segunda-feira, 19 de agosto de 2024

GENEALOGIA DAS COISAS ORDINÁRIAS!

 

O Hábito é Uma Segunda Natureza! @Aristóteles 


Não quero pronunciar uma doutrina sobre o papel do hábito na compreensão da alma humana, sabendo da existência de uma obra seminal sobre o tema, a saber, "Vie et habitude" do genial escritor inglês Samuel Butler. Limitarei-me a compilar exemplos curiosos, os quais nos habituamos a esquecer. 1. Por que temos o hábito de pôr o leite morno primeiro na chávena e depois o café quente? Outrora não existia a cerâmica e o tradicional café com leite era servido em finas porcelanas que costumavam rachar ao contato com o café fervente, daí o uso do leite morno primeiro. Quando a robusta cerâmica se popularizou, o hábito já estava consolidado e era mais resistente do que os novos vasilhames gastronômicos.*

* Este exemplo é narrado por um escritor fictício, protagonista de um filme genial do cineasta francês Alain Resnais, chamado PROVIDENCE.

  2. Porque as moedas possuem hachuras nas bordas? Outrora, quando cunhadas em metais preciosos, ouro e prata, era costume os pícaros amealhar moedas e passar a noite inteira limando suas bordas, o máximo possível sem desconfigurar a peça que seria passada depois, não sem antes deixar um precioso pozinho do vil metal nas mãos dos trapaceiros. Para coibir tal vilipêndio, os tesoureiros reais adotaram as ranhuras nas bordas. Os bandidos desapareceram, mas o costume ficou.

3. Algum leitor cozinheiro já percebeu como é essencial, ao preparar um bacalhau com batatas, deixar as postas da iguaria dormir em um vasilhame de água para desalinizar? Antes da refrigeração elétrica, para que o bacalhau pescado nos mares do norte não estragasse até chegar aos mercados, tão logo fosse capturado, ele era mergulhado em tonéis de sal e, depois de eviscerado, condicionado em mantas recheadas com essa substância antibacteriana. Há quase um século que existem navios de pesca com câmeras refrigeradas e que o bacalhau fresco é encontrado em todos os grandes mercados de pescados, mas tente convencer a Dona Celuta de Algarves, no Meirinho, a preparar um bacalhau sem o ritual de dessalinização! O sal é acrescentado somente para satisfazer o hábito, que penetra mais fundo na alma do que todas as lágrimas salgadas de Portugal.

4. Ainda no plano dos objetos domésticos, xícaras, moedas, ingredientes culinários, se não muito for pelo costume, falemos agora daquelas cornucopianas fruteiras com frutas de cera que ornavam nossas mesas após o repasto ser retirado. Estas frutas de um realismo profundo foram criadas pelos pintores flamencos, pioneiro no subgênero pictórico Natureza Morta, na Europa renascentista. Nssas telas, cuja minuciosa elaboração podia durar duas ou três semanas, as frutas que serviam de modelo costumavam amadurecer, mudarem de cor, de textura e volume, causando grande confusão no continuismo visual destes artistas. O problema resolvido com a adoção de frutas artificiais que não mudavam de aspecto por tempo indeterminado, assim que a tela ficava pronta, o povo começou a fazer um uso ornamental deste artifício e ainda hoje é possível encontrar fruteiras transbordantes destes penduricalhos a refletir a luz de encerados assoalhos em uma tarde de sábado.

Aparentemente, a lista destes casos parece não ter fim, transcendendo o reino dos objetos e manifestando-se na própria vida e em tudo o que fazemos com ela. Vejamos o caso das espécimes vegetais que importamos do hemisfério Norte, as assim chamadas caducifólias, por caducarem suas folhas na primavera. Lá em seus países de origem, quando chega o outono aqui é primavera e as árvores se despem de suas folhas para que não acumulem neve e o peso não quebre seus galhos, além da inutilidade destas folhas na ausência da luz solar. As amendoeiras são um bom exemplo destas árvores que não só trouxeram estes hábitos fasciculares para o hemisfério Sul, mas também o próprio relógio e calendário aos quais estiveram sempre acostumadas desde tenros brotinhos, enchendo nossas calçadas de folhas secas e galhos-nus em plena estação das flores, para o espanto dos pássaros apaixonados;

 Last But Don't Least, encerrarei essa tertúlia literária com o escandaloso caso das virgens de araque, aquelas que ainda mantêm o costume de se casarem vestidas de branco, símbolo da pureza e castidade desde o tempo das vestais romanas, de quem herdamos a simbologia. Hoje, quando a esmagadora maioria das nossas noivas possui mais horas de cama do que urubu de vôo, ainda é costume ver nos átrios das catedrais o longo véu branco que separa o tempo presente de suas inumeráveis repetições a deslizar em direção ao altar, onde a tradição e o hábito celebram núpcias eternas e já corneadas pela inutilidade e caduquice dos costumes, nesse mundo que não gira... Capota!

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