segunda-feira, 12 de outubro de 2015

NEGRO É O SEU PASSADO (PARA SILVIA MARIA TOSTA)




Foi mesmo um grande alvoroço a chegada da professora Dinorah Mares à cidade de Itambé para dirigir a Escola Municipal onde estudei grande parte da minha infância. Viúva, apesar dos vinte e poucos anos, e dona de uma beleza sem igual, Dinorah logo chamou a atenção dos homens da cidade, e das mulheres também, que, temerosas por seus maridos assanhados, deram de fabular histórias escabrosas sobre o passado da sedutora professora. Antes de execrar tais senhoras da minha conservadora cidade (convém informar que era a década de 70 e que, de origem agrária, o moralismo do meu povo beirava as raias da histeria), devemos entender a origem da fofoca nas pequenas cidades do interior: são histórias necessariamente falsas, mas que antecipam o castigo e o opróbrio que a vítima pode sofrer se vier mesmo a praticar aquilo que as fofocas insinuam. Funcionam como uma espécie de aviso e ameaça. Assim sendo, falava que ela traia o marido sistematicamente na pequena cidade mineira de onde provinha e que esse morrera ao surpreendê-la na cama com um primo ou outro parente qualquer. Não demorou muito para Dinorah tomar conhecimento dessas histórias, mas seu orgulho aristocrático e seu espírito de superioridade – era a única professora da cidade com licenciatura e mestrado em Letras Vernáculas – lhe impunham reservas, desprezo e desdém pelas matronas despeitadas. Longe de nos afastar, homens da cidade, tais boatos só aumentavam nosso interesse pela bela senhorita e começamos sistematicamente a cortejá-la. De saída ela dispensou os aventureiros e os homens casados, recusando suas propostas milionárias e demonstrando assim ser bastante recatada, mesmo que as alcoviteiras insinuassem ser apenas o medo de ser, pela sociedade, achincalhada, a razão de seu pudor e recato. Quanto aos homens sérios e descompromissados, dois de nós conseguiram ter acesso à Dinorah e lhe fazer a corte, levando-a ao cinema e dando longos passeios noturnos na praça da cidade ao seu lado. Eu e o Deodato éramos os rivais felizardos. Um dia, durante um sorvete na sorveteria Guanabara, bêbado de amor, baunilha e chocolate, abri o meu coração e fiz uma proposta. Disse para Dinorah que eu me casaria com ela se ela me contasse todo o seu passado, pois não poderia negar o quanto aquelas fofocas torturavam meu coração “apassionatto”. Dinorah me fitou por um tempo. O tempo mais doloroso e demorado que já vivi. E me disse, de um modo muito misterioso, que aceitaria casar-se comigo primeiro, e que, seis meses depois, ela me revelaria toda a história da sua vida! Tremi e quase aceitei levianamente sua condição, mas logo percebi que não suportaria esse segredo. Que ele iria devorar minha alma duplicando-me as angústias e a suspeição que projetava uma sombra sobre o seu passado! Sim! Confesso que, naquela época, moço do interior e ainda impúbere, eu acreditava nas fofocas e imaginava, em um misto de excitação e sofrimento, sua vida de mulher devassa e orgíaca a enganar o pobre marido em uma pacata cidade de Minas Gerais. Assim sendo, recusei sua condição, na certeza de que ela representava mesmo uma confissão de algo execrável. Que outro motivo poderia ela ter para exigir aquele prazo? Afastei-me, ressentido, mas fátuo da minha dignidade, deixando o caminho livre para o tolo Deodato. Este - soube depois - deu provas de um amor maior ao lhe propor casamento. Disse-lhe que casaria com ela, se ela o aceitasse, sem querer saber absolutamente nada do seu terrível passado, jurando colocar uma pedra sobre tudo que houvesse ocorrido antes e nunca mais tocar no assunto. Isso a sensibilizou profundamente e, mesmo sem o amar - acredito - ela findou por aceitar o casamento. Fui o padrinho do noivo. Tive que aceitar o convite para demonstrar minha altivez e esconder minha paixão que só aumentava. Vi os dois viajarem pra lua-de-mel e vi partir com eles um pedaço da minha alma. Os anos se passaram. Não me casei. Meu amor por Dinorah se tornou uma chaga que só aplacava com jogatina, mulheres e álcool. Quanto mais me tornava escolado na face podre da vida humana, mas eu desconfiava das histórias que diziam ser a minha amada uma devassa disfarçada a enganar o meu amigo Deodato, pois disso a cidade inteira já falava, nunca a perdoando sua inteligência e estampa aristocrática. Ela continuava bela, até mesmo mais, com a languidez vaporosa que o tédio de um marido beócio e dedicado lhe proporcionava. No suspiro de alguns rapazes quando ela passava, reconhecia a mim mesmo e lamentava minha estupidez em ter recusado sua condição. Um dia, não suportando mais a curiosidade e o arrependimento, viajei até a sua antiga cidade natal e passei alguns dias por lá, fingindo estar comprando terras, mas na verdade investigando sobre o passado de Dinorah. Freqüentei os lupanares, corrompi senhoras solitárias e esmiucei a história da cidade. Quanto mais investigava, mas confirmava a verdade que eu não queria aceitar. Dinorah tinha sido um poço de virtude e recato. Uma autêntica mãe de família mineira, mesmo não tendo filhos, pois muito cedo seu marido morrera de um infarto no miocárdio. Seus anos de estudo em uma Faculdade em Belo Horizonte foram acompanhados por familiares onde ela morava. Nada lhe desabonava. Absolutamente nenhuma história de traição, adultério, orgias desbragadas! Tudo mentira das execráveis e invejosas mulheres pérfidas da minha cidade, do meu itambézinho miserável!!! Voltei arrasado para casa. Antes eu possuía a suspeita de seu passado devasso para atenuar o amor por Dinorah, agora não possuía mais tal lenitivo. Naquela época só me restava aceitar duas coisas: uma, que eu amava desesperadamente a esposa do meu amigo e, duas, na minha fidelidade à ele, na fidelidade a nossa amizade, imitar a Dinorah que também o respeitava – agora não tinha mais dúvidas! Seria nesse afeto mútuo e negativo, no respeito, que eu deveria unir espiritualmente minha alma a alma da minha amada. Confesso com orgulho que consegui. Durante dois anos, convivi com os dois e não permiti que jamais o meu sentimento viesse outra vez à baila, mesmo sem ter, essa minha restrição, a mesma espontaneidade com que Dinorah venerava seu esposo e o absoluto esquecimento de que um dia eu a cortejara. Tão intenso era o seu esquecimento de que um dia eu a desejei, que cheguei a pensar que, mesmo se ela houvesse pecado no passado, durante seu primeiro casamento, seria ainda assim capaz de anular todas as lembranças e voltar a ser a pura vestal de novo inviolável, como essas moçoilas do interior que, usando de milagrosos remédios para restaurar a virgindade, comprados à sorrelfa sob os balcões de farmácia, acreditavam e, por acreditar, voltavam a ser a fina flor da virgindade! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . .
Por isso e por méritos maiores dela, tornei-me um confidente de Dinorah, um dos poucos homens letrados da cidade que podia saciar seu desejo de conhecimento e sua paixão literária. Chegava mesmo a me confiar seus poemas, coisa que jamais mostrava ao seu marido Deodato. Um dia, tomei coragem e lhe contei tudo, que havia viajado a sua cidade natal, investigado toda a sua vida, confirmando que nada havia que a desabonasse, nenhuma nódoa em seu passado! Por que então, ousei perguntar, confessando assim, pela minha voz embargada, que ainda a amava, ela me fizera aquela estranha exigência de esperar seis meses após casado para ouvir a verdade de seus lábios? Mas antes de terminar a pergunta, eu já pressentia a resposta, ao mirar sobre um braço da estante um porta-retrato com a foto do seu marido. Óbvio que ela precisava desse gesto de confiança absoluta como prova de amor, de uma atitude firme ao invés de meras palavras! Ela percebeu que eu havia deduzido a resposta e apenas me sorriu com um gesto de melancólica candura que partiu meu coração. Então, em um ímpeto juvenil de vingança mesclado com o altruísmo do amor verdadeiro que eu queria desesperadamente provar, afirmei peremptoriamente que iria contar para o Deodato, para que ele soubesse finalmente que havia se casado com a mais virtuosa das mulheres, e que estava certíssimo em venerá-la como a esposa ideal! Para minha surpresa, tão logo sentiu a convicção fremir nas minhas palavras, Dinorah se jogou em meus pés e, ajoelhada, segurando minhas mãos, suplicou, pelo amor de Nossa Senhora de Guadalupe, de quem éramos devotos, que eu não fizesse isso! Lembro-me ainda de suas palavras tão pungentes e sopesadas:
_ Não, meu amigo! Ele não pode saber disso! Ele precisa dessa ilusão de um sacrifício, dessa sombra falsa de um pecado para se sentir igual a mim, ele que é cheio de pequenos defeitos, desonesto no comércio, fofoqueiro e iletrado! Esta sombra é uma emenda que, somada com a sua sombra curta, lhe permite se sentir no mesmo nível meu e você sabe que só pode haver amor entre os iguais! Destrua o mito do meu pecado e eu me tornarei uma santa para Deodato! Ele provavelmente irá me adorar como uma deusa, mas não irá mais me amar! Deixa ele se sentir o herói que resgata a mulher perdida do lamaçal! Posso viver como uma mulher imoral regenerada, mas não posso viver sem ser amada!
Meus olhos se umedeceram e percebi então como ela amava o seu segundo esposo – tão intensamente, ou mais, do que amara o primeiro. Voltei para casa reconciliado com a nobreza de certas mulheres e convencido de que não tinha mais o direito de continuar desejando u’a mulher que, à sombra de uma sórdida mentira, vivia com seu esposo em estado de verdadeira felicidade! Hoje, décadas passadas, quando vejo nas ruas a multidão de piranhas tatuadas e degeneradas bebendo nos bares, as cachorras nos realities da televisão, as trocas de parceiros nos motéis como se troca de sapatos, fico pensando que já não se fazem mais mulheres como Dinorah Mares!
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