Corria,
 ou melhor, voava, o ano de 1985. Em salvador, um grupo de amigos 
apaixonados por cinema, se preparava para filmar um curta-metragem no 
interior do estado da Bahia e o diretor, o ainda atuante Joel de 
Almeida, estava eufórico com as excitantes atribulações que antecedem  
eventos dessa natureza. Viajamos para Jacobina, na Chapada Diamantina,
 e lá, sob um luar vigoroso e um sol inclemente sem igual, nos 
hospedamos próximos da Catinga do Moura, para as cenas históricas do 
filme. Para outro núcleo do roteiro (o filme era misto de documentário e
 ficção), teríamos que rodar uma cena sobre os trilhos de uma ferrovia e
 ali perto havia uma, a antiga via férrea ligando a cidade de Iaçu ao 
ramal de Senhor do Bonfim, no Recôncavo baiano. Um ramal já desativado, 
mas, conseguimos facilmente que uma velha composição fosse-nos cedida, 
com maquinista e tudo, para a cena pretendida. A heroína do filme, 
amarrada sobre os trilhos, seria salva por seu namorado, por mim 
interpretado, segundos antes de ser atropelada pela locomotiva. Tudo 
estava preparado, porém, tão logo começaram os ensaios, a atriz - cujo 
nome não me esqueci por ser o mesmo de um país de escritores geniais, 
Irlanda - deu um chilique desgraçado e disse não ter coragem de ficar 
deitada sobre os trilhos. Na primeira vez que ensaiamos, mal o trem 
apitou na curva, vomitando cinematográficas volutas de fumaça preta, 
Irlanda começou a gritar, se livrando das amarras frouxas que simulavam 
seu cativeiro e saiu correndo para os seguros braços do seu namorado, o 
fotógrafo Vítor Diniz - outra figura emblemática do antigo cinema baiano
 ainda vivo na memória de muitos. Não teve jeito de convencê-la, mesmo o
 maquinista lhe fazendo uma demonstração de como os freios eram 
excelentes e que ele iria apenas se aproximar dela enquanto eu lhe 
desamarrava, freando a 15, 20 metros de distância... Ainda assim ela 
tremia só de ver os êmbolos da máquina se movendo como aríetes que 
fossem deflorar uma camponesa histérica e virginal! Estávamos quase 
desistindo da atriz e procurando uma dublê, quando o Vítor Diniz teve 
uma ideia brilhante: Poderíamos filmar a cena ao contrário! Eu entraria 
em cena com Irlanda nos braços, andando de costas, amarrando ela nos 
trilhos, enquanto a locomotiva bem ali do lado começaria a apitar e a se
 afastar em marcha ré! Em seguida, era só montar o trecho do filme em 
sentido contrário devolvendo a ilusão do movimento natural (segundo 
Vitor Diniz, fotografo fabuloso, era só filmar com a câmera de cabeça 
pra baixo, permitindo assim a inversão do copião na antiga mesa de 
edição chamada de moviola) Fizemos isso. Fora mesmo muito instigante e 
agradável como um engenhoso truque, uma mise-en-scène da qual iríamos 
muito nos orgulhar depois. Ensaiamos e rodamos no mesmo dia, ao cair da 
tarde. O resto das filmagens transcorrera sem muitas novidades, exceto 
os prazeres e problemas de um set de filmagem que ficariam melhor 
descritos em still fotográficos e making-off. 
   Voltamos para Salvador e 
esperamos o retorno do copião que na época era enviado para ser revelado
 no Rio de Janeiro e costumava demorar de vinte a trinta longos dias. 
Quando, enfim, sentamos diante da moviola da Fundação Cultural nos 
Barris, para ver o material filmado, uma tragédia se abatera sobre o 
nosso circense improviso e empirismo herege. A cena dos trilhos, quando 
rodada em sentido inverso, de fato era a mais perfeita tradução de um 
movimento original: a locomotiva se aproximava perigosamente da moça 
amarrada nos trilhos, onde um sôfrego galã tentava lha libertar, 
conseguindo tal proeza a poucos metros da máquina fumegante e saindo de 
cena com a moça nos braços... O problema era a chaminé da locomotiva. Ao
 ser projetado no sentido inverso, a fumaça que saía da longa chaminé 
era vista ENTRANDO por ela, como uma nuvem que, literalmente, entrasse 
pelo cano, quebrando todo o realismo e revelando o truque inteiro! O 
desapontamento se abateu sobre todos da equipe. O filme estava 
seriamente comprometido! José Araripe, Pola Ribeiro e Edgar Navarro, 
cineastas mais experientes do nosso grupo, nos admoestaram severamente 
por tamanha irresponsabilidade com o dinheiro de um Edital público.
     A 
cena era imprescindível para o enredo filmado e a depressão era 
incontornável. Em silêncio nos despedimos sob uma garoa dourada que 
zombava de nós ou tentava nos consolar - a depender do ponto de vista, 
pois a única opção que eu me recusava era acreditar que o mundo e a 
natureza fosse indiferente à minha tragédia pessoal! Era meu primeiro 
filme como ator! - Insone, fiquei aquela noite a fitar o céu noturno 
pela janela do meu quarto, por onde brilhava sobre o mar um mesmo luar 
do sertão ( pois que estava seca e deserta minha alma). Foi quando, 
vendo as nuvens correrem sobre os mantos de cúmulos e nimbos do céu 
soteropolitano, tive uma ideia magistral (Senti uma pontada agora no 
osso da modéstia): Todo mundo já viu como, em certos momentos de luar 
com muitas nuvens, temos uma breve ilusão de ótica e vemos a lua correr 
vertiginosa sobre o manto de nuvens estáticas e majestosas. Uma 
impressão tão marcante que pode demorar horas, se dermos asas à 
imaginação e deixar ela guiar o nosso olhar. Me recordei então de ter 
visto certa noite, nesta mesma cidade e neste mesmo lugar, um pequeno 
avião bimotor varrer a noite entre as nuvens (eu morava em frente ao 
antigo Aeroclube, um aeroporto amador na orla de Salvador, depois em 
shopping transformado. Era comum aviões decolar ou voltar para lá nos 
mais diversos e improváveis horários). Nessa recordação, eu revi 
perfeitamente uma cena encantadora onde o avião encoberto por grossas 
nuvens, projetava entre elas o facho de seu poderoso farol. Um rastro de
 luz a cortá-las veloz. Tive então a mesma ilusão de ótica da lua 
viajando no céu. Vi as nuvens estáticas migrando alucinadas para dentro 
do feixe de luz como se este estivesse parado e elas sendo por tais 
raios tragadas em um vórtice turbilhonar. A ideia, que imediatamente, 
por telefone, expliquei ao Joel - que também não dormia do outro lado da
 cidade - era refilmar a mesmíssima cena, agora em uma ferrovia no 
subúrbio da nossa própria cidade, mas usando um holofote à guisa de 
lanterna ao lado da chaminé, projetando um feixe de luz dentro da coluna
 de fumaça, para que, ao se deslocar em marcha à ré (a fobia da atriz 
era algo que ninguém conseguia mesmo reverter e sábio seria o cronista 
que extraísse desse episódio uma máxima a rezar: "mais fácil fazer um 
trem andar ao contrário do que reverter as manias de uma mulher!), 
criasse uma ilusão de fumaça entrando; então, quando projetado ao 
contrário na montagem final e gerasse o efeito de estar vindo em sentido
 convencional, a ilusão de fumaça entrando se converteria em fumaça 
saindo! Imaginem o espanto dos técnicos mais burocráticos da equipe nos 
vendo filmar um trem com um farol dentro da chaminé e com a câmera de 
cabeça pra baixo! Refilmamos a cena nessa mesma semana, desta vez na 
estrada de Ferro Calçada-Paripe, no subúrbio ferroviário de Salvador. 
Esperamos os mesmos angustiantes vinte dias da revelação para enfim 
montar o filme com esse antológico e original truque cinematográfico. 
E 
NAO É QUE DEU MESMO CERTO?  Revi meses atrás esse filme, cuja cópia se 
encontra arquivado na Bibioteca do MAM, no Rio de Janeiro e o filme está
 arquivado com o título  O JEGUE CEBOLA E OS PENTELHOS DE REGINALDA 
(Éramos então surrealistas na mais estrita acepção do texto e 
comungávamos o costume de batizar as obras com títulos que não tivessem 
absolutamente nada há ver com o conteúdo, conforme preconizava Benjamin 
Péret, Andre Breton e A. Bazin entre outros).  Calhou-me registrar esse 
episódio prosaico e engenhoso por conta de um estranho deja-vu  que me 
ocorreu dentro da sala escura do MAM ao me rever com 22 anos de idade, 
no esplendor da minha juventude. De repente, no ato mesmo de libertar a 
mocinha dos trilhos e sair com ela de cena - cena que eu sabia ter sido 
rodada em sentido contrário - senti que não era mais eu quem fugia do 
meu passado em segundos vertiginosos e inexoráveis, mas sim, era o 
passado quem agora vinha vertiginoso ao meu encontro, feito um destino 
apitando na curva, a luz da minha vida que é toda a experiência que 
acumulei nesse mundo, me tragando e me atropelando como um trem de ferro
 desgovernado. Por um segundo pensei em me entregar à esse Deja-vu, 
deixar que ele me levasse pelo mundo da ilusão e da fantasia tão caras 
ao cinema, mas minha razão sempre covarde e prudente me devolveu 
rapidamente o senso da realidade. Dizem que, segundos antes de morrer, o
 moribundo vê toda a sua vida lhe passar pelos olhos como um filme ao 
contrário projetado, fenômeno conhecido como "Visão Panorâmica dos 
Moribundos", talvez eu tivesse, inconscientemente, ter tido medo deste 
deja-vu seguir viagem, feito um trem descarrilhado a extra-campo, 
arrastando com ele todo o maçante e melodramático filme da minha vida, 
medo de que esse paralaxe, invertendo a ordem natural, se tornasse a 
causa, e minha morte, seu efeito sintomático e inexorável! Talvez me 
aproximar de Irlanda, ali deitada como um afeto congelado no estofo do 
meu passado, tivesse acordado a fera de sua fobia e esta fera me 
espreitasse!
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
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