segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O ÚLTIMO TREM DO SERTÃO! [P/ ANDRÉ SETARO (IN MEMORIAM)]






Corria, ou melhor, voava, o ano de 1985. Em salvador, um grupo de amigos apaixonados por cinema, se preparava para filmar um curta-metragem no interior do estado da Bahia e o diretor, o ainda atuante Joel de Almeida, estava eufórico com as excitantes atribulações que antecedem eventos dessa natureza. Viajamos para Jacobina, na Chapada Diamantina, e lá, sob um luar vigoroso e um sol inclemente sem igual, nos hospedamos próximos da Catinga do Moura, para as cenas históricas do filme. Para outro núcleo do roteiro (o filme era misto de documentário e ficção), teríamos que rodar uma cena sobre os trilhos de uma ferrovia e ali perto havia uma, a antiga via férrea ligando a cidade de Iaçu ao ramal de Senhor do Bonfim, no Recôncavo baiano. Um ramal já desativado, mas, conseguimos facilmente que uma velha composição fosse-nos cedida, com maquinista e tudo, para a cena pretendida. A heroína do filme, amarrada sobre os trilhos, seria salva por seu namorado, por mim interpretado, segundos antes de ser atropelada pela locomotiva. Tudo estava preparado, porém, tão logo começaram os ensaios, a atriz - cujo nome não me esqueci por ser o mesmo de um país de escritores geniais, Irlanda - deu um chilique desgraçado e disse não ter coragem de ficar deitada sobre os trilhos. Na primeira vez que ensaiamos, mal o trem apitou na curva, vomitando cinematográficas volutas de fumaça preta, Irlanda começou a gritar, se livrando das amarras frouxas que simulavam seu cativeiro e saiu correndo para os seguros braços do seu namorado, o fotógrafo Vítor Diniz - outra figura emblemática do antigo cinema baiano ainda vivo na memória de muitos. Não teve jeito de convencê-la, mesmo o maquinista lhe fazendo uma demonstração de como os freios eram excelentes e que ele iria apenas se aproximar dela enquanto eu lhe desamarrava, freando a 15, 20 metros de distância... Ainda assim ela tremia só de ver os êmbolos da máquina se movendo como aríetes que fossem deflorar uma camponesa histérica e virginal! Estávamos quase desistindo da atriz e procurando uma dublê, quando o Vítor Diniz teve uma ideia brilhante: Poderíamos filmar a cena ao contrário! Eu entraria em cena com Irlanda nos braços, andando de costas, amarrando ela nos trilhos, enquanto a locomotiva bem ali do lado começaria a apitar e a se afastar em marcha ré! Em seguida, era só montar o trecho do filme em sentido contrário devolvendo a ilusão do movimento natural (segundo Vitor Diniz, fotografo fabuloso, era só filmar com a câmera de cabeça pra baixo, permitindo assim a inversão do copião na antiga mesa de edição chamada de moviola) Fizemos isso. Fora mesmo muito instigante e agradável como um engenhoso truque, uma mise-en-scène da qual iríamos muito nos orgulhar depois. Ensaiamos e rodamos no mesmo dia, ao cair da tarde. O resto das filmagens transcorrera sem muitas novidades, exceto os prazeres e problemas de um set de filmagem que ficariam melhor descritos em still fotográficos e making-off. 
   Voltamos para Salvador e esperamos o retorno do copião que na época era enviado para ser revelado no Rio de Janeiro e costumava demorar de vinte a trinta longos dias. Quando, enfim, sentamos diante da moviola da Fundação Cultural nos Barris, para ver o material filmado, uma tragédia se abatera sobre o nosso circense improviso e empirismo herege. A cena dos trilhos, quando rodada em sentido inverso, de fato era a mais perfeita tradução de um movimento original: a locomotiva se aproximava perigosamente da moça amarrada nos trilhos, onde um sôfrego galã tentava lha libertar, conseguindo tal proeza a poucos metros da máquina fumegante e saindo de cena com a moça nos braços... O problema era a chaminé da locomotiva. Ao ser projetado no sentido inverso, a fumaça que saía da longa chaminé era vista ENTRANDO por ela, como uma nuvem que, literalmente, entrasse pelo cano, quebrando todo o realismo e revelando o truque inteiro! O desapontamento se abateu sobre todos da equipe. O filme estava seriamente comprometido! José Araripe, Pola Ribeiro e Edgar Navarro, cineastas mais experientes do nosso grupo, nos admoestaram severamente por tamanha irresponsabilidade com o dinheiro de um Edital público.
     A cena era imprescindível para o enredo filmado e a depressão era incontornável. Em silêncio nos despedimos sob uma garoa dourada que zombava de nós ou tentava nos consolar - a depender do ponto de vista, pois a única opção que eu me recusava era acreditar que o mundo e a natureza fosse indiferente à minha tragédia pessoal! Era meu primeiro filme como ator! - Insone, fiquei aquela noite a fitar o céu noturno pela janela do meu quarto, por onde brilhava sobre o mar um mesmo luar do sertão ( pois que estava seca e deserta minha alma). Foi quando, vendo as nuvens correrem sobre os mantos de cúmulos e nimbos do céu soteropolitano, tive uma ideia magistral (Senti uma pontada agora no osso da modéstia): Todo mundo já viu como, em certos momentos de luar com muitas nuvens, temos uma breve ilusão de ótica e vemos a lua correr vertiginosa sobre o manto de nuvens estáticas e majestosas. Uma impressão tão marcante que pode demorar horas, se dermos asas à imaginação e deixar ela guiar o nosso olhar. Me recordei então de ter visto certa noite, nesta mesma cidade e neste mesmo lugar, um pequeno avião bimotor varrer a noite entre as nuvens (eu morava em frente ao antigo Aeroclube, um aeroporto amador na orla de Salvador, depois em shopping transformado. Era comum aviões decolar ou voltar para lá nos mais diversos e improváveis horários). Nessa recordação, eu revi perfeitamente uma cena encantadora onde o avião encoberto por grossas nuvens, projetava entre elas o facho de seu poderoso farol. Um rastro de luz a cortá-las veloz. Tive então a mesma ilusão de ótica da lua viajando no céu. Vi as nuvens estáticas migrando alucinadas para dentro do feixe de luz como se este estivesse parado e elas sendo por tais raios tragadas em um vórtice turbilhonar. A ideia, que imediatamente, por telefone, expliquei ao Joel - que também não dormia do outro lado da cidade - era refilmar a mesmíssima cena, agora em uma ferrovia no subúrbio da nossa própria cidade, mas usando um holofote à guisa de lanterna ao lado da chaminé, projetando um feixe de luz dentro da coluna de fumaça, para que, ao se deslocar em marcha à ré (a fobia da atriz era algo que ninguém conseguia mesmo reverter e sábio seria o cronista que extraísse desse episódio uma máxima a rezar: "mais fácil fazer um trem andar ao contrário do que reverter as manias de uma mulher!), criasse uma ilusão de fumaça entrando; então, quando projetado ao contrário na montagem final e gerasse o efeito de estar vindo em sentido convencional, a ilusão de fumaça entrando se converteria em fumaça saindo! Imaginem o espanto dos técnicos mais burocráticos da equipe nos vendo filmar um trem com um farol dentro da chaminé e com a câmera de cabeça pra baixo! Refilmamos a cena nessa mesma semana, desta vez na estrada de Ferro Calçada-Paripe, no subúrbio ferroviário de Salvador. Esperamos os mesmos angustiantes vinte dias da revelação para enfim montar o filme com esse antológico e original truque cinematográfico. 

E NAO É QUE DEU MESMO CERTO? Revi meses atrás esse filme, cuja cópia se encontra arquivado na Bibioteca do MAM, no Rio de Janeiro e o filme está arquivado com o título O JEGUE CEBOLA E OS PENTELHOS DE REGINALDA (Éramos então surrealistas na mais estrita acepção do texto e comungávamos o costume de batizar as obras com títulos que não tivessem absolutamente nada há ver com o conteúdo, conforme preconizava Benjamin Péret, Andre Breton e A. Bazin entre outros).  Calhou-me registrar esse episódio prosaico e engenhoso por conta de um estranho deja-vu que me ocorreu dentro da sala escura do MAM ao me rever com 22 anos de idade, no esplendor da minha juventude. De repente, no ato mesmo de libertar a mocinha dos trilhos e sair com ela de cena - cena que eu sabia ter sido rodada em sentido contrário - senti que não era mais eu quem fugia do meu passado em segundos vertiginosos e inexoráveis, mas sim, era o passado quem agora vinha vertiginoso ao meu encontro, feito um destino apitando na curva, a luz da minha vida que é toda a experiência que acumulei nesse mundo, me tragando e me atropelando como um trem de ferro desgovernado. Por um segundo pensei em me entregar à esse Deja-vu, deixar que ele me levasse pelo mundo da ilusão e da fantasia tão caras ao cinema, mas minha razão sempre covarde e prudente me devolveu rapidamente o senso da realidade. Dizem que, segundos antes de morrer, o moribundo vê toda a sua vida lhe passar pelos olhos como um filme ao contrário projetado, fenômeno conhecido como "Visão Panorâmica dos Moribundos", talvez eu tivesse, inconscientemente, ter tido medo deste deja-vu seguir viagem, feito um trem descarrilhado a extra-campo, arrastando com ele todo o maçante e melodramático filme da minha vida, medo de que esse paralaxe, invertendo a ordem natural, se tornasse a causa, e minha morte, seu efeito sintomático e inexorável! Talvez me aproximar de Irlanda, ali deitada como um afeto congelado no estofo do meu passado, tivesse acordado a fera de sua fobia e esta fera me espreitasse!

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