segunda-feira, 12 de outubro de 2015

PORTA PARA O INFINITO


Desde os seus púberes anos, conforme as páginas de um suposto diário espalhadas no quarto e recolhidas pela polícia, Antônio Chacharrel possuía uma extraordinária memória visual, embora, naquela idade, não pudesse perceber a excepcionalidade desse seu dom.
Entre as suas primeiras lembranças – o registra – costumava olhar pela janela do seu quarto, para o céu de nuvens variegadas, o bosque do outro lado do rio, a feira-livre na praça do mercado para logo em seguida, deitado na cama, fechar os olhos e reconstituir todas as percepções nos mais ínfimos detalhes: As roupas coloridas de cada um dos feirantes, os galhos intermitentes sobre a folhagem copiosa do bosque e o cortejo protéico das nuvens no céu em suas formas eternamente estropiadas. Inclusive, era capaz de reconstituir imagens que no ato de perceber não houvera se atinado, como a asa branca de um curiango no galho sombrio ou o leite derramado pela criança a chorar na barraca de frutas importadas. Fato que denunciava um acesso instantâneo aos registros obsedantes do inconsciente pela sua memória avantajada. Também era uma criança inquieta e, como todas da sua idade, gostava de desmontar seus brinquedos para ver o que havia dentro e depois devolvê-los a sua forma original. Muito cedo também estes dois aspectos do seu espírito - de um lado, a contemplação exaustiva e minuciosa do mundo ao redor; do outro, a manipulação mecânica de suas partes – entraram em conflito. Um período obscuro (que não ousaria decifrá-lo a partir de notas tão esparsas e do testemunho extremamente sentimental dos seus obtusos pais) seguiu-se até a idade dos quinze anos, quando, podemos deduzir com liberalidade, ter-se-ia acentuado no jovem Chacharrel o conflito de faculdades encarnado nas duas perspectivas profissionais que poderia herdar de seus precursores pais. De um lado, a fotografia, a grande paixão de sua mãe, sempre trancada no pequeno laboratório de revelação nos fundos da casa, a quem ele edipianamente atribuía seu pendor memorialista; do outro, os livros de física e matemática que seu pai fuçava todas as noites ao preparar as aulas ministradas em uma duvidosa faculdade particular. Livros que o pai porfiava lhe revelar as leis regendo o fundo nebuloso das coisas. Finalmente, a continuar nessa psicologia vulgar que nos enveredamos, ouso crer que ele terminou por encontrar, na opção que fizera por uma profissão, uma solução para o conflito vocacional que traduzia seu patético e universal conflito familiar. Com dezessete anos incompletos, Antônio Chacharrel decidiu prestar vestibular para a Escola superior de Engenharia mecânica. Nesta profissão aparentemente tediosa, ele esperava encontrar uma razoável via de expressão para os dois maiores pendores da sua vida mental. Nesta ciência ele encontraria o universo concreto das forças aplicadas e mensuráveis, seu estofo lógico-matemático, como também o encanto, pouco apreciado, de criar máquinas mirabolantes com a precisão de relógios suíços, artefatos tão graciosos em seu desempenho como bailarinas de uma caixinha musical, peças cujo hipnótico maquinismo evocava os eternos brinquedos com os quais passara a vida a desmontar. Ao mesmo tempo estaria lidando com um repertório fascinante de imagens tridimensionais: polias, roldanas e manivelas; eixos, cabos, rolamentos, trincos, molas, pistões, pêndulos, catracas, parafusos, válvulas e êmbolos... Um cortejo de imagens minuciosas encarnando o diagrama esquemático de suas cognições físico-matemáticas. Durante os primeiros semestres, devido a sua proficiência em visualizar qualquer imagem no écran da sua consciência, ele raramente desenhava qualquer coisa preferindo evocá-la em sua imaculada totalidade a representá-la em pálidas folhas bidimensionais; assim sendo, contraiu e manteve por muitos anos o hábito de intencionar todas as peças, máquinas e partes de máquinas nos projetos e trabalhos efetivos como engenheiro em uma fábrica de motores estatal. Primeiro ele concebia a máquina em sua dimensão adequada e em seus princípios funcionais, depois ia concebendo peça por peça e montando-a abstratamente sem que nenhum parafuso ou engrenagem, uma rosqueta sequer empalidecesse durante sua maquínica miração. Em breve tinha a reluzente máquina na sua mente, memorizando-a em sua caleidoscópica configuração e podendo evocá-la em um ato simples, quantas vezes quisesse. No auge da sua maturidade intelectual tornou-se capaz de visualizar não somente as imagens empíricas, mas também todo o desdobramento que elas poderiam proporcionar se a outras máquinas fossem acopladas; não lhe sendo preciso visualizar delas senão o substrato conceitual, como se a complexidade dinâmica das coisas extensas espelhasse a ordem e a conexão das idéias correlatas. Se essa sua potência não dependesse de uma decisão deliberada, de uma técnica acionada por um ato consciente da sua vontade, penso que ele poderia viver eternamente como um sonâmbulo, tomado por visões e fantasmagorias alucinadas.

 

Da sua vida extra-mental, ele quase não deixou vestígios e especular sobre ela exigiria o arbítrio de um ficcionista ou a frivolidade conjectural de um psiquiatra: duas atitudes abomináveis! Sabemos que viveu sempre solitário e cedo abandonou o emprego, tornando-se um inventor com centenas de patentes registradas, podendo assim, cada vez mais profundamente, dedicar-se aos infinitos espaços interinos da sua mente visionária. Chacharrel não se contentava apenas em conceber maquinarias integradas e de crescente complexidade. Gostava de fazê-las funcionar, testando sua eficácia e pronunciando-se sobre a resistência de cada uma de suas partes. Para isso, porém, faltava-lhe uma habilidade extra, justamente recalcada pelo desenvolvimento anormal de outras aparentadas, supondo uma limitação essencial do espírito semelhante às limitações impostas pela caixa craniana, a saber, movimentar as imagens! Alimentar as engrenagens na medida exata, intuir o ritmo e a velocidade precisa dos motores e acompanhar o fluxo de energia pelos circuitos imaginários, além de conceber o grau exato das forças operando no sistema e em cada uma das partes... Eis aí onde ele se encasquetava, pois, embora sonhando fosse capaz das mais mirabolantes coreografias cinéticas e cinematográficas, acordado era um desastre. Não tinha a graça, a beleza em movimento, como definia Plotino. A inconsciência lhe faltava como, às vezes, nos falta um copo para beber um pouco de água! Era imprescindível ter o controle absoluto, dinâmico e potencial de suas máquinas para poder avaliar a qualidade, a competência e os possíveis acidentes em caso de sobrecargas. Sem isso, de pouco valeria suas ideações, por mais visionárias que fosse, e ele sempre iria precisar de exaustivos testes em laboratórios. Uma única vez ele experimentou construir com as próprias mãos um de seus projetos: No prédio onde morava sozinho, era comum ouvir o drama das crianças ao terem que acordar cedo para ir à escola, fosse nas frias manhãs de inverno, fosse no verão quando os relógios eram adiantados em uma hora e era preciso acordar antes do sol nascer. Pensando neles, Antônio construiu um papagaio mecânico, emplumado e colorido, capaz de voar de janela em janela em horas programadas, cantar humoradas canções e gritar o nome da criança sonolenta que habitava os respectivos quartos. Foi considerado pelos pais das crianças como um feiticeiro, o acusaram de ser um espião da KGB e quase foi denunciado aos prepostos da cruenta ditadura militar. A partir de então, abandonou os laboratórios, o registro das patentes, contentando-se em fazer suas invenções funcionarem na expansiva dimensão das realidades virtuais. Mas como ele mesmo acusa em seus apontamentos, não era nada fácil. Inventar e visualizar eram, para ele, duas faculdades inatas e semi-automáticas, mas lidar com representações de forças e movimentos era uma terrível empreitada, assim como o são para a maioria dos mortais. Basta o leitor experimentar visualizar uma partida de futebol para fracassar no terceiro ou quarto quique da bola! Podemos conceituar as forças e analisar os movimentos, mas o conceito de força não age nem o conceito de movimento sai do lugar! Suas noites eram fatigantes. De olhos fechados na penumbra do quarto, visualizava qualquer uma das suas invenções como quem seleciona um slide dentro de uma gaveta. Dava a partida nos motores e começava a deslumbrante valsa das manivelas, transmissões e alavancas, para somente melhor encenar o fracasso das peças desconjuntadas pelo seu cansaço, sua arritmia e o descompasso da sua pífia intuição. Seu espírito cedia e sua visão, fruto de cálculos febris, onde tudo funcionava com os rigores “more geométricos” dos atributos espinosistas, dissolvia-se em delírios da livre imaginação. Peças surrealistas e inadequadas, em dinamismos disparatados e antagônicos, em ruídos e funções desordenadas, eram convocadas para suprir o desequilíbrio funcional que era a própria imagem do seu cérebro enlouquecido. Nesse clímax, Chacharrel passava da meditação ao sono profundo e sonhava rolando em linhas de montagem, agarrado por pinças dobráveis, lubrificado, comprimido e enlatado em pacotes escuros e laminados, feito um Charles Chaplin dos tempos pós-modernos! Esse obstáculo se arrastou por quase dez anos, transformando-o em um inventor fracassado, semelhante a estes cientistas malucos, exceto por não construir nenhuma máquina infernal, inofensivo por ter um parafuso a menos – ou, para sermos mais exatos, milhares de parafusos a mais! Quando não conseguia visualizar suas engrenagens (sua energia espiritual, seu élan, estava nessa época extremamente esgotada), ele se deleitava lendo uma pilha de revistas técnicas de engenharia mecânica que assinava. Fora em uma destas revistas que lhe caiu aos olhos uma matéria sobre o “moto perpétuo”, um antigo sonho de antigos cientistas sobre uma máquina capaz de funcionar de modo automático, sem consumo de energia externa, o próprio dinamismo dessa máquina produzindo a energia necessária para mantê-la funcionando. Antônio sentiu um golfo de esperança reanimar seus planos de visionário e atribuiu à extravagância de suas ambições o fato de nunca ter tido uma idéia assim tão simples (assim como o movimento e o tempo, as idéias simples não era o seu forte, isso ela já sabia. Era mesmo um espírito complexado!). A possibilidade de visualizar um motor a pleno vapor sem o titânico esforço de ponderar as forças, compassar o ritmo ou intuir o movimento era a seus olhos a própria visão do paraíso. Suas invenções teriam vida própria se adaptadas fossem a esse esquema operacional. Ele seria alçado aos eóns dos anjos oniscientes, contemplando extasiado seus brinquedos a girarem como um parque de diversões em sua cabeça! Naquela mesma noite começou a trabalhar na estratégia de um “moto perpétuo” a sua maneira muito peculiar: deitado sobre os lençóis no escuro do seu quarto, com os olhos fechados e o cenho franzido, o corpo tomado por repentinos e discretos temores como se cada peça atualizada na consciência emprestasse sua vivacidade a partes distintas do seu corpo. Dizer que ele estava possuído por uma imagem não seria apenas uma metáfora! Não demorou muito a entender – não teórica, mas empiricamente – a grande falha nessa idéia, falha que porfiou por fazer os cientistas desistirem dela, tornando-a apenas mais uma entre milhares de idéias impossíveis no fértil imaginário da humanidade: a universal segunda lei da termodinâmica, a disseminação irreversível do calor que os físicos nomeiam de entropia! O atrito das peças produz calor e esta energia dispersada de forma caótica não poderia jamais ser direcionada para os circuitos de origem. Haveria sempre um déficit entre a força investida na engrenagem e a resultante final aproveitável. Um insight cintilante lhe permitiu relacionar a segunda lei de Boltzmann com a segunda lei de Newton, a lei da inércia, pois era a inércia que respondia pelo atrito e este, pelo calor. Desse ponto de suas elucubrações foi um pulo concluir que a melhor maneira de evitar o atrito era desconsiderar a força da gravidade, tornando os engates mais suaves, o que levou Chacharrel a conceber sua máquina no espaço sideral, no mais profundo éter, no zero absoluto de temperatura, sem nenhum grande astro por perto a interferir com seu campo gravitacional. Sua pintura mental começou então na mais retinta escuridão e a luz brotava das próprias peças fluorescentes como representações eidéticas! O esboço de uma máquina capaz de se auto-alimentar ficou pronto em questão de minutos, se é que podemos falar de tempo nesses rincões solitários do espaço. Um rebut de esquemas acoplados, planos cartesianos e cálculos. Faltava definir o aspecto funcional do motor e o seu senso estético, de uma objetividade forense, de um pragmatismo cavalar, expulsou qualquer possibilidade de coisa abstrata e sem propósito! Ele iria conceber uma nave espacial toda transparente, podendo-se ver, em todas as dimensões, a estrutura interior, sua linha arrojadas e suas peças sofisticadas. Do nada sideral foram surgindo lentamente turbinas, dínamos, reatores e circuitos gravitando em torno da estrutura noemática, sendo montadas como se por um meticuloso relojoeiro. Pouco a pouco, no lugar onde deveria estar o guarda-roupas se estivesse ele com os olhos abertos, uma feérica nave de cristal ganhava forma e girava sobre o seu eixo, lenta e imponderável. Tudo estava pronto. Bastaria ligar os motores e acionar as turbinas! Sustentava aquela irisada imagem um conjunto não menos prodigioso de axiomas, proposições e corolários lógico-matemáticos e, com a mesma necessidade com que uma propriedade decorre de uma definição ou uma resultante, de seus vetores, a atividade de todas as peças decorreria do impulso abstrato inicial: O Fiat! Chacharrel havia memorizado todas as diferenciais em que se dividiria o impulso inicial aplicado e contava quê, sem a gravidade, sem a resistência nem a dispersão calórica conseqüente, o mecanismo se retroalimentasse. Sentia que a flor das suas intuições brotava por entre espinhosas equações memorizadas de “cour”, lhe permitindo ver sua obra-prima funcionar por tempo indeterminado e deixar sua consciência livre para contemplar o espetáculo como quem sonha acordado. E foi assim que aconteceu. As turbinas acenderam-se com um fogo azul. Os painéis se iluminaram e a nave estremeceu como um pégaso fogoso. O automatismo se espalhou harmoniosamente por todas as peças e, liberto de toda intencionalidade, Chacharrel sentiu duas lágrimas tépidas e reais escorrer pela sua face enquanto vasculhava cada precioso detalhe da sua eikasia transcendental! Foi quando algo inesperado aconteceu: Tão logo se completou o primeiro ciclo e todos os componentes foram ativados, a escura “entourrage”, o estofo da visão salpicou-se com milhares de pontos luminosos como se o infinito espaço sideral se atualizasse de uma só vez na sua consciência cinematográfica. Chacharrel lutava para não esbugalhar os olhos e tudo apagar ao querer ver tudo. Para onde intencionasse sua visão mental, encontrava a cintilante hylé de inconcebíveis estrelas, nebulosas cor de rosa, galáxias encaixadas em outras galáxias, miríades de luzes em explosão de fogos rajados por mil megatons! Seu coração retumbante era o único e solene som a se ouvir na madrugada cósmica em que estava mergulhado. Não estar sonhando era a única certeza onde ele se ancorava para não ter o seu frágil juízo arrebatado pelo sublime dinâmico das imagens nem pelo sublime matemático das leis físicas que aquilo tudo sustentava e que se revelava ao seu pensamento como se transformado subitamente em um demiurgo de sabedoria iluminada! Era justamente nas franjas da sua visão que ele pressentia o excesso do ser e a infinita realidade atualizada para além do que poderia suportar! A nave seguia no mesmo lugar, silente e suave a girar suas brilhantes engrenagens como o carro de Elias, a barca de Caronte, o trono de Wahalla... Seus pensamentos inarticulados e frenéticos ocupados em sustentar a visão mental, acabaram por relaxar ao sentir que a visão se sustentava por si, agora ancorada na conexão que fazia com a extensão do universo e com o funcionamento autônomo da nave, mais do que com a sua mentalização. Suas idéias também ameaçavam transcender-lhe, se expandindo para além do sujeito pensante que ele era! Temendo o excruciante trepasse da alma do mundo sobre sua frágil individualidade, a luz do atributo pensamento fritando o seu sonho melindrosamente construído, ele se voltou para as lembranças da sua vida passada. Viu a si mesmo, ao longo de tantos anos, em meticulosos e sistemáticos exercícios, desenvolver a sua singular faculdade de memorizar e visualizar imagens, e seu esforço para ultrapassar o segundo gênero do conhecimento, das noções comuns, para enfim ser capaz de intuir “a verdade”. Agora, florescida como as Hênades de Plotino, suas intuições visualizavam idéias! Haviam-lhe aberto os olhos da alma! E o que elas lhe revelava era muito mais assombroso do que jamais poderia imaginar: algo mais fantástico e correlato a explicar seus dons inexplicáveis, a saber, que as idéias contempladas pelo seu olhar espiritual não se reduziam a criações da mente humana, mente que é apenas um espelho para elas. As idéias possuíam realidade própria, constituíam um mundo à parte e entrelaçado na existência cotidiana, podendo ser tangenciadas por mentes expansivas e iluminadas. Bastara a Chacharrel intencionar um conjunto de idéias em movimento genético e adequado, vivenciá-las, para que essa dimensão das idéias, articulada com a mesma ordem e conexão das coisas materiais, se apresentasse inteira à sua mente como uma telha que o vento arranca do telhado nos permitindo ver pela fresta o céu estrelado. Chacharrel pôs a nave em movimento e descobriu que alguns pontos de luz no espaço mudavam de posição conforme a velocidade e a direção da nave intencionadas. Estava viajando pelo cosmos como um cocheiro espacial! Seu moto perpétuo poderia, em tese, ter uma potência ilimitada, pressentiu, mas não a explorou por avidez de tudo ver e explorar: fornalhas de estrelas onde gravitavam incomensuráveis e leitosos astros, nebulosas iluminadas e cravejadas de constelações desconhecidas e zodíacos bestiais, jatos de luz e poeira cósmica abrindo tessituras não-euclidianas na imensidão do espaço... Tudo lhe deslumbrava para além dos graus mensuráveis da emoção humana. O desejo de se aproximar de uma luminosa estrela e explorar os possíveis mundos gravitando ao seu redor era imenso, mas ele temia que a força gravitacional empenasse as engrenagens etéreas da sua mística nau e, como Ícaro, perder as asas da sua visionária liberdade. Não sabia se poderia intuir outra vez essa epifania dourada. Então, do nada, viu um ponto bem perto da nave e dele, quase inconscientemente, se aproximou! Viu, para seu estupor - e quase abriu os olhos, tamanho o susto - um fragmento de um quarto, somente o piso e a varanda flutuando no espaço, sem paredes, sem teto, nada em cima, em baixo ou nos lados. Era o seu quarto e sobre a cama se viu deitado. Sentiu-se um herói por não abrir os olhos, pois é quase do tamanho do cosmos, acredite, o nosso desejo de sensatez, de juízo e de normalidade. Por eles, somos capazes de sacrificar qualquer sonho lindo. Mas Antônio amava mais o pensamento do que a coleção de enfadonhas tardes que era a sua pálida existência. Aproximou mais a nave e ficou a poucos metros do surreal fragmento flutuando no espaço. Parou a nave e, sem abrir os olhos, mexeu os braços, vendo seu braço se mover na imagem correlata no espaço. Ficou de pé ao lado da cama. Com os olhos da alma calçou as sandálias sobre o tapete. Mesmo com elas percebeu que o piso estava profundamente gelado, como costumava ser nas madrugadas de inverno. O silêncio era retumbante, como se nada pudesse se propagar no vácuo. Parecia não respirar, nem precisar disso. Caminhou resoluto até a varanda, perto da sacada. Morava no 13º andar, mas a visão do fragmento no espaço terminava em um pedaço de parapeito. O abismo parecia ir dissolvendo aos poucos o que restava do seu quarto atrás dele, como podia mentalmente observar. Não perdeu tempo. Subiu no pedaço minúsculo do parapeito sem precisar olhar lá embaixo. Aproximou a nave bem embaixo do local e abriu a límpida escotilha fazendo o assento da nave ficou a menos de dois metros do seu franzino corpo. Impossível errar. Por alguns segundos, deu uma chance ao mundo natural em que já não mais acreditava. Uma buzina, o pio de uma coruja, um apito, ou mesmo uma brisa no rosto... Mas nada disso se manifestou. O mundo cotidiano era apenas um “tonal”, uma ilha no seio do ser assombroso, o bico da águia de uma efervescente e coruscante cosmologia “nagual”. Antônio Chacharrel respirou fundo e pulou. Seu corpo flutuou até o encosto macio da poltrona dentro da nave. Viajou “sub espécie eternitatis” pelos vastos campos do Senhor, pelos magníficos leitos de luz entre as galáxias, pelo inominável, cruzando abismos que sequer o leitoso tempo poderia compartilhar, piscando de vez em quando os olhos para sentir que não havia nenhuma diferença entre estar dormindo ou acordado!  

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