Desde os seus púberes anos, conforme as páginas de um suposto
diário espalhadas no quarto e recolhidas pela polícia, Antônio
Chacharrel possuía uma extraordinária memória visual, embora, naquela
idade, não pudesse perceber a excepcionalidade desse seu dom.
Entre as
suas primeiras lembranças – o registra – costumava olhar pela janela do
seu quarto, para o céu de nuvens variegadas, o bosque do outro lado do
rio, a feira-livre na praça do mercado para logo em seguida, deitado na
cama, fechar os olhos e reconstituir todas as percepções nos mais
ínfimos detalhes: As roupas coloridas de cada um dos feirantes, os
galhos intermitentes sobre a folhagem copiosa do bosque e o cortejo
protéico das nuvens no céu em suas formas eternamente estropiadas.
Inclusive, era capaz de reconstituir imagens que no ato de perceber não
houvera se atinado, como a asa branca de um curiango no galho sombrio ou
o leite derramado pela criança a chorar na barraca de frutas
importadas. Fato que denunciava um acesso instantâneo aos registros
obsedantes do inconsciente pela sua memória avantajada. Também era uma
criança inquieta e, como todas da sua idade, gostava de desmontar seus
brinquedos para ver o que havia dentro e depois devolvê-los a sua forma
original. Muito cedo também estes dois aspectos do seu espírito - de um
lado, a contemplação exaustiva e minuciosa do mundo ao redor; do outro, a
manipulação mecânica de suas partes – entraram em conflito. Um período
obscuro (que não ousaria decifrá-lo a partir de notas tão esparsas e do
testemunho extremamente sentimental dos seus obtusos pais) seguiu-se até
a idade dos quinze anos, quando, podemos deduzir com liberalidade,
ter-se-ia acentuado no jovem Chacharrel o conflito de faculdades
encarnado nas duas perspectivas profissionais que poderia herdar de seus
precursores pais. De um lado, a fotografia, a grande paixão de sua mãe,
sempre trancada no pequeno laboratório de revelação nos fundos da casa,
a quem ele edipianamente atribuía seu pendor memorialista; do outro, os
livros de física e matemática que seu pai fuçava todas as noites ao
preparar as aulas ministradas em uma duvidosa faculdade particular.
Livros que o pai porfiava lhe revelar as leis regendo o fundo nebuloso
das coisas. Finalmente, a continuar nessa psicologia vulgar que nos
enveredamos, ouso crer que ele terminou por encontrar, na opção que
fizera por uma profissão, uma solução para o conflito vocacional que
traduzia seu patético e universal conflito familiar. Com dezessete anos
incompletos, Antônio Chacharrel decidiu prestar vestibular para a Escola
superior de Engenharia mecânica. Nesta profissão aparentemente tediosa,
ele esperava encontrar uma razoável via de expressão para os dois
maiores pendores da sua vida mental. Nesta ciência ele encontraria o
universo concreto das forças aplicadas e mensuráveis, seu estofo
lógico-matemático, como também o encanto, pouco apreciado, de criar
máquinas mirabolantes com a precisão de relógios suíços, artefatos tão
graciosos em seu desempenho como bailarinas de uma caixinha musical,
peças cujo hipnótico maquinismo evocava os eternos brinquedos com os
quais passara a vida a desmontar. Ao mesmo tempo estaria lidando com um
repertório fascinante de imagens tridimensionais: polias, roldanas e
manivelas; eixos, cabos, rolamentos, trincos, molas, pistões, pêndulos,
catracas, parafusos, válvulas e êmbolos... Um cortejo de imagens
minuciosas encarnando o diagrama esquemático de suas cognições
físico-matemáticas. Durante os primeiros semestres, devido a sua
proficiência em visualizar qualquer imagem no écran da sua consciência,
ele raramente desenhava qualquer coisa preferindo evocá-la em sua
imaculada totalidade a representá-la em pálidas folhas bidimensionais;
assim sendo, contraiu e manteve por muitos anos o hábito de intencionar
todas as peças, máquinas e partes de máquinas nos projetos e trabalhos
efetivos como engenheiro em uma fábrica de motores estatal. Primeiro ele
concebia a máquina em sua dimensão adequada e em seus princípios
funcionais, depois ia concebendo peça por peça e montando-a
abstratamente sem que nenhum parafuso ou engrenagem, uma rosqueta sequer
empalidecesse durante sua maquínica miração. Em breve tinha a reluzente
máquina na sua mente, memorizando-a em sua caleidoscópica configuração e
podendo evocá-la em um ato simples, quantas vezes quisesse. No auge da
sua maturidade intelectual tornou-se capaz de visualizar não somente as
imagens empíricas, mas também todo o desdobramento que elas poderiam
proporcionar se a outras máquinas fossem acopladas; não lhe sendo
preciso visualizar delas senão o substrato conceitual, como se a
complexidade dinâmica das coisas extensas espelhasse a ordem e a conexão
das idéias correlatas. Se essa sua potência não dependesse de uma
decisão deliberada, de uma técnica acionada por um ato consciente da sua
vontade, penso que ele poderia viver eternamente como um sonâmbulo,
tomado por visões e fantasmagorias alucinadas.
Da
sua vida extra-mental, ele quase não deixou vestígios e especular sobre
ela exigiria o arbítrio de um ficcionista ou a frivolidade conjectural
de um psiquiatra: duas atitudes abomináveis! Sabemos que viveu sempre
solitário e cedo abandonou o emprego, tornando-se um inventor com
centenas de patentes registradas, podendo assim, cada vez mais
profundamente, dedicar-se aos infinitos espaços interinos da sua mente
visionária. Chacharrel não se contentava apenas em conceber maquinarias
integradas e de crescente complexidade. Gostava de fazê-las funcionar,
testando sua eficácia e pronunciando-se sobre a resistência de cada uma
de suas partes. Para isso, porém, faltava-lhe uma habilidade extra,
justamente recalcada pelo desenvolvimento anormal de outras aparentadas,
supondo uma limitação essencial do espírito semelhante às limitações
impostas pela caixa craniana, a saber, movimentar as imagens! Alimentar
as engrenagens na medida exata, intuir o ritmo e a velocidade precisa
dos motores e acompanhar o fluxo de energia pelos circuitos imaginários,
além de conceber o grau exato das forças operando no sistema e em cada
uma das partes... Eis aí onde ele se encasquetava, pois, embora sonhando
fosse capaz das mais mirabolantes coreografias cinéticas e
cinematográficas, acordado era um desastre. Não tinha a graça, a beleza
em movimento, como definia Plotino. A inconsciência lhe faltava como, às
vezes, nos falta um copo para beber um pouco de água! Era
imprescindível ter o controle absoluto, dinâmico e potencial de suas
máquinas para poder avaliar a qualidade, a competência e os possíveis
acidentes em caso de sobrecargas. Sem isso, de pouco valeria suas
ideações, por mais visionárias que fosse, e ele sempre iria precisar de
exaustivos testes em laboratórios. Uma única vez ele experimentou
construir com as próprias mãos um de seus projetos: No prédio onde
morava sozinho, era comum ouvir o drama das crianças ao terem que
acordar cedo para ir à escola, fosse nas frias manhãs de inverno, fosse
no verão quando os relógios eram adiantados em uma hora e era preciso
acordar antes do sol nascer. Pensando neles, Antônio construiu um
papagaio mecânico, emplumado e colorido, capaz de voar de janela em
janela em horas programadas, cantar humoradas canções e gritar o nome da
criança sonolenta que habitava os respectivos quartos. Foi considerado
pelos pais das crianças como um feiticeiro, o acusaram de ser um espião
da KGB e quase foi denunciado aos prepostos da cruenta ditadura militar.
A partir de então, abandonou os laboratórios, o registro das patentes,
contentando-se em fazer suas invenções funcionarem na expansiva dimensão
das realidades virtuais. Mas como ele mesmo acusa em seus apontamentos,
não era nada fácil. Inventar e visualizar eram, para ele, duas
faculdades inatas e semi-automáticas, mas lidar com representações de
forças e movimentos era uma terrível empreitada, assim como o são para a
maioria dos mortais. Basta o leitor experimentar visualizar uma partida
de futebol para fracassar no terceiro ou quarto quique da bola! Podemos
conceituar as forças e analisar os movimentos, mas o conceito de força
não age nem o conceito de movimento sai do lugar! Suas noites eram
fatigantes. De olhos fechados na penumbra do quarto, visualizava
qualquer uma das suas invenções como quem seleciona um slide dentro de
uma gaveta. Dava a partida nos motores e começava a deslumbrante valsa
das manivelas, transmissões e alavancas, para somente melhor encenar o
fracasso das peças desconjuntadas pelo seu cansaço, sua arritmia e o
descompasso da sua pífia intuição. Seu espírito cedia e sua visão, fruto
de cálculos febris, onde tudo funcionava com os rigores “more
geométricos” dos atributos espinosistas, dissolvia-se em delírios da
livre imaginação. Peças surrealistas e inadequadas, em dinamismos
disparatados e antagônicos, em ruídos e funções desordenadas, eram
convocadas para suprir o desequilíbrio funcional que era a própria
imagem do seu cérebro enlouquecido. Nesse clímax, Chacharrel passava da
meditação ao sono profundo e sonhava rolando em linhas de montagem,
agarrado por pinças dobráveis, lubrificado, comprimido e enlatado em
pacotes escuros e laminados, feito um Charles Chaplin dos tempos
pós-modernos! Esse obstáculo se arrastou por quase dez anos,
transformando-o em um inventor fracassado, semelhante a estes cientistas
malucos, exceto por não construir nenhuma máquina infernal, inofensivo
por ter um parafuso a menos – ou, para sermos mais exatos, milhares de
parafusos a mais! Quando não conseguia visualizar suas engrenagens (sua
energia espiritual, seu élan, estava nessa época extremamente esgotada),
ele se deleitava lendo uma pilha de revistas técnicas de engenharia
mecânica que assinava. Fora em uma destas revistas que lhe caiu aos
olhos uma matéria sobre o “moto perpétuo”, um antigo sonho de antigos
cientistas sobre uma máquina capaz de funcionar de modo automático, sem
consumo de energia externa, o próprio dinamismo dessa máquina produzindo
a energia necessária para mantê-la funcionando. Antônio sentiu um golfo
de esperança reanimar seus planos de visionário e atribuiu à
extravagância de suas ambições o fato de nunca ter tido uma idéia assim
tão simples (assim como o movimento e o tempo, as idéias simples não era
o seu forte, isso ela já sabia. Era mesmo um espírito complexado!). A
possibilidade de visualizar um motor a pleno vapor sem o titânico
esforço de ponderar as forças, compassar o ritmo ou intuir o movimento
era a seus olhos a própria visão do paraíso. Suas invenções teriam vida
própria se adaptadas fossem a esse esquema operacional. Ele seria alçado
aos eóns dos anjos oniscientes, contemplando extasiado seus brinquedos a
girarem como um parque de diversões em sua cabeça! Naquela mesma noite
começou a trabalhar na estratégia de um “moto perpétuo” a sua maneira
muito peculiar: deitado sobre os lençóis no escuro do seu quarto, com os
olhos fechados e o cenho franzido, o corpo tomado por repentinos e
discretos temores como se cada peça atualizada na consciência
emprestasse sua vivacidade a partes distintas do seu corpo. Dizer que
ele estava possuído por uma imagem não seria apenas uma metáfora! Não
demorou muito a entender – não teórica, mas empiricamente – a grande
falha nessa idéia, falha que porfiou por fazer os cientistas desistirem
dela, tornando-a apenas mais uma entre milhares de idéias impossíveis no
fértil imaginário da humanidade: a universal segunda lei da
termodinâmica, a disseminação irreversível do calor que os físicos
nomeiam de entropia! O atrito das peças produz calor e esta energia
dispersada de forma caótica não poderia jamais ser direcionada para os
circuitos de origem. Haveria sempre um déficit entre a força investida
na engrenagem e a resultante final aproveitável. Um insight cintilante
lhe permitiu relacionar a segunda lei de Boltzmann com a segunda lei de
Newton, a lei da inércia, pois era a inércia que respondia pelo atrito e
este, pelo calor. Desse ponto de suas elucubrações foi um pulo concluir
que a melhor maneira de evitar o atrito era desconsiderar a força da
gravidade, tornando os engates mais suaves, o que levou Chacharrel a
conceber sua máquina no espaço sideral, no mais profundo éter, no zero
absoluto de temperatura, sem nenhum grande astro por perto a interferir
com seu campo gravitacional. Sua pintura mental começou então na mais
retinta escuridão e a luz brotava das próprias peças fluorescentes como
representações eidéticas! O esboço de uma máquina capaz de se
auto-alimentar ficou pronto em questão de minutos, se é que podemos
falar de tempo nesses rincões solitários do espaço. Um rebut de esquemas
acoplados, planos cartesianos e cálculos. Faltava definir o aspecto
funcional do motor e o seu senso estético, de uma objetividade forense,
de um pragmatismo cavalar, expulsou qualquer possibilidade de coisa
abstrata e sem propósito! Ele iria conceber uma nave espacial toda
transparente, podendo-se ver, em todas as dimensões, a estrutura
interior, sua linha arrojadas e suas peças sofisticadas. Do nada sideral
foram surgindo lentamente turbinas, dínamos, reatores e circuitos
gravitando em torno da estrutura noemática, sendo montadas como se por
um meticuloso relojoeiro. Pouco a pouco, no lugar onde deveria estar o
guarda-roupas se estivesse ele com os olhos abertos, uma feérica nave de
cristal ganhava forma e girava sobre o seu eixo, lenta e imponderável.
Tudo estava pronto. Bastaria ligar os motores e acionar as turbinas!
Sustentava aquela irisada imagem um conjunto não menos prodigioso de
axiomas, proposições e corolários lógico-matemáticos e, com a mesma
necessidade com que uma propriedade decorre de uma definição ou uma
resultante, de seus vetores, a atividade de todas as peças decorreria do
impulso abstrato inicial: O Fiat! Chacharrel havia memorizado
todas as diferenciais em que se dividiria o impulso inicial aplicado e
contava quê, sem a gravidade, sem a resistência nem a dispersão calórica
conseqüente, o mecanismo se retroalimentasse. Sentia que a flor das
suas intuições brotava por entre espinhosas equações memorizadas de
“cour”, lhe permitindo ver sua obra-prima funcionar por tempo
indeterminado e deixar sua consciência livre para contemplar o
espetáculo como quem sonha acordado. E foi assim que aconteceu. As
turbinas acenderam-se com um fogo azul. Os painéis se iluminaram e a
nave estremeceu como um pégaso fogoso. O automatismo se espalhou
harmoniosamente por todas as peças e, liberto de toda intencionalidade,
Chacharrel sentiu duas lágrimas tépidas e reais escorrer pela sua face
enquanto vasculhava cada precioso detalhe da sua eikasia transcendental!
Foi quando algo inesperado aconteceu: Tão logo se completou o primeiro
ciclo e todos os componentes foram ativados, a escura “entourrage”, o
estofo da visão salpicou-se com milhares de pontos luminosos como se o
infinito espaço sideral se atualizasse de uma só vez na sua consciência
cinematográfica. Chacharrel lutava para não esbugalhar os olhos e tudo
apagar ao querer ver tudo. Para onde intencionasse sua visão mental,
encontrava a cintilante hylé de inconcebíveis estrelas, nebulosas cor de
rosa, galáxias encaixadas em outras galáxias, miríades de luzes em
explosão de fogos rajados por mil megatons! Seu coração retumbante era o
único e solene som a se ouvir na madrugada cósmica em que estava
mergulhado. Não estar sonhando era a única certeza onde ele se ancorava
para não ter o seu frágil juízo arrebatado pelo sublime dinâmico das
imagens nem pelo sublime matemático das leis físicas que aquilo tudo
sustentava e que se revelava ao seu pensamento como se transformado
subitamente em um demiurgo de sabedoria iluminada! Era justamente nas
franjas da sua visão que ele pressentia o excesso do ser e a infinita
realidade atualizada para além do que poderia suportar! A nave seguia no
mesmo lugar, silente e suave a girar suas brilhantes engrenagens como o
carro de Elias, a barca de Caronte, o trono de Wahalla... Seus
pensamentos inarticulados e frenéticos ocupados em sustentar a visão
mental, acabaram por relaxar ao sentir que a visão se sustentava por si,
agora ancorada na conexão que fazia com a extensão do universo e com o
funcionamento autônomo da nave, mais do que com a sua mentalização. Suas
idéias também ameaçavam transcender-lhe, se expandindo para além do
sujeito pensante que ele era! Temendo o excruciante trepasse da alma do
mundo sobre sua frágil individualidade, a luz do atributo pensamento
fritando o seu sonho melindrosamente construído, ele se voltou para as
lembranças da sua vida passada. Viu a si mesmo, ao longo de tantos anos,
em meticulosos e sistemáticos exercícios, desenvolver a sua singular
faculdade de memorizar e visualizar imagens, e seu esforço para
ultrapassar o segundo gênero do conhecimento, das noções comuns, para
enfim ser capaz de intuir “a verdade”. Agora, florescida como as Hênades
de Plotino, suas intuições visualizavam idéias! Haviam-lhe aberto os
olhos da alma! E o que elas lhe revelava era muito mais assombroso do
que jamais poderia imaginar: algo mais fantástico e correlato a explicar
seus dons inexplicáveis, a saber, que as idéias contempladas pelo seu
olhar espiritual não se reduziam a criações da mente humana, mente que é
apenas um espelho para elas. As idéias possuíam realidade própria,
constituíam um mundo à parte e entrelaçado na existência cotidiana,
podendo ser tangenciadas por mentes expansivas e iluminadas. Bastara a
Chacharrel intencionar um conjunto de idéias em movimento genético e
adequado, vivenciá-las, para que essa dimensão das idéias, articulada
com a mesma ordem e conexão das coisas materiais, se apresentasse
inteira à sua mente como uma telha que o vento arranca do telhado nos
permitindo ver pela fresta o céu estrelado. Chacharrel pôs a nave em
movimento e descobriu que alguns pontos de luz no espaço mudavam de
posição conforme a velocidade e a direção da nave intencionadas. Estava
viajando pelo cosmos como um cocheiro espacial! Seu moto perpétuo
poderia, em tese, ter uma potência ilimitada, pressentiu, mas não a
explorou por avidez de tudo ver e explorar: fornalhas de estrelas onde
gravitavam incomensuráveis e leitosos astros, nebulosas iluminadas e
cravejadas de constelações desconhecidas e zodíacos bestiais, jatos de
luz e poeira cósmica abrindo tessituras não-euclidianas na imensidão do
espaço... Tudo lhe deslumbrava para além dos graus mensuráveis da emoção
humana. O desejo de se aproximar de uma luminosa estrela e explorar os
possíveis mundos gravitando ao seu redor era imenso, mas ele temia que a
força gravitacional empenasse as engrenagens etéreas da sua mística nau
e, como Ícaro, perder as asas da sua visionária liberdade. Não sabia se
poderia intuir outra vez essa epifania dourada. Então, do nada, viu um
ponto bem perto da nave e dele, quase inconscientemente, se aproximou!
Viu, para seu estupor - e quase abriu os olhos, tamanho o susto - um
fragmento de um quarto, somente o piso e a varanda flutuando no espaço,
sem paredes, sem teto, nada em cima, em baixo ou nos lados. Era o seu
quarto e sobre a cama se viu deitado. Sentiu-se um herói por não abrir
os olhos, pois é quase do tamanho do cosmos, acredite, o nosso desejo de
sensatez, de juízo e de normalidade. Por eles, somos capazes de
sacrificar qualquer sonho lindo. Mas Antônio amava mais o pensamento do
que a coleção de enfadonhas tardes que era a sua pálida existência.
Aproximou mais a nave e ficou a poucos metros do surreal fragmento
flutuando no espaço. Parou a nave e, sem abrir os olhos, mexeu os
braços, vendo seu braço se mover na imagem correlata no espaço. Ficou de
pé ao lado da cama. Com os olhos da alma calçou as sandálias sobre o
tapete. Mesmo com elas percebeu que o piso estava profundamente gelado,
como costumava ser nas madrugadas de inverno. O silêncio era retumbante,
como se nada pudesse se propagar no vácuo. Parecia não respirar, nem
precisar disso. Caminhou resoluto até a varanda, perto da sacada. Morava
no 13º andar, mas a visão do fragmento no espaço terminava em um pedaço
de parapeito. O abismo parecia ir dissolvendo aos poucos o que restava
do seu quarto atrás dele, como podia mentalmente observar. Não perdeu
tempo. Subiu no pedaço minúsculo do parapeito sem precisar olhar lá
embaixo. Aproximou a nave bem embaixo do local e abriu a límpida
escotilha fazendo o assento da nave ficou a menos de dois metros do seu
franzino corpo. Impossível errar. Por alguns segundos, deu uma chance ao
mundo natural em que já não mais acreditava. Uma buzina, o pio de uma
coruja, um apito, ou mesmo uma brisa no rosto... Mas nada disso se
manifestou. O mundo cotidiano era apenas um “tonal”, uma ilha no seio do
ser assombroso, o bico da águia de uma efervescente e coruscante
cosmologia “nagual”. Antônio Chacharrel respirou fundo e pulou. Seu
corpo flutuou até o encosto macio da poltrona dentro da nave. Viajou
“sub espécie eternitatis” pelos vastos campos do Senhor, pelos
magníficos leitos de luz entre as galáxias, pelo inominável, cruzando
abismos que sequer o leitoso tempo poderia compartilhar, piscando de vez
em quando os olhos para sentir que não havia nenhuma diferença entre
estar dormindo ou acordado!
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