segunda-feira, 12 de outubro de 2015

CONTÁGIO!



“O lobo é a loucura; mas o luar é sabedoria.”
                                             Malcolm  Lowry


Acontecera no sudoeste da Bahia há muitos anos passados. O pai de Gilberto havia comprado uma fazenda em uma remota localidade chamada Pedra Azul, um estreito vale cujas montanhas ainda viviam cobertas pôr uma floresta frondosa e escura; comprou também um rebanho de ovelhas e decidiu que o seu filho iria viver na pequena casa de madeira, sede dos antigos proprietários, e pastorear os animais. Gilberto tinha quinze anos, estava orgulhoso da sua responsabilidade e ansioso para viver na solidão das montanhas como um selvagem. Partiu em u’a manhã ensolarada sem disfarçar a lágrima que maculava o seu heroísmo e distorcia a visão da sua mãe chorando na despedida. Uma vez pôr mês ele viria à cidade apanhar mantimentos e prestar contas do rebanho ao seu pai. Pensando nos amigos que havia deixado e em Clarisse, sua namorada – ela não sabia que era namorada dele –, Gilberto chegou ao vale quase sem observar a desolação da paisagem. Ao entrar na rústica casa de madeira fora logo acender o fogo e preparar o seu almoço; só depois saiu para contar as ovelhas perigosamente próximas à floresta. A sensação de liberdade era indescritível e ele corria pelo vale como um cordeiro, não sentindo cansaço quando prendeu todas as ovelhas no pequeno cercado ao lado da casa e, ainda correndo, ir verificar na curva da estrada a porteira da propriedade. Levou um susto medonho quando viu do outro lado da trilha, na fonte de água entre as pedras, a silhueta de um homem alto, coberto pôr uma longa capa de pele curtida, o cabelo pendendo das abas de um chapéu envelhecido.
  _ Boa Tarde, Senhor... – Gilberto gritou-lhe.
   O estranho voltou-se lentamente. Seus olhos brilhavam sob o chapéu. A sua magra e longa mão desenhou um breve aceno ao garoto e continuou a encher o pequeno cantil de alumínio com a água da fonte.
   _ O que você está fazendo?
 _ Apanhando água... NÃO CONSEGUE VER...? 
 Gilberto nunca havia ouvido uma voz como aquela. Parecia um carrilhão de sinos enferrujados, uma árvore tombando, um trovão nas montanhas, um barítono se afogando... que o leitor solte um grito dentro do seu quarto com o travesseiro no rosto; a voz do estranho terá com esse grito uma vaga semelhança. Gilberto recuou e voltou para casa. Encontrou as ovelhas inquietas no cercado e passou o resto do dia constrangido, dormindo a sua primeira noite encolhido e sobressaltado.. No outro dia manteve as ovelhas bem ao alcance dos seus olhos vigilantes. Havia sonhado que uma de suas ovelhas transformara-se em um lobo devorando todas as outras. Seu pai havia lhe alertado sobre uma espécie de lobo, o guará, que nesta época do ano fugia em bando das queimadas e vinham caçar pôr estes lados. Que viesse! A sua solícita espingarda dormia ao seu lado. No final do dia voltou ao cenário da véspera e reencontrou o homem estranho na fonte.
 _ Olá! – Gilberto ensaiou uma saudação com pouca naturalidade. O estranho respondeu com um grunhido e não se voltou.
 _ A Água daqui é melhor do que a do rio, é mais limpa...
  O silêncio do estranho era um claro sinal de animosidade mas Gilberto precisava muito de uma companhia naquele ermo deserto.
 _ Aonde você mora?
 _ALI! - O estranho apontou para a floresta. 
 Gilberto olhou na direção indicada e viu uma longínqua clareira. Nela distinguia-se vagamente um  casebre entre as árvores. Ao voltar os olhos viu um medalhão de prata no peito do estranho a brilhar sobre a capa. Viu também ser o corpo dele todo coberto de pelos hirtos e brilhantes. Gilberto deu dois passos para trás. Quando o estranho percebeu que a sua capa estava aberta e à vista do garoto, gritou uma imprecação que varreu a floresta assustando os pássaros aninhados em seus galhos. O crepúsculo espalhava sombras lilases e melancólicas sobre a estrada pôr onde Gilberto retornou correndo e assustado. Deitou-se sem jantar e sem coragem de retornar à fonte. Sentia-se profundamente envergonhado do seu medo infantil e não conseguia conciliar o sono. A sede o torturava. Levantou-se sob a lua cheia e voltou enfim à fonte. Um brilho de prata cobria então todo o vale e u’a música inaudível parecia embalar a relva fremindo sob a brisa das montanhas. Gilberto encheu dois garrafões e voltou mais confiante. Acordou altas horas da madrugada com um uivo tenebroso a ressoar pelas montanhas. “LOBO!”, pensou. Segurou a espingarda e ao ouvir de novo o uivo sentiu um calafrio percorrer o seu corpo. O timbre do uivo, vibrando nas velhas tábuas, parecia ter algo de familiar mas seu espírito contrito não podia associar nenhuma imagem: era todo mecanismo e ação. Correu até o cercado e encontrou as ovelhas umas sobre as outras, os olhos em pânico latejantes. Gilberto sentou-se ao lado delas com as mãos crispadas na arma e apontando-a ao menor ruído ao seu redor. Aos poucos fora se acalmando. A lua cheia descia  sobre as montanhas e parecia arrastar as pálpebras de Gilberto que enfim adormeceu sobre o dorso macio das ovelhas. Acordou com um raio de sol sobre o seu rosto. Contou o rebanho e deu pôr falta de uma ovelha. Viu sangue no lado de fora do cercado e seguiu a trilha em gotas vermelhas formada. Nas margens do riacho, no limite da propriedade, encontrou as vísceras do animal. Na outra margem ficava a floresta e uma trilha que bem poderia levar ao lugar onde o estranho dissera viver. “Deve estar passando fome”, fora o primeiro pensamento de Gilberto que não conseguia contudo dissimular a ira que tal afronta lhe provocava. “Se ele atacar de novo vou matá-lo!” Com este pensamento voltou-se para casa sem travar a sua arma pois uma parte dele não acreditava ser o estranho um ladrão de ovelhas e considerava a hipótese de um lobo solitário estar rondando as suas terras. Manteve os animais presos durante o dia e o dedo sempre no gatilho da espingarda. À tarde viu uma tênue coluna de fumaça na floresta e imaginou o eremita degustando a sua ovelha e lágrimas de ira correram em suas faces. Ao anoitecer foi à fonte com a arma sob o agasalho mas não encontrou quem esperava. “Tão grande deve ter sido o festim que o canalha não se agüentou em pé!.” Imaginou. Logo depois estava preparando um café bem forte. Iria passar a noite toda acordado. Amarrou uma ovelha como isca a meio caminho entre a casa e o riacho e improvisou um abrigo entre as pedras. O balido intermitente da ovelha o manteria desperto. O perigo também. A sua mente fantasiosa já antecipava as cenas de heroísmo e, quando voltasse para a cidade com a pele do lobo nos ombros, recolheria com modéstia a admiração incontida dos pais, dos amigos e de Clarice.
 Desta vez o uivo sinistro encontrou-lhe acordado. Pesadas nuvens cobriam a lua cheia e a escuridão pairava absoluta sobre o vale. Vaga-lumes riscavam a noite antes de serem tragados pôr obscenas línguas de sapo. Um cheiro imundo antecipava o animal dentro da sombra. A ovelha balia  e tentava se libertar da corda em seu pescoço enlaçada. Gilberto nem respirava, porém gritou quando uma massa quente e pesada abateu-se sobre ele. Suas mãos encontraram um tufo de pelos e sentiu muitas garras arranhando o seu corpo. O rosnar do animal encobria o seu grito desesperado. Tudo se passou em um tempo anômalo, em câmera lenta quase. Gilberto sentiu o seu braço ser rasgado pôr dentes truculentos. Em um esforço desesperado, pôs os dois pés no ventre do monstro e lançou-o para longe sobre os ombros caídos. Uma franja da lua olhava a cena atrás de uma nuvem escura. Sua mão tateante encontrou a espingarda. Um raio de luar brilhou em algo semelhante a um medalhão de prata. Gilberto mirou este raio e atirou. Ouviu em seguida ao estampido um uivo semi-articulado  que parecia dizer:
  _ FILHO DE UMA CADELA! – Ele reconheceu a voz do estranho e a dor no braço o fez desmaiar. Voltou a si com a ovelha lambendo o seu rosto. A ferida no braço, estancada em terra e sangue coagulado, pulsava em dores lancinantes; Havia marcas no peito, nas pernas e no rosto que talvez viessem a doer mais tarde quando estivesse menos excitado. Carregou outra vez a espingarda, tomou a direção do  riacho e o atravessou com as mãos erguidas segurando a arma. A aurora, manchando as águas de vermelho, compunha com o rosto ruborizado de Gilberto um quadro avassalador. A água fria reviveu as suas feridas mas a sua mente estava hipnotizada pela fúria. Um novo humor corria em suas veias, um fluido crisolado e maligno visível em seus olhos vermelhos e injetados. Em pouco tempo atingiu a clareira e o pequeno casebre onde o estranho dizia viver. Derrubou a porta com os pés e esperou a luz da manhã iluminar o interior. O gatilho da arma tremia sob os seus dedos. O que Gilberto viu no interior do casebre, poucos narradores podem dizer sem experimentar a vertigem que sentimos diante do absurdo e do grotesco: um ser em formas humanas, com o corpo coberto de pelos e com um buraco de bala no peito, jazia morto no chão. No lugar da boca, possuía um curto focinho com dentes caninos e gigantescos. Somente seus olhos vitrificados guardavam a expressão torturada de um ser humano. Gilberto sentiu náuseas e vomitou. Sua mente não estava preparada para suportar uma visão como aquela ( qual estaria?) e sentiu-se invadido pôr uma angustiante sensação de pesadelo. Em passos mecânicos  ele retornou para casa com o pensamento perdido em orações, torturas e medo. A imagem do monstro morto desenhava-se em seu cérebro a cada pulsão das cicatrizes e da ferida em seu braço como se uma parte do animal ali residisse. Estava decidido a deixar as ovelhas nas terras de um vizinho e voltar para a cidade no outro dia bem cedo... contaria o ocorrido a seu pai, iria à polícia e ao médico...
 Durante o resto do dia não sentira fome, apenas uma sede incessante que o fez ir várias vezes à fonte. Ali parecia ainda ouvir a imprecação do estranho ressoar pelas montanhas. Os arbustos espalhados pelo vale, à luz baça da tarde morta, assumiam aparências de homens deformados, de lobos ladinos e de ovelhas aflitas. As nuvens no céu desenhavam faces saturninas e monstros dantescos. Nunca antes tivera tantas percepções diabólicas e temia pelo que estava lhe acontecendo. Seu sentimento de ternura pelas ovelhas havia desaparecido, em seu lugar surgindo um estranho apetite como se pudesse adivinhar, sob o pelo alvo e macio, um sangue doce e lisérgico fluindo pelas veias. A ferida no braço doía cada vez mais. Gilberto decidiu dormir mais cedo. Sentia o seu corpo revolto como um casulo inchado. Não conseguia contudo fechar os olhos. O estranho parecia estar duplicado em suas pupilas, uivando e gemendo como se lhe doesse sobremaneira os longos dentes despontados na boca incapaz de os conter. A febre recomeçara e com ela, o delírio. O seu sangue fervia e sua pele estava toda arrepiada. Nas labaredas da febre o delírio se avivava e lhe fazia ver, confusamente, matilhas de lobos esfomeados rondando a casa. Logo após a meia-noite, ouviu ranger a dobradiça da porta. Uma caprichosa corrente de ar apagou a lamparina e ele não teve coragem de levantar e acendê-la. Sentia estar lidando com algo inevitável que luz nenhuma poderia iluminar. Seu corpo se encolheu sob os lençóis. Ouviu passos dentro da casa composta apenas de uma sala, uma cozinha e um quarto. Além do medo, havia nele algo novo, uma ira incontrolável, uma maldade germinada na ferida infectada. Ele hesitava entre o pânico e o ataque. O que quer que fosse já estava na porta do seu quarto, ele sentia a presença dentro de si mesmo como uma intuição inexplicável. Com o resto de humanidade que possuía ele quis gritar, e gritou: 
  _ QUEM  ESTÁ  AÍ ? 
 – Um grito hediondo feito o uivo de um lobo. A voz do estranho desarticulada lhe saía agora pela boca como se fosse obstruída pôr uma fileira de dentes insanos e ensangüentados ...

APÊNDICE:

O AMOR É MAIS FRIO DO QUE A MORTE!

Após perder todas as chances de reencontrar sua esposa amada e misteriosamente desaparecida, desiludido com as autoridades sonolentas do sudoeste baiano, que nada conseguiam levantar sobre o paradeiro de sua Doroteia, e tomado pelo desespero e pela superstição, Filadelfo Ferraz recorreu a uma entidade perversa junto a um feiticeiro que atendia atrás dos muros estiolados do cemitério de Itambé-Ba. Era lua nova e uma camada de breu de sete tonalidades vestia a noite com as vestes da imunda escuridão. A entidade, entre vômitos e palavrões em latim e outras línguas mortas que saíam aos golfos pela boca desdentada do feiticeiro em transe, disse que sua amada não pertencia mais ao mundo dos humanos. Desesperado, Filadelfo implorou que a entidade o levasse para viver no mundo dela, pois que de lá ela não poderia voltar e aqui, sem ela, ele não queria mais viver. Meses depois, moradores de toda a região do vale do Rio Pardo começaram a relatar assombrados casos de um casal de lobisomens que, após se banquetearem de madrugada com o sangue de ovelhas e novilhas destroçadas, corriam desvairados ao luar, uivando um demoníaco e amaldiçoado canto de amor que, segundo as testemunhas, dava em quem o ouvia retumbar nas montanhas frias e desoladas da Serra do Marçal vontades de morrer e, na morte, levar consigo a pessoa amada! 



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