segunda-feira, 12 de outubro de 2015

MEU PRIMEIRO FANTASMA


O título é equívoco. Os primeiros fantasmas, eu os experimentei na abertura para o sótão dentro do meu quarto, onde o maldito caseiro nunca a fechava completamente.
Por ali desfilava, no prelúdio do sono, os mais horripilantes fantasmas que podem assustar o ser indefeso que eu era. O lobisomem, a bruxa que comia criancinhas, a mula-sem-cabeça que eu insistia em representá-la com um grande focinho de asno cuspindo fogo pelos olhos vermelhos; todas estas imagens desfilavam pela fresta do sótão ao sabor da brisa noturna que ali escoava. Ainda um broto hirto e trêmulo, minha razão reagia: “é o vento, é o vento quem trás todas estas imagens para dentro do meu quarto.” Agora só havia uma entidade perversa a me atormentar: o vento. Ele estava lá fora rondando a casa, trazia em teu seio uma coleção de simulacros rodopiando e tinha a malévola intenção de me assustar...


O fantasma em questão era de carne e osso, precisamente, só de osso e ninguém poderia prevê-lo na linda manhã de primavera, anos atrás, no salão do colégio onde  u’a maçante reunião se dava. Ali ouvíamos todos, em silêncio, a palestra do diretor, um fascista cuja brilhantina nos cabelos à luz do vigoroso sol pela janela, mais do que a sua retórica empolada, ofuscava os ouvintes inquietos. O diretor estava eufórico. Havia lido recentemente um autor alemão de nome Baden, um prosélito do escotismo, e estava decidido a fundar um clube de escoteiros entre os alunos do colégio. Após a palestra inflamada pediu a minha opinião como presidente do grêmio estudantil. Todas as atenções se voltaram para mim. Arrogante, prepotente, espirituoso e inteligente - meu quadrunvirato dos treze anos que hoje nem sombras sequer deixou - respondi:

- Escotismo para mim, senhor diretor, é um grupo de crianças imbecis guiadas por um imbecil criança! - Concluí com ironia - a menos que o senhor esteja se referindo à filosofia de Duns Scott.

Um silêncio brutal desabou sobre o auditório. Uma das professoras que nutria por mim grande simpatia convidou-me para sair. Em poucas palavras pediu-me que arrumasse a pasta e fosse para casa. Ao dobrar a esquina da minha rua vi os meus pais esperando-me na porta de casa. Um telefonema adiantara-lhes a trágica notícia: eu estava expulso do colégio. Estive a ponto de pular de alegria mas contive-me em respeito ao meu pai. Ele era um eminente membro da maçonaria e sua intervenção diplomática fizera o diretor do colégio reconsiderar a minha expulsão. Eu seria readmitido no seio da augusta instituição sob a condição de ingressar-me nas fileiras do escotismo demonstrando com esse gesto a intempestividade das minhas opiniões. Não tive escolha nem pude evitar as longas noites insones quando a minha mente laboriosa carpia as mais terríveis vinganças... “Otiosa Mens, Labro Demos.”

Com o plano de vingança arquitetado fui um entusiasta defensor do escotismo e o projeto de uma excursão até as ruínas do povoado que dera origem a nossa cidade coroou-se com as filigranas da minha retórica e com o clamor dos meus aplausos. A construção de uma rodovia em meados do século fizera com que os habitantes se mudassem para as margens da estrada núncia do progresso e em breve o bosque se apossou das velhas casas abandonadas atrás da serra. Iríamos até lá, intrépidos escoteiros, prestarmos uma homenagem aos heróicos antepassados. Sugeri que a bandeira do nosso clube fosse fincada no antigo cemitério onde repousava os ossos imortais dos bandeirantes primevos. O diretor exultou-se com esta venerável sugestão e a excursão sairia no próximo domingo. O meu plano de vingança era ingênuo e inescrupuloso. No sótão da minha casa, dentro de um baú, as fantasias que a família usava nos antigos e suntuosos bailes de carnaval descansavam em paz. Entre elas havia uma roupa de esqueleto,  u’a malha preta que vestia o folião da cabeça aos pés e pintado sobre ela, em branco fluorescente, um esqueleto humano que era tudo a se ver quando o usuário desfilava por um corredor escuro. Senti estar exumando um cadáver quando retirei aquela fantasia do baú lá no sótão tenebroso. As lembranças da minha infância aterrorizada percorreram minhas vértebras como asas de um morcego. Desci as escadas correndo com a fantasia na mão e chamei Esmeraldo, o filho da minha ama que vivia entre nós como um irmão.

- Quero que você use isso no domingo. Espere-nos lá no cemitério da vila antiga e quando a escuridão cair sobre o acampamento, uive, grite todos os palavrões que souber, quero meus colegas idiotas e o nosso guia com o crânio arrepiado de tanto pavor. - Dizendo-lhe assim ensaiamos toda uma noite as fantasmagorias que iriam celebrar minha vingança.

No domingo partimos. Eu estava ridículo com aquela roupa de escoteiro e elido assim todas as imagens do passeio. No final da tarde, cansados e famintos, chegamos às ruínas do povoado. Erguemos o acampamento próximo ao cemitério onde, na manhã seguinte, iríamos fincar a gloriosa bandeira. Ao entardecer, após um banho de cachoeira, tratamos de acender uma fogueira e em volta dela comecei a contar estórias de terror visando preparar o espírito de minhas vítimas:

- ...Tenho um tio que mora no Peru e trabalhou na Universidade de Lima como assistente de um famoso arqueólogo, Juan Hernandez Cavahuesos. Um dia foram os dois explorar uma gruta onde havia fortes indícios de um cemitério Inca. Os feiticeiros deste povo eram enterrados em grutas distintas, separados dos mortais comuns. Começara a escurecer quando os dois descobriram a entrada da gruta e, ansioso, Juan Hernandez não quis esperar o dia seguinte em explorá-la. Os conselhos do meu tio soaram em vão. Hernandez desceu com uma lanterna. Meu tio Gomes segurava a ponta da corda e um microfone que permitia a ambos comunicarem-se. Após angustiantes minutos de silêncio meu tio ouviu a voz do Arqueólogo:

- É assombroso, Gomes!
- Que passa?
- Não acredito! Estão se movendo! Múmias! Meu Deus!
-Hernandez ! Volte! - Meu tio gritava ao microfone. Pela voz do arqueólogo pressentia-se algo abominável.
- DEUS ME DEFENDA! SOCORRO! NÃO! AHHH!...Seguiu-se um abrupto silêncio como uma ducha subitamente desligada. A corda tremia nas mãos do meu tio; ele quis descer, mas, congelado de pavor, tudo o que conseguia era gritar ao microfone com voz hebefrênica:
 - HERNANDEZ! HERNANDEZ! HERNANDEZ!-

Quando então ele ouviu pelo microfone a voz que o atormenta até hoje na clínica onde está internado tratando dos nervos. Uma voz inumana como se provinda das mais recônditas e maléficas estrelas:

- HERNANDEZ ESTÁ MORTO, SEU BOSTA!
- Meu tio, em estado de choque, puxou a corda. Seus instintos fizeram isso e ele viu surgir na outra extremidade o esqueleto do jovem professor ainda pingando sangue...

Os escoteiros mais jovens, chamados lobinhos, ficaram de olhos arregalados. Os mais velhos sorriram sem disfarçarem, contudo, a inquietude inspirada menos pela minha estória, mais pela atmosfera noturna cujas trevas começavam a envolver o cemitério. O diretor estava ocupado demais com o jantar que borbulhava no caldeirão não emitindo nenhum sinal de atenção às minhas fábulas. Quando estávamos todos em fila indiana com as tigelas na mão ouvimos um ruído de correntes arrastando-se sobre as pedras dos túmulos. O diretor deixou cair a colher no chão. Um grito de dor rasgou o rocio da noite:

- UHHHH! Salvem a minha alma! Uhhh... - Era Esmeraldo começando o seu número.
- Quem está aí? - Gritou o corajoso diretor.
-Alguém que não tem paz, tão quente é o azeite derramado sobre a minha alma lá no inferno, uhhh!...

Os escoteiros agruparam-se incontinentes em volta do diretor. Súbito, sobre as pedras, surgiu o esqueleto fluorescente à trinta metros de distância. Ele blasfemava, invocava legiões de demônios e arrastava a corrente sonante. No fundo negro do bosque o esqueleto configurava danças macabras e parecia estar se aproximando. O diretor, talvez por não acreditar na proteção daquelas frágeis criaturas, seus alunos, foi o primeiro a sair correndo pelo matagal - derrubou as panelas do jantar e duas barracas de dormir. Os escoteiros abandonados reagiram como era de se esperar. Fugiram em pânico por todas as direções embrenhando na mata suas faces transtornadas pelo horror. Eu não conseguia conter o riso. Dirigi-me aos fundos do cemitério, atrás do muro em ruínas onde combinei encontrar Esmeraldo e dividir com ele o mel da vingança. Esperei um longo tempo e ele não apareceu. Deveria estar nas ruínas do vilarejo trocando de roupas, pensei. Sabia em que direção ficava o vilarejo e resolvi ir até lá. O mato era cheio de trilhas e aventurei-me por uma delas. Lamentei depois não ser um verdadeiro escoteiro, pois não demorei  muito naquela noite sem luar para descobrir-me perdido. Definitivamente não sabia onde estava a antiga vila nem o caminho de volta ao cemitério. Pensei em gritar socorro e percebi ser vítima da minha própria vingança: meus gritos só iriam acentuar o pânico entre eles, os escoteiros, e nenhum socorro haveria. Era melhor esperar um pouco. Não fosse a fome torturante e eu poderia esperar até o sol raiar. Sentei-me sobre uma pedra coberta de musgo próxima de um filete de água, levemente arrependido de minhas perversões. Então, como se tivesse saído de dentro do minúsculo riacho, vi um esqueleto curvado sobre a água. Era Esmeraldo saciando a seda que a malha quente provocava, pensei.

- Obrigado por dar-me a vida! - Disse-me ele com uma voz cadavérica.
- Sou eu, Esmeraldo, pode tirar a máscara. O plano funcionou melhor do que esperávamos.
O vulto aproximou-se na escuridão. Seus ossos não brilhavam como antes, talvez pela ausência absoluta de luz. Próximo de mim Esmeraldo pediu:
- Acenda o meu cigarro! 

Só restava-me um palito de fósforo e nem me lembrei que Esmeraldo não fumava. Acendi o fósforo e então... Oh, Deus! Oh, visão maldita e inesquecível! Dentro da ilha de luz envolvendo o cigarro vi os ossos  envelhecidos  sem nenhuma carne ou malhas a envolvê-los. Um arrepio subindo pelas vértebras atingiu-me a raiz dos meus cabelos. “Isto é um pesadelo!”, Quis gritar, mas não consegui. O esqueleto tocou no meu rosto seus ossos frios e pontiagudos. Disse-me com voz agradecida:

- Obrigado, meu pai!

Dei um pulo como se uma descarga elétrica houvesse naqueles dedos. Corri com todas as forças dos meus treze anos. Arranquei folhas e arbustos, feri o rosto sem senti. Minutos depois, quase sem fôlego, vi as ruínas do cemitério e a fogueira do acampamento. Contive o meu terror e simulei, não sei como, uma plácida serenidade. Todos me olhavam com expressões severas. Esmeraldo estava sentado perto da fogueira vestido apenas com um calção.

- Que palhaçada, Cassiano! - Repreendeu-me o diretor. - Desta vez não há maçonaria que lhe salve. Você está definitivamente expulso do colégio!
- O que aconteceu, Esmeraldo? - Tive a coragem de perguntar.
- Um dos meninos, na fuga, caiu dentro de uma vala e torceu o tornozelo. Ele gritava de dor e eu me senti muito culpado. Tirei a fantasia e dei socorro.

Fiquei em silêncio, depois pedi desculpas ao garoto acidentado. Serviram-me um resto de jantar com tanto rancor nos olhos que temi estar a comida envenenada. Resignei-me com a expulsão irrevogável, mas não consegui dormir aquela noite. A visão que tive na floresta havia deixado minha alma insensível a qualquer outro problema. Que significava uma expulsão, um tornozelo partido diante da visão que a pouco havia tido? A vaga possibilidade de um engano, de ser aquela visão uma farsa de meus colegas fazendo-me provar um pouco do meu veneno fora a esperança a conciliar-me o sono. Tive pesadelos a noite inteira e de volta para casa, no dia seguinte, todos creditavam a expressão envelhecida e circunspecta do meu rosto à expulsão definitiva e respeitaram o meu silêncio. Meus pais estavam viajando e eu teria alguns dias a preparar-lhes o espírito. Recusei o almoço e subi ao meu quarto. Tomei um banho frio. Desabei sobre a cama e tive um sono profundo, sem sonhos. Acordei já noite feita com um estranho zumbido em meus ouvidos. Acendi as luzes do quarto no interruptor ao lado da cama. Olhei para a minha escrivaninha e sentado jocosamente sobre ela estava o esqueleto. Desta vez eu gritei. Gritei com todas as forças do meu peito.

- Pode gritar. Seus pais estão viajando e ninguém nos ouvirá! - Disse-me ele aparentemente limpando invisíveis unhas.
- Você não existe! Isto é um pesadelo! - Corri até a porta do quarto e a encontrei fechada. O esqueleto gargalhava.

- Existo sim e por sua causa. Você criou-me com a força da sua imaginação. Basta que duas pessoas acreditem numa ficção para ela se tornar realidade. E mais de um escoteiro acreditou em mim. Agora eu quero alimento para sobreviver.

Descobri que aquele ser possuía um poder imenso sobre mim. Um pai que gera um filho monstruoso não poderia ter mais náuseas e piedade do que eu. Era necessário lhe obedecer.

- Que tipo de alimento? Você não tem estômago!
- Eu me alimento de sonhos, seu banana! Vou lhe explicar como é isso. 

Todas as pessoas carregam sonhos consigo e poucas são as que perseveram até o fim. A maioria desiste no caminho. Quando isso acontece o sonho murcha e como uma seiva volta ao fundo da terra. Dizemos que ele é enterrado no local onde se consumou a desilusão e a renúncia. Eu sei destes lugares, mas não posso cavar a terra. Apanhe uma pá e venha comigo.

Tudo o que ele dizia era grotesco como o seu próprio ser. Tanta pertinência só aumentava o grau de realidade. Eu não precisava entendê-lo muito bem para obedecer. Meus ossos ressentiam uma grande afinidade com aquele ser e encontrei-me servindo seus propósitos insólitos. Caminhamos à noite pelos fundos de um quarteirão e o ridículo que era ser visto com uma pá nos ombros e falando sozinho era pouco constrangimento perto daquele ente cujos ossos estalavam com um som nauseante. Chegamos a um jardim. Um cão rosnou, mas ao pressentir meu companheiro macabro, arrepiou-se todo e se escondeu nos fundos da casa. Era a residência de um comerciante. Sua esposa tinha sido bailarina na juventude, mas abandonara a profissão para casar-se com o dono do profanado jardim.

- Cave aqui! - Disse-me ele apontando um local. 

Obedeci. Vinte minutos depois, gotejando suor, vi uma fina coluna de fumaça evolar da terra úmida. Uma névoa se formou e dentro dela  u’a moça em trajes de bailarina esboçava movimentos etéreos e ritmados. Parecia-me ouvir ao longe uma música feérica. O esqueleto saltou sobre a névoa e aspirou-a como um louco “haschinchin” a tragar fumaça de cânhamo. A névoa incorporou-se dentro daqueles ossos e senti meu hóspede embriagado de alegria dançando passos insanos sob a relva do jardim. Durante uma semana esta cena se repetiu. Meu hóspede faminto vinha reclamar a ambrosia do espírito e minhas mãos calejadas não tinham tempo de descansar. Quase todo mundo tinha seus sonhos enterrados no quintal: estrelas de televisão, astros do esporte, pintores magníficos... Nada escapava ao apetite do meu onívoro companheiro. Embora fascinado pelas fabulosas visões que esta servidão me proporcionava, era como um pesadelo que eu a vivia e passei meus dias pensando desesperadamente  u’a maneira de ver-me livre. Finalmente uma idéia surgiu. Tive um professor de literatura que era o mais mórbido homem do meu círculo de conhecidos. Seus hinos em louvor à morte era um corrosivo e sublime veneno aos entusiastas da vida e por três vezes ele tentara o suicídio tão convicto estava de ser a vida uma esperança miserável, um sonho combalido. Vivia apaixonado por  u’a mulher misteriosa a quem ele escrevia centenas de cartas sem nunca receber uma resposta. Um dia, inadvertidamente, essa mulher apareceu na porta de sua casa com duas malas na mão. Havia abandonado tudo para viver com o homem que a amara em páginas inesquecíveis. Pela primeira vez o vimos sorrir. Suspeitei que os mórbidos sonhos do professor estivessem agora soterrados no seu jardim, que a morte tivesse feito ali o seu frio ninho. Falei sobre este professor ao meu fóssil ambulante. Sonhos literários era o seu prato preferido. Filho de uma cena dramática, meu fantasma revelou-se profundamente edipiano. Quando, mentindo para ele, falei das grandes tragédias, das comédias, dos roteiros épicos que meu professor almejava escrever seus ossos tremeram de desejo.

- Vamos até lá, agora! - Disse-me estalando os ossinhos da mão.

Nesta noite cavei como um condenado. Sugeri ao faminto companheiro que ficasse bem próximo da escavação para não perder um detalhe sequer da obra-prima ali enterrada. Ele aquiesceu filosoficamente:

- Nas obras-primas o saboroso são os detalhes!

Meu coração batia acelerado. Esperava religiosamente que a morte estivesse ali enterrada a poucos palmos de profundidade. Felizmente eu não me enganara. Aos primeiros sinais da névoa onírica o esqueleto caiu com os maxilares na terra e, sem permitir que eu visse a cara da morte, sugou todos os sonhos como uma velha libertina. Ergueu-se depois com a cavidade dos olhos brilhando de ódio e gritou com um timbre medonho:

- FUI  ENVENENADO! - Em seguida se desfez em uma branca poeira que a brisa noturna cuidou de dispersá-la. 

Escrevi esta estória sem o menor entusiasmo. Temo inopinadamente que um jovem leitor venha a crer em tudo o que escrevi - então seríamos dois e estaríamos perdidos com esse fantasma redivivo. Aos censores do espírito sugiro que ela seja indicada como uma fábula escotista.

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