segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O ENCANADOR DE ALMAS!




Fosse em uma cidade grande, onde o anonimato é uma maldição mas também uma benção, e Doriana Gray poderia passar despercebida por mais tempo, ainda que, mais cedo ou mais tarde, viesse a ser tema de conversas cada vez mais inquiridoras;
afinal, o tempo definitivamente parecia não passar para ela. Vivendo então em uma cidade pequena do interior, pode-se imaginar a celeuma causada por aquela esfinge que vinha atravessando as eras – medidas pelas modas que se sucediam – sem uma cã de alvos cabelos ou sequer um pé-de-galinha na butuca dos amendoados olhos. Seu corpo, gracioso, continuava a causar alvoroço entre os homens da praça, quando ela passava por eles cadenciando o ritmo dos pensamentos lascivos que muitos não ousavam externar. 
Vivia da pecuária, dona de dezenas de alqueires de terra herdados do seu finado esposo, de quem ninguém na cidade se lembrava mais, visto o intervalo de lustros que a separava do jazigo de família que ele mandara construir no cemitério, na esperança de que ela ali um dia, ao lado dele, se deitasse. “Ela não envelhecia, quem dirá morrer?” Comentavam o povo à boca miúda! Com o tempo, o que era visto como um feliz e raro caso de saúde, passou a causar estranhamento e suscitar lendas perniciosas e sinistras suspeições. Tinha sorte de que tal função fabuladora fosse atenuada pelo lento, mas inexorável crescimento da cidade e pela morte dos mais antigos, o que aplacava um pouco o estranho fato daquela mulher já ter algo em torno de 70 anos – pelo menos era o que se podia deduzir pela lápide do seu marido no cemitério – que ela religiosamente visitava no dia do aniversário dele. Mas os jovens céticos, ao ouvir os comentários, ridicularizavam os antigos prosadores das ruas descalças, dizendo ser aquele homem morto o seu pai ou avô, que ela, Doriana Gray, na verdade era a filha ou até mesmo a neta da primeira que, muito parecidas e levando uma reclusa vida na fazenda ou estudando na capital, causavam essa tola impressão. Paulinho Roskotroff, entretanto, não comungava dessa opinião! Havia se apaixonado por ela na juventude, chegaram mesmo a dar uns amassos atrás do muro da igreja e jamais a confundiria com uma filha dela! Hoje, também viúvo e com mais de sessenta anos, não conseguia acreditar quando a via – ultimamente cada vez mais reclusa, é verdade – pagando contas no banco, montando a cavalo em sua propriedade, ou conversando animada com uma costureira ou outra amiga latifundiária nas raras festas em que ela não podia se furtar em aparecer. Estava muito rica, todos sabiam, mas não havia dinheiro nenhum nesse mundo que pudesse manter-lhe a hipostasiada idade de 28, 30 anos, no máximo. Alí havia alguma coisa de sobrenatural, concluiu Paulinho Roskotroff. Disso ele entendia, desde cedo apresentando um agudo pendor para o inexplicável dessa vida e seu corolário de superstições. Sua casa era um depósito de revistas de mistério, filmes de terror em empoeiradas fitas VHS e livros muitos livros, a maioria de renomados charlatães, tratando dos segredos desta vida: ufologia, mesmerismo, a Doutrina Secreta de Helena Bralavsky, Eliphas Levi, Alquimia, Tarot Cigano, a astrologia de André Barbault, Rosacruzes e maçonaria, O Timeu de Platão, Hermes trimegistro, Danniken e Uri Geller... Nada escapava à sua curiosidade febril e a sua falta de rigor ou de espírito crítico. Conversar com ele era impossível sem ouvir uma cornucópia de mantras, símbolos sagrados e encantamentos taumaturgos capazes de ferver o juízo do mais aloprado dos doentes mentais. Felizmente, ele cultuava o mistério a ponto de praticá-lo nos mais banais momentos da sua existência, apenas insinuando seus conhecimentos esotéricos e esperando que sua fama crescesse, coisa nada difícil no meio de um povo rude e sossegado como aquele da minha antiga cidade.
Na fantasmagórica juventude de sua antiga namorada, ele viu enfim a confirmação de um destino intelectual para a barafunda de idéias mutiladas que havia colecionado ao longo da vida: ele iria descobrir o mistério daquela esfinge cravada nos desertos do tempo feito uma imagem móvel da eternidade! De uma coisa ela já sabia, sem precisar do luxuoso auxílio das mistagogias e dos almanaques: Doriana não estava mais viva, não no sentido do amadurecimento e fenecimento que dão à vida de cada um sua pátina de tragédia e de encanto. Parecia a ela ter perdido a consciência da morte no horizonte, fato constitutivo de toda vida interior, e sua aparente espiritualidade não passava de uma superficial florescência de árvores estéreis, pelo menos ele assim julgava, após o desprezo dela por todas as cartas e livros que ele lhe enviou ao longo dos anos. Somente a obra de Carlos Castanheda, ela confessou ter gostado e arriscou comentar os livros desse autor, mas a rara correspondência dela (três cartas apenas) se extraviou quando ele quis emoldurá-las com um pintor charlatão que as usou para tentar chantageá-la. O que também pôs um fim definitivo a sua tentativa de se reaproximar da sua antiga namoradinha. Segundo ele narra depois em seu arremedo de memórias, Foi justamente com as visões do Carlos Castanheda que mais se assemelhava o desfecho da viagem transcendental que ele empreendeu para descobrir a natureza do problema na origem daquele fenômeno sobrenatural. Óbvio que, quando li seu relato, vi muito mais uma imitação grosseira do Castanheda do que propriamente uma visão transcendental, mas me atinarei a relatar sua história abscôndita e fraudulenta.
 
Para entender o que estava acontecendo de misterioso com Doriana Gray, Era necessária uma viagem xamânica para fora do corpo, quando então ele poderia ver o que se passava no plano espiritual. Para tal, Paulinho Roskotroff fez um retiro na fazenda de um amigo onde, além de ervas cujo nome ele não podia revelar, jejuou dois dias, se alimentando apenas de chá de capim-gordura e dentes crus de alho porró. Na terceira manhã, ingeriu a beberagem de ervas sagradas com duas bolas de naftalina e sua alma subiu feito um foguete. Teve a clássica visão de estar cruzando um túnel ao mesmo tempo em que via toda a sua vida desfilar pelos seus olhos, o que nos leva a deduzir que ele, ou sua alma, cruzou o famoso cone da memória, uma espécie de furacão incorporal onde todo o passado vivido de repete em níveis diferentes de contração e distensão, indo dos hábitos motores inconscientes (memórias compactamente contraídas em processos de aprendizagem), até as mais panorâmicas lembranças ricas de detalhes, cores e sensações impregnadas. (Senti no seu relato uma inesperada inspiração proustiana, como também um uso explícito das teorias da memória do Bergson e seu famoso diagrama do cone que esse filósofo copiou do Aristóteles em Da Memória; mas pode ser eu quem esteja projetando isso no torpe relato do Paulinho Roskotroff). Em todo caso, ele conseguiu ultrapassar o cone e mergulhou em um alucinado oceano de lembranças impessoais misturadas que é a dimensão da memória cósmica,o Dehors, o Fora e tantos outros nomes (Castanheda o chamava de nagual, Artaud, de Ciguri e Paulinho Roskotrofi de “doidêra no caminho da feira”). Era ali que desembocava todos os cones empíricos que somos nós, existentes aqui nesse maravilhoso mundo cotidiano. Usando do amor, o sentimento que governava seu coração, Paulinho flutuou naqueles lençóis de imagens e sons vertiginosos onde algumas imagens, tão velozes, pareciam lhe surrar o rosto e o lombo como uma toalha molhada e sons estridentes rasgavam-lhe os tímpanos. Sentiu uma emoção maior guiar suas patéticas braçadas até um cone. O leito e as laterais dessa dimensão eram salpicadas de círculos escuros onde findavam os cones ou almas encarnadas. Não teve dúvidas, ao se aproximar de um destes orifícios, de ser ali onde a alma de Doriana desembocava aquelas lembranças que julgamos perdidas para sempre. Entretanto, para seu grande estupor, o buraco estava fechado, obstruído por duas massas amorfas uma preta e outra branca, como as duas metades do diagrama Taiji, da filosofia chinesa, onde Yin e Yang se abraçam e se complementam. Como uma bactéria se locomovendo em um meio viscoso, ele se aproximou mais do buraco da sua amada e viu que eram, visto de perto, dois seres semelhantes a seres humanos, abraçados e entalados na boca do “Túnel”. De uma maneira que não soube explicar, conseguiu se equilibrar e gritou, querendo saber o que se passava. O vulto de cor branca lhe gritou e a sua voz parecia atravessar uma horripilante geléia cósmica antes de entrar gelada em seus ouvidos:

_ Eu sou o anjo da velhice. Quando os homens foram entregues à morte, o Eterno se compadeceu e me mandou para dar aos homens um suplemento de vida e nossa missão é lutar contra os assaltos da morte, resistindo-lhe aos golpes implacáveis da sua foice hedionda. Nossas fraquezas são, na verdade, virtudes guerreiras. As cãs na fronte são os cabelos que ela não conseguiu arrancar, as rugas, como vales nas montanhas, são também a pele tenra que ela não destruiu, e nosso esquecimento senil também é um modo de simplificar e depurar a sabedoria! Vivemos em eterna luta contra a morte e hoje, devido a essa moça ter uma alma muito estreita, calhou de nós nos entalarmos aqui na entrada. Assim é que ela não envelhece nem morre, mas também não vive, pelo menos não a vida do espírito. Veja que seu cone não gira mais. Sua memória congelou no tempo....

A morte, feia como um cão, nada dizia. Apenas estertorava de vez em quando querendo se livrar do anjo branco que se entalara junto e ficava mais presa quanto mais tentava. Paulinho Roskotroff estava pasmo com o que via. Um zumbido intenso parecia ressoar dentro daquela alma oca que era agora a alma da sua amada. Juntou forças e conseguiu argumentar com o anjo da velhice:

_talvez você não deva se concentrar tanto nos golpes da morte. 
Talvez você deva viver sua própria vida sem se preocupar tanto com a morte inevitável, pois isso é certo. Ela sempre lhe vence no final! Talvez haja mais encanto em uma vida breve, mas intensa do que nesse eterno recolhimento, reserva e resguardo que é a vida daqueles a quem você visita! Pare com essa dialética que esconde a seiva breve de vida que você ainda tem, misturando-a com a sombra da morte fatal! Não se misture. Viva e deixe morrer!
 
Paulinho estava visivelmente empolgado - Não descartaremos o efeito das bolas de naftalina em seu estômago vazio. Desfilou um apologético discurso da “Vita Brevis” e das filosofias da imanência (Chegou a gritar em certo momento: PORRA DE PERSPECTIVAS! VIVAMOS DE INTENSIDADES!). E tanto charlou, tanto sofismou, tanto persuadiu que, os poucos, a velhice foi afrouxando seu abraço, sentindo esgar e aversão por aquela porra preta ao seu lado que era a morte infame. Seus olhos brilharam como os de uma adolescente apaixonada e ela conseguiu se afastar um pouco do buraco de Doriana. Foi o tempo necessário para que o anjo da morte, em um impulso inacreditável, se atirasse dentro do cone de Doriana, erguendo a estrovenga fulminante e decepando de um só golpe a junção estreita que liga a ponta ínfima do cone com a glândula pineal. Lá na outra dimensão, a dos corpos físicos, Doriana soltou um lírico gemido e caiu bem no meio de uma leira de alfaces que ela colhia para uma saudável salada. Caiu com a cara enterrada na terra fofa e de lá não se levantou mais.
 
Paulinho Roskotroff, ao ver pelo buraco da alma dela o desfecho dessa história, deu um grito medonho e acordou coberto de fétido suor rescendendo a alho porró. Acredita ainda hoje ter sido o culpado pela morte da sua amada. Isso lhe conferiu um ar trágico e sentimental aos seus dias insossos e banais. O vi pela última vez perto de completar 77 anos, de pijamas, na janela do seu quarto, ouvindo como sempre ao cair da noite, um disco onde Jean Moreau canta uma balada cujo refrão diz: EACH MAN KILLS THE THING HE LOVES. Não morre nem a pau. Parece que tem um troço entalado no cone da sua alma!


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