas últimas aulas e saí da sala durante o recreio. Fui direto, como se pode imaginar, até a Rua onde ocorrera o estranho sumiço dos móveis. Havia alguns curiosos por lá e não foi difícil pra mim infiltrar-me pelos humildes aposentos e ouvir as conversas. Não havia nenhum sinal de arrombamento, exceto que a porta também havia sido roubada e desaparecido (mas tarde, refletindo em casa, me lembrei de ter visto, no cortejo mal assombrado dos móveis em fuga, algo similar à uma porta de pernas curtas improvisadas e a maçaneta feito um nariz inchado a farejar o licor da noite vesperal). Logo percebi que só móveis de madeira foram roubados, pois o fogão, geladeira, TV - que na época custava uma fortuna -, nada que fosse de outro material havia sido furtado. Passei a tarde perambulando pela serraria em busca de alguma pista, pois ali se fabricava alguns móveis, como mesas, cadeiras, estantes, armários, mas nada consegui descobri. O único jeito era passar as noites em claro na esperança de rever se o criminoso, conforme reza a lenda, voltaria à cena do crime. Por mais absurdo que fosse o ponto de partida de minhas perquirições, pelo menos eu sabia, ou acreditava saber, o local exato por onde o roubo era escoado. A rua que descia a travessa do banco do Brasil até as margens do Rio Verruga. Agora, explicar o que era exatamente aquele fenômeno, era algo que estava além de um simples caso policial! Era a minha razão que estava em jogo. Ou eu explicava aquilo para mim mesmo, ou teria que recalcar o incidente, e com ele toda a memória dessa fase da vida, nos subterrâneos do inconsciente, algo parecido com morrer, pois sabemos como as crianças associam a maturidade e a vida adulta como uma morte inexorável. E qual adulto, se pudesse ser visto pela criança que foi um dia, não ficaria envergonhado de parecer um morto-vivo perto do encanto e magia que possuía antigamente? Resumindo. Aquele incidente iria marcar minha passagem da infância onírica para a maturidade racional e enfadonha, e eu temia isso. Durante uma semana eu acordava de madrugada e saía para dar plantão perto da rua, na extremidade onde terminava o calçamento e a terra nua era cheia de entulhos onde eu ficava, ao luar, esperando por uma pontual assombração! Vi cães vadios, casais transando nos troncos de madeira espalhados ao longo do terreno onde o pó-de-serra espalhado formava um leito aquecido e macio para o fudistério e a fuleiragem, vi formas abstrusas nas nuvens ao luar, ouvi meu estômago gemer de fome, mas assombração que era bom... Nada!
Uma noite eu dormi nesse relento relento e acordei a tempo de ver uma penteadeira gemendo pelas gavetas passar tropeçando nos meus pés, sendo atiçada por um par de muletas a lhe fustigar o costado para que ela acelerasse o passo. Esfreguei os olhos e vi, lá onde a rua se fundia com o matagal na beira do rio, uma matilha de móveis quase saltitando. Corri atrás, vi rastros na terra úmida pela garoa, mas ao chegar na beira do escuro rio, nada mais vi. Desmaiei. Acordei muito depois na minha cama, ardendo de febre. Havia apanhado uma gripe medonha nas noites insalubres e tive a sorte de ser encontrado desmaiado na beira do rio por uma velha lavanderia que madrugava por ali. Contei tudo o que havia visto e feito de forma tão necessariamente insana e desconexa que supuseram todos que eu ainda delirava com a febre e redobraram os cuidados, me proibindo de falar ou de sair da cama. Minha alma ardia de curiosidade por notícias e foi um alívio imenso quando ouvi alguém comentar nas escadas que houvera mais um roubo de móveis na cidade, esse mesmo alguém repudiando a perversidade do ladrão capaz de roubar até mesmo um par de muletas de um pobre aleijado, embora nenhuma questão fizesse do velho cofre de cerâmica cheio de moedas que esse pobre senhor angariava em sua mendicância pela cidade. Me acalmei. Aquilo me deu alento para convencer a todos que estava tudo bem comigo. Cheguei a fingir de não me lembrar de nada do que dissera nem porque motivo fui encontrado desmaiado na beira do rio. Me diagnosticaram sonambulismo e delírio febril. Agora ficariam me vigiando de noite para eu não sonambular mais pelas ruas noturnas. Três dias depois e já eu estava lá, na rua da Caixa d'água, investigando as casas que tiveram seus móveis roubados. Como da primeira vez, só objetos de madeira havia desaparecido. Outra vez não encontrei pista nenhuma e, sem poder comentar com ninguém as visões noturnas que tive (poderiam me internar em uma clínica), estive quase desistindo de tudo e acreditando que alucinei aqueles móveis andantes, disposto a não resistir se meus pais me mandassem para um médico da cabeça na cidade vizinha! Foi então que - com uma memória e perspicácia digna de um sherlock Holmes - eu vi na janela de uma destas casas um vasilhame com um líquido amarelo e extremamente cintilante, viscoso onde me atinei de ter visto o mesmo líquido nas outras casas. Perguntei o que era aquilo e me disseram ser um óleo de peroba do campo que um mascate passava vendendo, de quando em vez, de porta em porta, por um preço extremamente barato. Era um lustra móveis muito poderoso. Perguntei se haviam passado tal produto nos móveis desaparecidos. Disseram que sim, sem entenderem que relação haveria entre o óleo de peroba e o misterioso ladrão. Eu também não fazia a menor ideia, mas a sensação de estar, enfim, na pista certa, era como o aguilhão que ferroa o cérebro de um cão quando este sente o faro de uma presa durante uma caçada. Agora era encontrar esse estranho mascate e, para tal fim, dediquei doravante todas as minhas artimanhas e ardis!
Foi mais fácil do que eu pensava. Ele chegava à sorrelfa, em dias de feira, cercado por uma matilha de cães e se apresentava como Libório Cigano, madeireiro aposentado que hoje extraía sementes e raízes medicinais. Fui encontrá-lo já na saída da cidade, após ter vendido dúzias de garrafas do tal lustra-móveis miraculoso. Abordei e lhe pedi um frasco. Seu olhar vítreo e estrábico me enchera o peito de medo e nada consegui lhe perguntar. paguei o preço pedido e voltei. Sua matilha de cães magricelos arrepiaram os pelos e rosnaram pra mim. Caí e quase quebrei o frasco. Não sei como cheguei em casa aquela tarde! Meu plano era idiota e genial ao mesmo tempo, como só uma criança pode conceber. Untei a minha cama com o óleo viscoso de aroma proustiano. Encharquei a tal ponto que tive até dificuldades em respirar de noite, ao dormir. No outro dia, mal a madeira absorvesse, eu dava outra demão, injetava o óleo obsessivamente nas dobradiças e parafusos, nos buracos de caruncho, nas lascas enviesadas de uma cama velha. Chumbei a madeira e nela apliquei todo o conteúdo do óleo que eu imaginava enfeitiçador! (E devia ser mesmo, pois, apesar de não termos nenhum tipo de memória olfativa {reconhecemos um cheiro ao senti-lo novamente mas somos incapazes de evocá-lo, de fazê-lo presente em nossas narinas}, o cheiro desse óleo de peroba do campo, ainda hoje, agora mesmo, posso fazer ele surgir com todo o ranço estupefaciente que tivera outrora). Ciente de que os dois furtos memoráveis se deram em uma noite de lua cheia, esperei pela próxima. Pus lanternas e canivete debaixo da fronha, um sanduíche de salame com rodelas de pepino e dormia de sapatos, acreditando que algo inusitado e sobrenatural iria me acontecer. E ACONTECEU!

  Penso ter dormido um pouco, só para acordar logo em seguida, em uma hora indefinida, sentindo minha velha cama se mexer. Ela não só se mexia como parecia se contorcer, revelando um encanto muito forte, capaz de dar à madeira rígida a elasticidade de um lombo de mula. Na hora só fui capaz de pensar: essa porra tá viva! Tive ânsia de pular fora, covardia mesmo, mas acabei me deixando levar pela curiosidade e pela sede de aventuras. A cama rastejou pelo quarto, pelo corredor, se contorceu pelas escadas como um furtivo rufião que subisse os degraus para comer uma empregadinha nos fundos, até ganhar a rua e disparar como uma tartaruga de desenho animado. Segurei firme na lateral, torcendo para que alguém visse aquilo e quebrasse o encanto (vai que fosse um pesadelo) mas meus pensamentos estavam muito confusos. E maravilhados. Tomamos a direção da rua do Banco do Brasil para logo encontrarmos um séquito de outros móveis vindos de várias partes da cidade a confluir no beco que levava aos confins da pequena cidade. Fui imediatamente ombreado por uma cristaleira retinindo taças e compoteiras e emitindo um som parecido com címbalos, Uma cadeira de balanço que parecia surfar nas pedras do calçamento e um banco comprido, em pé sobre os dois pés traseiros, com uma calcinha feminina na outra ponta, ali pendurada, provavelmente, para secar. Vassouras, rodos e cabides que pareciam voar nas asas de camisas e camisolas neles pendurados compunham o cortejo cuja velocidade e estupor não me permitira enumerar acuradamente. Saímos do calçamento para o resto da rua em terra batida, em seguida, rumamos para o rio. Para meu terror, como já suspeitava, nenhum móvel diminuíra a velocidade. Pelo contrário, subiam um pequeno barranco nas margens do rio Verruga, só para se atirarem lá do alto, ganhando assim o leito mais profundo. Quando minha cama subiu nos ares, pensei que fosse afundar ao cair, mas ela curvou-se como uma ave pescadora e deslizou sobre a espuma branca que o morfético luar iluminava. Era verão. Tempo da chuvas caudalosas e o rio estava chegando água. Suas margens invadiam barracos esparsos e dispersos ao longo das margens. Para eles eu gritei pedindo socorro, pois há muito que o pânico vencera minha intrepidez de detetive, mas gritei em vão. O próprio murmúrio tonitroante das águas abafava meus gritos. cravei meus dedos na beirada da cama, que pareceu sentir meu terror e curvou-se um pouco, mimando o formato de uma canoa, onde não houvesse mais o risco de escorregar dela para as águas sinistras. Um pouco mais na frente, sob o palor leitoso do luar, avistei o Rio Pardo, onde o Rio Verruga entregava, solícito, suas turvas águas. Este outro rio, onde a correnteza mobiliada adentrava, era salpicado de pedras e turbilhões de onde eu tinha certeza que não iria sobreviver. Orei fortemente e entreguei minha alma a Deus, já lamentando a injustiça de morrer tão cedo! Virgem, sem ainda ter comido uma única nêga que fosse, feito um Huckberry Finn naufragando em um simulacro de Mississippi, anônimo e enterrado sob as locas inatingíveis do leito escuro do rio. Dessa hora em diante nada mais vi, pois cerrei os olhos em estado de trauma. Para minha surpresa, os móveis começaram a remar com seus pseudópodes, seus membros improvisados, em direção à uma margem avançada, um longo banco de areia, para dali retomarem sua insana e macambúzia marcha. Do outro lado do Rio Pardo, subimos uma encosta inclinada para depois, em fila indiana, adentrarmos um pequeno bosque de mata fechada. O vento frio da madrugada castigava mas eu tremia por outros motivos (devo até confessar, coisa que jamais faria naquela idade, que minha cama esta toda urinada). Foi quando senti uma forte pancada na cabeça. Quando acordei minutos depois, estava amarrado ao tronco de um jequitibá, perto de uma pilha de móveis semi amontoados e, desta vez, em seus rígidos formatos originais. O feitiço havia passado, mas o meu crânio dolorido com a pancada mostrava que de pesadelo aquele episódio não tinha nada. Gritei com todas as forças dos meus pulmões, como qualquer criança gritaria. Imediatamente, de dentro da carroceria de um velho caminhão encostado ali perto, vi sair um vulto em minha direção. Logo o reconheci à luz merencória do luar congelado. Era o Libório Cigano, inconfundível em seu gingado indecoroso, o velho madeireiro aposentado que percorria a cidade vendendo seu milagroso óleo de peroba do campo e que, ficou provado agora, tinha tudo a ver com esse misterioso feitiço dos móveis mal assombrados.
_O que você vai fazer comigo? -Gritei quase sem voz antes mesmo dele se aproximar.
_ Você vai morrer, enxerido de bosta - me disse o velho perverso, com uma voz lúgubre e esganiçada. Mas não agora. Agora vou esquentar minha marmita e comer que essa noite tive foi muito trabalho. Comecei a chorar. ele ordenou que eu me calasse, me ameaçando com um tição de ponta ardente que ele retirou de uma fogueira onde sua panela repousava sobre pedras improvisadas. Eu engoli o choro e comecei a orar.
_ Mas antes de você morrer eu vou lhe contar minha história.
E sem que eu pedisse, ou mesmo desejasse - pois tudo o que eu pensava nessa hora era um jeito de me escapar daquelas cordas e fugir pelo mato -, ele começou a conversar meio que ruminando, em um sinistro solilóquio, enquanto mexia sua gororoba dentro de uma panela com uma longa e suja colher de pau:
_ Tudo começou a muito, mas muito tempo mesmo, quando essa região inteira era uma mata só, de ponta a ponta, da Serra do Marçal até a foz do Jequitinhonha, era só mata, mata, mata e mata....

...Sem se importar e eu iria acreditar ou não (as crianças são os seres mais céticos que existe), Libório Cigano prosseguiu sua narrativa, mantendo-me cativo enquanto esperava a comida ficar pronta:
... Nós, os madeireiros, após derrubar as melhores madeiras-de-lei de um local, carregávamos o caminhão e parte dos lenhadores voltava pra casa, outra parte ficava tomando conta das toras derrubadas, pois era comum outros lenhadores afanar os troncos abatidos. E foi assim, certa feita, que ficaram vigiando uma carga preciosa de Gonçalo-Alves e Jequetibá, três lenhadores, um deles o meu tio João Charuto que me contou essa história pois na época eu era um pirralho, assim como tu. Os três revezavam durante a noite na vigília da carga. O mais novo, que também era um artesão santeiro, escultor de santos para vender na feira, ao vasculhar os galhos em busca de um bom lenho, encontrou na mata um tronco de gameleira que muito lhe assombrou de tão parecido que era com o corpo de u'a mulher. Ele cortou fora e começou a esculpir a estátua que, conta meu tio, já nascera toda pronta, feito uma Eva do capeta ali na mata esperando alguém para enfeitiçar. No tempo das quatro horas de seu turno, o moço aparou aqui, lixou ali, afinou de lá.. E voilá! A mulher estava pronta! Brilhando debaixo dessa lua que não me deixa mentir! Deixou ela por lá e foi dormir impressionado com sua obra, sonhando com o dinheiro que iria conseguir ao vender na feira seu enfeite, que ele trataria logo de envernizar tão logo chegasse. O segundo vigilante, quando fez a ronda e viu a estátua recostada em um tronco, caiu de joelhos e quase chora! Que bruxaria era aquela, encontrar uma cópia perfeita de Adelina - sua esposa cuja morte trágica lhe fizera aceitar esse emprego de lenhador, para não se enterrar na bebida e no desespero - ali transformada em uma escultura no meio da mata! Sem saber o que fazer, correu até seus pertences no barracão, sacou da mala um alforje onde guardava os presentes que não teve tempo de dar a esposa nem coragem de se desfazer deles, guardando-os como uma estranha relíquia virginal, e levou-as até a estátua. Parecia enfeitiçado. Vestiu a madeira com um belo vestido de tafetá e organdi, furou as orelhas para ali depositar os brincos e argolas que Adelina tanto amava usar, vestiu-a de anéis, sandálias de couro fino e um pente que, providencialmente, pôs entre o decote dos fartos seios sob o califon de arame e algodão, o soutien que ele trocara por uma dúzia de galinhas (era granjeiro antes da viuvez) e que agora parecia arfar sobre o ícone encantado que respirava o sereno da madrugada! Assim, pasmo, voltou para a clareira e passou a guarda para o vigilante do último turno. Como se movidos por um destino misterioso, esse terceiro lenhador achou de deambular pela mata e veio a dar justamente no altar onde a musa de pau exalava seus licores aromáticos e resinosos misturados ao perfume barato ali untado pelo viúvo miserável!
_BRÍGIDA! - Gritou o meu Tio João Charuto. A mulher que ele um dia viu no Circo, balançando como um anjo nos trapézios. Por quem ele se apaixonara perdidamente! Ai estava ela, quase viva, sorrindo pra ele no meio das sombras ao luar. Meu tio era um rezador, sabia feitiços terríveis e rezas bravas herdadas de seus avós índios mongoiós. Contrariando as juras que havia feito ao padre quando se confessou, ele correu no mato, colheu as ervas certas e as cascas de madeira e raízes, misturou tudo ao fogo ali mesmo improvisado. em uma hora, aproximadamente, ficou pronto sua poção encantada. Rezou coisas terríveis, que nunca quis me dizer para quem, e depois passou o caldo escuro no corpo da estátua! Eu mesmo não acreditei quando ele me contou, só depois de ver o outro feitiço, o do óleo de peroba, é que eu acreditei na magia do meu tio. Bruxo sinistro! Tivesse ele aqui agora você já teria morrido!
 


(Eu quase desmaiei quando ele falou isso sem olhar para mim. Seus olhos eram vidrados na lua).
_ ELA SE MOVEU, PISCOU OS OLHOS, SORRIU PARA SEU CRIADOR! Estava viva, como viva parecia ser a magia movente da noite vesperal! O dia estava perto de clarear. Ele correu com sua noiva encantada para acordar seus colegas! Imaginem a confusão. Cada um achava que era a sua criação que ali estava, sorrindo e cantando músicas capazes de curar todos os males da alma! Cada um alegava ser o dono da moça. Brigaram feio, puxaram armas. Já iam se matar quando a musa de pau intercedeu e falou firme com eles. Ela iria decidir com quem ficaria! Não quis ficar com o viúvo, pois esse buscaria nela a esposa morta, projetando nela um fantasma que era justamente o que ela menos queria: se lembrar que também era um fantasma! Não quis o meu tio, pois esse também via nela apenas a sua trapezista que uma noite se divertiu com o tolo bugre do interior e partiu lhe deixando apaixonado. Ela iria ficar com o santeiro, que lhe queria apenas para ganhar dinheiro com ela. Na companhia dele ela viu muitas aventuras, golpes, trapaças, coisas muito mais dignas da sua natureza diabólica do que o amor romântico de rudes lenhadores! Com esse santeiro ela partiu por caminhos na mata que só ela dizia conhecer e nunca mais foram vistos! Meu tio, quando chegou em casa, completamente arrasado e envelhecido em muitos anos, me contou essa história sobrenatural e me falou da sua decisão. Ele tinha que destruir a sua criatura que se rebelou contra ele! Viajou em busca de seus parentes índios lá pras bandas de Itarantim-Ba e voltou de lá com uma estratégia pelos seu povo ensinada. Aprendeu a fabricar um óleo de peroba do campo que, se passado em peças de madeira, faziam estas ficarem encantadas e submissas ao seu poder, mas só durante a lua cheia e pelo tempo que o viático não se exalasse do corpo. Sua Brígida perversa só ganhava vida em noites de lua cheia. Durante o dia e nas outras luas, ela voltava a ser um estátua de madeira. Sua esperança era que o seu proprietário, tentando conservá-la sempre bela e protegida, viesse a passar desapercebido esse óleo sobre o corpo da sua boneca. Assim ele conseguiria trazê-la de volta até onde estivesse e queimar sua bruxaria! Acho que ele não iria queimar a Brígida se a encontrasse. Acho que ele estava ainda apaixonado. O certo é que nunca a encontrou. Passei minha vida viajando por cidades do país, com meu tio cada dia mais velho, vendendo o óleo quase de graça, trazendo os móveis e coisas de madeira até nossos esconderijos, mas ela mesma, a tal Brígida mais bela que todas as florestas do mundo.. Essa mesmo nunca apareceu. Meu tio veio a falecer e me ensinou a fabricar o óleo mágico. E assim vivo eu. Se essa dona Brígida aparecer, eu sou até capaz de abiscoitar ela, se for mesmo lindona como meu tio dizia - e falando isso deu uma cuspida tão grossa e grande no fogo que esse chiou e se apagou. Seu jantar estava pronto e minha hora de morrer havia chegado. - Mas meu negócio mesmo é roubar esses móveis. mando tudo para salvador, Recife, tenho compradores em muitos lugares. E assim vou vivendo. E muito me divertindo com essas livusias. Mas voce hoje viu tudo e não pode continuar vivo. Vai me denunciar, logo agora que estou perto da aposentadoria!
Enquanto ele falava assim, vi um vulto se aproximar pelo lado oposto. Era a minha cama. eu havia encharcado ela com tanto óleo mágico que o efeito ainda não passara e um resto de vida ainda pulsava nos seus veios envelhecidos e envernizados. Senti qual era a intenção da minha companheira de sonhos. Tentei desviar a atenção do meu carrasco:
_ E quem iria acreditar em uma criança de dez anos, contando uma historia tão cabeluda como essa? Iriam me internar em um hospício para crianças! Você já viu um hospício de crianças? Uma loucura! Crianças uivando, mijando para o alto e bebendo a urina sem deixar cair, crianças mordendo as outras e comendo cascas de ferida, crianças correndo dizendo que é Tarzan, que tem amigos invisíveis, sentindo dor que médico nenhum acredita... CRIANÇAS SÃO LOUCAS DE PEDRA!
Eu gritava e encenava. Ele me olhava achando que eu também já estivesse louco. Apanhou seu revólver da cintura... Foi quando minha cama voou no ar feito um jaguar de madeira e lascou a cabeça de Libório de fora a fora com a violência do seu golpe! Depois me soltou das cordas que já me cortavam a pele fina. Montei na minha cama e galopamos alucinados de volta para casa. O dia já raiava no horizonte o primeiro raio de sol faria o feitiço acabar. muita gente em Itambé - que tinha o hábito de madrugar - até hoje ainda conta, ou seus filhos e netos, do dia em que eu entrei pela rua do asfalto trotando em cima de uma cama que bufava e gemia feito uma mula sem cabeça, gritando por minha mãe e por Jesus, até parar na esquina da minha rua, quando a feitiço veio a acabar, como um automóvel sem combustível. Arrastei minha cama com muita dificuldade pelo passeio e entrei em casa empurrando Rosita ( o nome que eu dera a minha companheira de sono e aventura). Não falei com ninguém nem dei explicação nenhuma. Me lembro de estar enfurecido. Cansado de magia e de falar sobre isso. Todo mundo ficou sem entender nada. Entendam agora. Eu havia amadurecido com aquele episódio. Não era mais uma criança. Enterrei minha infância junto com esse segredo. E só o revelo agora, agora que, por ironia do destino, estou apaixonado por uma moça chamada Brígida e temo que ela possa ser a sempiterna musa encantada de madeira das noites de lua cheia!

FIM


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