quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A ROSA PÚRPURA DO CAIRO!


 

Cássio Rucas abriu o site de notícias e deparou-se com uma notícia assombrosa: sua amiga de infância, prima em segundo grau e quase irmã, Judith Montanha, havia conseguido realizar um filme longa-metragem e iria exibir em muitos cinemas do país inteiro. Segundo a breve resenha, tratava-se de uma cinebiografia com foco na infância e primeira adolescência passada na pequena cidade de Itambé-Ba. Justamente onde se conheceram e compartilharam inesquecíveis anos de colégio, férias na fazenda e aventuras memoráveis. Judite sempre gostara de escrever e via todos os filmes que o único cinema da cidade exibia, quase sempre os revendo duas ou três vezes até que se trocasse a fita, como se dizia no linguajar da época. Seu pai havia mesmo comprado para ela um “permanente”, um ingresso contínuo que bastava apresentar na portaria para entrar, coisa que despertava a inveja das colegas menos endinheiradas que precisavam de muita arte e mimos para conseguir pagar as entradas. Era impossível que, em se tratando de uma cinebiografia, ele, Cássio Rucas, não fosse uma das personagens, bem mais até do que um mero figurante, mas um antagonista essencial na trama encenada. O resto da manhã ele passou relembrando da sua prima, como haviam sido enviados juntos para estudar na capital, da vida mágica e sofrida de estudantes pobres em Salvador-Ba (o pai dela havia perdido tudo no jogo e ele, Cássio, teve que trabalhar muito cedo para pagar os estudos e até ajudar a prima sempre à volta com livros caríssimos e com os imprescindíveis filmes nos cines Bahia, Guarani, Art, Tamoio e tantos outros que fervilhavam na capital baiana dos anos oitenta do século passado. Judite era sua confidente e testemunha do seu processo de amadurecimento. Compartilhava com a prima todos os seus sonhos de juventude e suas mais loucas ambições. Ela nunca lhe contava os dela, apenas lhe ouvia contar suas aventuras nas festas de largo, grandes festas populares de origem religiosa em Salvador que antecediam o carnaval, seus planos de ficar rico, seus inventos esboçados nas aulas de engenharia, que iriam lhe trazer sucesso e prestígio acadêmico... Judith era o apoio, a família então ausente, a fada-madrinha que aplaudia e incentivava com guirlandas de entusiasmo o piso movediço da sua juventude. Há quanto tempo não via ou falava com sua prima! Sentiu saudades e sentia-se também o verme da ingratidão ao lembrar que nem tinha mais o telefone dela! Da última vez que ligou a operadora lhe informou que o número não existia mais! Com remorsos, telefonou para alguns parentes distantes e pediu-lhe que conseguissem o telefone da sua outrora inseparável prima. Feito isso, agendou o resto do dia pra resolver as questões práticas e maçantes da sua e de todas as vidas. A verdade é que não conseguiu fazer quase nada, neste e nos próximos dias, com o pensamento obcecado em Judith e no filme que ela havia feito. Após dois a três dias de ansiosa expectativa, uma ex-cunhada lhe mandou um e-mail com o telefone da sua saudosa camarada. Ligou no mesmo instante. Foi como se o tempo não houvesse se passado, exceto pelo fato dela ter aprimorado mais ainda sua habilidade em nada falar de si mesma e deixar que seu interlocutor abrisse o coração e a alma. Cássio Rucas outra vez se viu contando para ela a sua vida, agora descolorida e resignada, sem a agitação dos sonhos e ambições de outrora. Consolava-lhe falar de sua nova vocação religiosa, sua conversão ao catolicismo, como se, repousada das agitações de outrora, sua líquida consciência pudesse agora refletir as profundezas espirituais do céu e sua alma andasse vislumbrando os mistérios da fé. Tentou até lhe esconder que, por baixo dessa água parada, o lodo e o limo estivessem se acumulando, dando a sua vida um sabor apodrecido, coisa que nem precisava dizer, visto a já conhecida perspicácia da sua interlocutora. Ela imediatamente percebeu a sua mudança e o envelhecimento do seu coração. Foi quando ela, rompendo a paz do seu silêncio, começou a lhe censurar de modo impreciso e proverbial, acusando-o de não ter sabido ver a vida em sua simplicidade e efêmera duração. Seus sonhos ambiciosos e seus planos extravagantes havia cegado seu coração para as dádivas da vida, feito um jardineiro que deixasse de colher as rosas pendentes dos galhos para cultivar exóticas orquídeas e bromélias em galhos do vizinho, parasitas de outras circunstâncias incidentais, que jamais tivesse a certeza de um dia colhê-las! Judith havia amadurecido seus anos de leitura e falava com uma sabedoria resplandecente, principalmente quando sua fala era emoldurada por longos períodos de silêncio e de atenta observação! Cássio ficou muito ressentido por ouvir uma verdade tão irrefutável e incisiva. Continuou conversando com sua prima concentrando-se em saber mais detalhes do filme – que ela insistia em dizer que seria uma surpresa – e em preparar uma despedida daquele longo telefonema (também era um sovina, detalhe que, entretanto, escapa da abordagem que hora ensaiamos). Ficaram de se falar novamente. Ela salvou seu número, lhe passou seu endereço e insistiu que ele seria um convidado de honra na avant-premiére do seu filme, em um festival no Rio de Janeiro. Despediram-se com contida emoção, ela com a indisfarçável impressão de ter muito mais coisas a lhe dizer, como um mestre que espera o discípulo estar pronto para lhe transmitir seus conhecimentos. Também restou a Cássio a sensação de que havia algo profundamente guardado por sua prima à espera de uma revelação, mas atribuiu sua reserva ao fato de estarem se falando por telefone, por se tratar de algo melhor dito “tête-a-tête”, como tantas outras coisas que, como ela mesma havia dito, era rosas não colhidas entre espinhos e ervas daninhas que a distância e o tempo semearam entre eles. Com certeza iriam se ver em breve e a velha fraternidade haveria de desabrochar. Ele estava mesmo precisando viajar um pouco e o lançamento do filme de Judith era uma alvissareira oportunidade.

       Não foi! O caprichoso destino inventou de complicar seus planos e, uma semana depois, em uma álgida manhã de outono, o mesmo site noticiara a morte súbita da sua prima, em um AVC fulminante, morta feito uma Dama das Camélias em seu leito saturado de flores, livros e fotogramas (o jornalista teve a sensibilidade de publicar a foto do leito vazio, coberto por um cartaz do seu filme, entitulado "O FUTURO REENCONTRADO", um patchwork de velhas fotografias, como se, por baixo daquele pôster, em outra e secreta modalidade, sua existência ainda perseverasse!). Cássio Rucas não era de se abalar com os golpes imprevistos da vida. Possuía antes o dom de assimilar com frieza as vicissitudes e, Deus sabe quando, ressentir muito tempo depois. Desta vez, contudo, já como um sinal de velhice e decrepitude, precipitadamente julgou, a dor fora-lhe imediata e ele chorou copiosamente...
A História termina aqui, sem um desfecho. Não me recordo quase nada de tê-la escrito um dia, apenas de que o final fantástico tinha a ver com a protagonista saltando viva da tela e indo ao seu encontro, como um fantasma de um amor perdido. Tudo isso após ele perceber que a lição e o enredo do filme era justamente o amor secreto que ela nutria por ele e que o parvo não fora capaz de perceber! Resolvi publicar assim mesmo, por não encontrar em meu coração cruel o sentimento que outrora motivou essa novela!
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