Fosse
em uma cidade grande, onde o anonimato é uma maldição mas também uma
benção, e Doriana Gray poderia passar despercebida por mais tempo, ainda
que, mais cedo ou mais tarde, viesse a ser tema de conversas cada vez
mais inquiridoras;
afinal, o tempo definitivamente parecia não passar para ela. Vivendo então em uma cidade pequena do interior, pode-se imaginar a celeuma causada por aquela esfinge que vinha atravessando as eras – medidas pelas modas que se sucediam – sem uma cã de alvos cabelos ou sequer um pé-de-galinha na butuca dos amendoados olhos. Seu corpo, gracioso, continuava a causar alvoroço entre os homens da praça, quando ela passava por eles cadenciando o ritmo dos pensamentos lascivos que muitos não ousavam externar.
afinal, o tempo definitivamente parecia não passar para ela. Vivendo então em uma cidade pequena do interior, pode-se imaginar a celeuma causada por aquela esfinge que vinha atravessando as eras – medidas pelas modas que se sucediam – sem uma cã de alvos cabelos ou sequer um pé-de-galinha na butuca dos amendoados olhos. Seu corpo, gracioso, continuava a causar alvoroço entre os homens da praça, quando ela passava por eles cadenciando o ritmo dos pensamentos lascivos que muitos não ousavam externar.
Vivia da pecuária, dona de dezenas de alqueires de terra
herdados do seu finado esposo, de quem ninguém na cidade se lembrava
mais, visto o intervalo de lustros que a separava do jazigo de família
que ele mandara construir no cemitério, na esperança de que ela ali um
dia, ao lado dele, se deitasse. “Ela não envelhecia, quem dirá morrer?”
Comentavam o povo à boca miúda! Com o tempo, o que era visto como um
feliz e raro caso de saúde, passou a causar estranhamento e suscitar
lendas perniciosas e sinistras suspeições. Tinha sorte de que tal função
fabuladora fosse atenuada pelo lento, mas inexorável crescimento da cidade
e pela morte dos mais antigos, o que aplacava um pouco o estranho fato
daquela mulher já ter algo em torno de 70 anos – pelo menos era o que se
podia deduzir pela lápide do seu marido no cemitério – que ela
religiosamente visitava no dia do aniversário dele. Mas os jovens
céticos, ao ouvir os comentários, ridicularizavam os antigos prosadores
das ruas descalças, dizendo ser aquele homem morto o seu pai ou avô, que
ela, Doriana Gray, na verdade era a filha ou até mesmo a neta da
primeira que, muito parecidas e levando uma reclusa vida na fazenda ou
estudando na capital, causavam essa tola impressão. Paulinho Roskotroff,
entretanto, não comungava dessa opinião! Havia se apaixonado por ela na
juventude, chegaram mesmo a dar uns amassos atrás do muro da igreja e
jamais a confundiria com uma filha dela! Hoje, também viúvo e com mais
de sessenta anos, não conseguia acreditar quando a via – ultimamente
cada vez mais reclusa, é verdade – pagando contas no banco, montando a
cavalo em sua propriedade, ou conversando animada com uma costureira ou
outra amiga latifundiária nas raras festas em que ela não podia se
furtar em aparecer. Estava muito rica, todos sabiam, mas não havia
dinheiro nenhum nesse mundo que pudesse manter-lhe a hipostasiada idade
de 28, 30 anos, no máximo. Alí havia alguma coisa de sobrenatural,
concluiu Paulinho Roskotroff. Disso ele entendia, desde cedo
apresentando um agudo pendor para o inexplicável dessa vida e seu
corolário de superstições. Sua casa era um depósito de revistas de
mistério, filmes de terror em empoeiradas fitas VHS e livros muitos
livros, a maioria de renomados charlatães, tratando dos segredos desta
vida: ufologia, mesmerismo, a Doutrina Secreta de Helena Bralavsky,
Eliphas Levi, Alquimia, Tarot Cigano, a astrologia de André Barbault,
Rosacruzes e maçonaria, O Timeu de Platão, Hermes trimegistro, Danniken e
Uri Geller... Nada escapava à sua curiosidade febril e a sua falta de
rigor ou de espírito crítico. Conversar com ele era impossível sem ouvir
uma cornucópia de mantras, símbolos sagrados e encantamentos
taumaturgos capazes de ferver o juízo do mais aloprado dos doentes
mentais. Felizmente, ele cultuava o mistério a ponto de praticá-lo nos
mais banais momentos da sua existência, apenas insinuando seus
conhecimentos esotéricos e esperando que sua fama crescesse, coisa nada
difícil no meio de um povo rude e sossegado como aquele da minha antiga
cidade.
Na fantasmagórica juventude de sua antiga namorada, ele viu
enfim a confirmação de um destino intelectual para a barafunda de idéias
mutiladas que havia colecionado ao longo da vida: ele iria descobrir o
mistério daquela esfinge cravada nos desertos do tempo feito uma imagem
móvel da eternidade! De uma coisa ela já sabia, sem precisar do luxuoso
auxílio das mistagogias e dos almanaques: Doriana não estava mais viva,
não no sentido do amadurecimento e fenecimento que dão à vida de cada um
sua pátina de tragédia e de encanto. Parecia a ela ter perdido a
consciência da morte no horizonte, fato constitutivo de toda vida
interior, e sua aparente espiritualidade não passava de uma superficial
florescência de árvores estéreis, pelo menos ele assim julgava, após o
desprezo dela por todas as cartas e livros que ele lhe enviou ao longo
dos anos. Somente a obra de Carlos Castanheda, ela confessou ter
gostado e arriscou comentar os livros desse autor, mas a rara
correspondência dela (três cartas apenas) se extraviou quando ele quis
emoldurá-las com um pintor charlatão que as usou para tentar
chantageá-la. O que também pôs um fim definitivo a sua tentativa de se
reaproximar da sua antiga namoradinha. Segundo ele narra depois em seu
arremedo de memórias, Foi justamente com as visões do Carlos Castanheda
que mais se assemelhava o desfecho da viagem transcendental que ele
empreendeu para descobrir a natureza do problema na origem daquele
fenômeno sobrenatural. Óbvio que, quando li seu relato, vi muito mais uma imitação
grosseira do Castanheda do que propriamente uma visão transcendental,
mas me atinarei a relatar sua história abscôndita e fraudulenta.
Para entender o que estava acontecendo de misterioso com Doriana Gray,
Era necessária uma viagem xamânica para fora do corpo, quando então ele
poderia ver o que se passava no plano espiritual. Para tal, Paulinho
Roskotroff fez um retiro na fazenda de um amigo onde, além de ervas cujo
nome ele não podia revelar, jejuou dois dias, se alimentando apenas de
chá de capim-gordura e dentes crus de alho porró. Na terceira manhã,
ingeriu a beberagem de ervas sagradas com duas bolas de naftalina e sua
alma subiu feito um foguete. Teve a clássica visão de estar cruzando um
túnel ao mesmo tempo em que via toda a sua vida desfilar pelos seus
olhos, o que nos leva a deduzir que ele, ou sua alma, cruzou o famoso
cone da memória, uma espécie de furacão incorporal onde todo o passado
vivido de repete em níveis diferentes de contração e distensão, indo dos
hábitos motores inconscientes (memórias compactamente contraídas em
processos de aprendizagem), até as mais panorâmicas lembranças ricas de
detalhes, cores e sensações impregnadas. (Senti no seu relato uma
inesperada inspiração proustiana, como também um uso explícito das
teorias da memória do Bergson e seu famoso diagrama do cone que esse
filósofo copiou do Aristóteles em Da Memória; mas pode ser eu quem
esteja projetando isso no torpe relato do Paulinho Roskotroff). Em todo
caso, ele conseguiu ultrapassar o cone e mergulhou em um alucinado
oceano de lembranças impessoais misturadas que é a dimensão da memória
cósmica,o Dehors, o Fora e tantos outros nomes (Castanheda o chamava de
nagual, Artaud, de Ciguri e Paulinho Roskotrofi de “doidêra no caminho
da feira”). Era ali que desembocava todos os cones empíricos que somos
nós, existentes aqui nesse maravilhoso mundo cotidiano. Usando do amor, o
sentimento que governava seu coração, Paulinho flutuou naqueles lençóis
de imagens e sons vertiginosos onde algumas imagens, tão velozes,
pareciam lhe surrar o rosto e o lombo como uma toalha molhada e sons
estridentes rasgavam-lhe os tímpanos. Sentiu uma emoção maior guiar suas
patéticas braçadas até um cone. O leito e as laterais dessa dimensão
eram salpicadas de círculos escuros onde findavam os cones ou almas
encarnadas. Não teve dúvidas, ao se aproximar de um destes orifícios, de
ser ali onde a alma de Doriana desembocava aquelas lembranças que
julgamos perdidas para sempre. Entretanto, para seu grande estupor, o
buraco estava fechado, obstruído por duas massas amorfas uma preta e
outra branca, como as duas metades do diagrama Taiji, da filosofia
chinesa, onde Yin e Yang se abraçam e se complementam. Como uma bactéria
se locomovendo em um meio viscoso, ele se aproximou mais do buraco da
sua amada e viu que eram, visto de perto, dois seres semelhantes a seres
humanos, abraçados e entalados na boca do “Túnel”. De uma maneira que
não soube explicar, conseguiu se equilibrar e gritou, querendo saber o
que se passava. O vulto de cor branca lhe gritou e a sua voz parecia
atravessar uma horripilante geléia cósmica antes de entrar gelada em
seus ouvidos:
_ Eu sou o anjo da velhice. Quando os homens foram entregues à morte, o Eterno se compadeceu e me mandou para dar aos homens um suplemento de vida e nossa missão é lutar contra os assaltos da morte, resistindo-lhe aos golpes implacáveis da sua foice hedionda. Nossas fraquezas são, na verdade, virtudes guerreiras. As cãs na fronte são os cabelos que ela não conseguiu arrancar, as rugas, como vales nas montanhas, são também a pele tenra que ela não destruiu, e nosso esquecimento senil também é um modo de simplificar e depurar a sabedoria! Vivemos em eterna luta contra a morte e hoje, devido a essa moça ter uma alma muito estreita, calhou de nós nos entalarmos aqui na entrada. Assim é que ela não envelhece nem morre, mas também não vive, pelo menos não a vida do espírito. Veja que seu cone não gira mais. Sua memória congelou no tempo....
A morte, feia como um cão, nada dizia. Apenas estertorava de vez em quando querendo se livrar do anjo branco que se entalara junto e ficava mais presa quanto mais tentava. Paulinho Roskotroff estava pasmo com o que via. Um zumbido intenso parecia ressoar dentro daquela alma oca que era agora a alma da sua amada. Juntou forças e conseguiu argumentar com o anjo da velhice:
_talvez você não deva se concentrar tanto nos golpes da morte.
Talvez você deva
viver sua própria vida sem se preocupar tanto com a morte inevitável,
pois isso é certo. Ela sempre lhe vence no final! Talvez haja mais
encanto em uma vida breve, mas intensa do que nesse eterno recolhimento,
reserva e resguardo que é a vida daqueles a quem você visita! Pare com
essa dialética que esconde a seiva breve de vida que você ainda tem,
misturando-a com a sombra da morte fatal! Não se misture. Viva e deixe
morrer!
Paulinho estava visivelmente empolgado - Não descartaremos o
efeito das bolas de naftalina em seu estômago vazio. Desfilou um
apologético discurso da “Vita Brevis” e das filosofias da imanência
(Chegou a gritar em certo momento: PORRA DE PERSPECTIVAS! VIVAMOS DE
INTENSIDADES!). E tanto charlou, tanto sofismou, tanto persuadiu que, os
poucos, a velhice foi afrouxando seu abraço, sentindo esgar e aversão
por aquela porra preta ao seu lado que era a morte infame. Seus olhos
brilharam como os de uma adolescente apaixonada e ela conseguiu se
afastar um pouco do buraco de Doriana. Foi o tempo necessário para que o
anjo da morte, em um impulso inacreditável, se atirasse dentro do cone
de Doriana, erguendo a estrovenga fulminante e decepando de um só golpe a
junção estreita que liga a ponta ínfima do cone com a glândula pineal.
Lá na outra dimensão, a dos corpos físicos, Doriana soltou um lírico
gemido e caiu bem no meio de uma leira de alfaces que ela colhia para
uma saudável salada. Caiu com a cara enterrada na terra fofa e de lá não
se levantou mais.
Paulinho Roskotroff, ao ver pelo buraco da alma
dela o desfecho dessa história, deu um grito medonho e acordou coberto
de fétido suor rescendendo a alho porró. Acredita ainda hoje ter sido o
culpado pela morte da sua amada. Isso lhe conferiu um ar trágico e
sentimental aos seus dias insossos e banais. O vi pela última vez perto
de completar 77 anos, de pijamas, na janela do seu quarto, ouvindo como
sempre ao cair da noite, um disco onde Jean Moreau canta uma balada cujo
refrão diz: EACH MAN KILLS THE THING HE LOVES. Não morre nem a pau.
Parece que tem um troço entalado no cone da sua alma!
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